sábado, 31 de agosto de 2013

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 7 anos, cinco meses e um dia de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – O verso e o reverso da esperança

Coluna Direto do Arquivo – Celamar Maione, conto,“A alma gêmea”.

Coluna Clássicos – William Faulkner, conto, “Uma rosa para Emily”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “As Armações de Baleia”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica, “Dona Maria, uma brasileira”.

Coluna Porta Aberta – Paulo Reims, artigo “E a Síria?”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com “Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.




O verso e o reverso da esperança

A esperança, para mim, sempre se constituiu –  entre as propaladas três virtudes teologais, instituídas como dogma pela Igreja Católica (as outras duas são a fé e a caridade) – em motivo de permanente dúvida. É como uma moeda que contém verso e reverso. Não tenho nenhuma certeza se devo ou não cultivá-la. Há ocasiões em que a considero um bem, por representar a capacidade humana da perseverança. Em outras tantas vezes, porém, quando analiso a questão com frieza e objetividade, chego a achar que se trate de um mal, de um engodo, de uma ilusão que nutrimos e cultivamos, principalmente quando o que esperamos não tem a menor chance de se concretizar. E a maior parte de nossas esperanças tem essa característica.  

Esperar, convenhamos, sempre se constituiu (e se constitui) em coisa chata, chatíssima, chatérrima e pense o leitor em todos os superlativos que quiser para caracterizar essa desagradável situação passiva. Não encontrei, jamais, em lugar algum, alguém que gostasse da espera a que somos forçados a todo o momento em nosso cotidiano. Ela nos impacienta,  irrita, enche de ansiedade e revolta. Cá para nós, é sempre, sempre e sempre perda de tempo. E este (como não me canso de ressaltar, mesmo em se tratando de realidade para lá de óbvia) é nosso maior capital, porquanto o tanto que dele for perdido é, queiram ou não, irrecuperável. E olhem que aqui me refiro apenas à espera de algo ou de alguém que, com quase cem por cento de certeza, irá acontecer ou aparecer.

Você, certamente, estranhou esse “quase” que utilizei. Não deveria. Está no terreno das possibilidades que a pessoa que esperamos não apareça, o que, aliás, é muito freqüente.  Mesmo em compromissos com hora marcada (num consultório médico ou odontológico, por exemplo, ou no escritório de algum advogado, contador etc. ou em outro lugar em que tenhamos entrevista agendada) pode ocorrer da nossa espera ser inútil e vã, por se esgotar, quem sabe, o horário de atendimento do respectivo profissional. Ou por alguma outra razão, não importa. Isso também vale para filas: de banco, da previdência, de ônibus, trens, aviões etc.etc.etc. Imaginem, então, o que é esperar algo ou alguém de que não se tem a mais remota certeza que vai ocorrer ou que irá chegar! E isso é considerado virtude, cantada e decantada em prosa e verso tempos afora!!! Sei lá se é!

Há, reitero, vezes que considero a esperança um bem, talvez por protelar uma decepção ou, pior, profunda frustração. Mas há ocasiões em que, raciocinando fria e objetivamente, considero essa protelação, essa espera sem certeza, como mal, como fuga da realidade, que só tende a multiplicar o sentimento de perda quando a coisa ou o fato ou a pessoa que tanto esperei não acontecer ou não aparecer.

A razão da esperança ser considerada virtude teologal não deixa de ser convincente, admito. Afinal, “é por meio dela que os crentes, por ajuda da graça do Espírito Santo, esperam a vida eterna e o reino de Deus, colocando a sua confiança perseverante nas promessas de Cristo”. Nesse aspecto, ela faz todo sentido. Por que? Por estar indissociavelmente vinculada à fé. Quem acredita, sem vacilar, que a morte física não é o fim de tudo e que, dependendo da nossa conduta nos poucos anos desta nossa relativamente curta aventura de viver, podemos conquistar a eternidade, é compreensível que espere até o derradeiro sopro de vida que isso ocorra.

Mas... nem toda esperança tem essa característica, a religiosa, assim como nem todos têm uma religião. Há pessoas que esperam as coisas mais absurdas e irracionais que se possa imaginar, que jamais conquistarão, em estúpida e irracional dispersão de energia e de crença. Pior são aqueles que esperam o factível, mas que exija (tudo exige) ação para que se concretize. Contudo, em vez de agirem, permanecem passivos à espera de algum improvável milagre. Ou seja, que o que tanto desejam, caia do céu. Certamente, não cairá. Assim como a esperança, enquanto virtude teologal, está necessariamente vinculada à fé, esse outro tipo de espera liga-se, sempre, ao ato concreto, à busca inteligente e persistente, ao preparo (físico e/ou intelectual) e, na maioria dos casos, às circunstâncias. Caso isso não seja levado em conta, a decepção, o fracasso e a frustração serão para lá de certos. Sei que minha dúvida significa remar contra a correnteza. Mas... é o que penso.     

Todavia, como tema poético, não há como negar que a esperança inspira magníficos poemas. Leio, a todo o momento, sempre com renovado prazer, várias produções, daquelas com que não nos contentamos apenas em ler, mas que transformamos numa espécie de mantra, senão em lemas de vida. Até para “adoçar” um pouco estas reflexões, que podem soar amargas, posto não sejam – pois por opção e temperamento sou pessoa positiva e otimista, sem abrir mão, porém, do realismo – partilho, com vocês, estes versos do saudoso poeta e amigo Mauro Sampaio, cujos poemas, sempre que posso, faço questão de divulgar:    

“Um dia
os montes se abaterão aos nossos pés
e levantaremos do chão as estrelas caídas!”

Oxalá esse dia ocorra mesmo, e para todos nós, e que não se trate de outra esperança frustrante e impossível de se concretizar.

Boa leitura.


O Editor

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.
A alma gêmea

* Por Celamar Maione


A astróloga olhou mais uma vez o mapa astral de Roseane e afirmou:
-Sim, é ele mesmo. Os signos combinam perfeitamente. Encontrou sua alma gêmea. Acontece uma em 10 mil vezes.

Roseane saiu da consulta com o coração em rebuliço com a notícia! A amiga que esperava na ante-sala foi a primeira a saber:
-Esteves é minha alma gêmea. Sabia! Assim que olhei para ele senti um calor intenso subir pelo meu corpo. Pensei:  é o homem da minha vida!

Aurealina, curiosa, perguntou:
-Madame Nercina tem certeza?
-Me garantiu. Disse que nossos mapas se encaixavam. Nossa sinastria amorosa é perfeita.
-Engraçado – disse Aurealina com ar de descaso –  Madame Nercina  me  revelou  apenas que  vou demorar a casar. Na certa não foi com a minha cara!

Quando Roseane chegou em casa, contou  a novidade para a mãe:
-A astróloga que fui hoje  disse que o Esteves é minha alma gêmea!
Dona Damiana deu um risinho de canto de boca:
 -Essa astróloga não deu os números da mega-sena? Não falou que você vai receber aumento?!

Roseane se irritou com a mãe:
-Astrologia não funciona assim. Sabe de uma coisa? Vou tomar meu banho. Não temos diálogo mesmo.
-Isso mesmo, vai  tomar banho, e pára de sonhar!! Melhor estudar para sair detrás daquele balcão de loja . Que Esteves, que  nada! Vê se pode! Alma gêmea!

Antes de dormir, Roseane ligou para Esteves:
-Amor, preciso contar uma coisa  para você.
-Fala princesa, conta.
-Só pessoalmente.
-Mas hoje ainda é quinta. A gente só vai se ver no domingo.
-Domingo? E sábado?
-Sábado não vai dar, princesa. Tenho cursinho de tarde e à noite é o batizado da minha sobrinha.
-E eu não posso ir ao batizado?
-Princesinha, sabe como é, festa de família. Não vou submeter você a uma tortura.

Roseane ficou sentida. Tortura ou não, queria estar ao lado de Esteves. Bronqueou. Houve início de discussão. Esteves acalmou a fera:
-Para não brigar, faremos o seguinte: domingo a gente vê aquele filme que você queria tanto, combinado?
-É, tá. Fazer o quê?
-Faz beicinho não. Abre um sorriso gostoso. Eu sei que você está de biquinho.

Roseane movimentou o corpo, fazendo charminho, como se Esteves estivesse olhando. Com voz meiga se despediu do namorado.
-Tá bom, amor. Conto a novidade no domingo. E não se esqueça: você prometeu ver o filme. Beijo nessa boca linda!

Roseane pegou o mapa astral e fantasiou até adormecer. Sonhou que se casava com Esteves.
No domingo, quando Roseane entrou no carro do namorado, ele logo perguntou:
-O que você queria  me falar na quinta-feira!?
-Depois do cinema. Vou fazer um suspense básico.

O  filme acabou e o casalzinho foi para a praça de alimentação do shopping:
-Queria fazer uma pergunta para você, Esteves!
-Fala amor. Sou todo seu.
-Você acredita em alma gêmea?
-Alma gêmea? Não sei... nunca pensei nisso.
-Acredita ou não?
-Sei lá. Você vem com essa novidade. Acho meio bobo esse negócio.
-Fiz uma pergunta e quero que você responda. Sim ou não?
-O que você quer que eu diga?
-A verdade.
-Tá bom. Acho que esse troço não existe!
-Existe, sim!
-Ah é? Então porque perguntou?
-Você é minha alma gêmea!
-Euuuuuuuu? E quem falou uma coisa dessas para você?
-Uma astróloga. Fiz meu mapa astral e também a sinastria amorosa.
-Sina o quê? Que viagem Roseane!
-Não é viagem. É verdade. Ficaremos juntos para sempre. Combinamos em tudo!
-Sei, entendo.

A conversa esvaziou. Esteves mudou de assunto, deixou Roseane em casa e se despediu com um beijo frio. Saíram mais três vezes. Na terceira saída, Esteves terminou o namoro.
-Como? Você é minha alma gêmea!
-Até posso ser. Mas no momento estou ocupado: estudo para concurso, trabalho e não tenho tempo para ser a alma gêmea de ninguém.

Roseane bateu o pé. Se descabelou. Ameaçou. Esteves se despediu e não atendeu nem o telefone quando ela ligou.
Com raiva, pegou a amiga Aurealina pelo braço:
-Eu vou na Madame Nercina  tomar satisfação!
-Eu disse, Roseane, eu disse para você desconfiar. Olha no que deu. Ficou sem namorado. Essa conversa de alma gêmea assustou o cara.
-Cala a boca, Aurealina ! Já estou p da vida e você enchendo  meus ouvidos!

A astróloga relutou em atender Roseane. Alegou que não tinha horário.
Roseane fez plantão na porta da casa dela. 
-Entra, Roseane, arranjei uma vaga para você. Vou consultar os astros.

Durante um tempo, desenhou, fez mapas, pegou canetas, Roseane olhava, curiosa e ansiosa, na esperança de que os astros lhe dessem uma boa resposta:
-Já tem o resultado? O que aconteceu?
A astróloga franziu o cenho. Balançou a cabeça, mordeu o lábio inferior.
-É, os astros se enganaram.
-Se enganaram? Como?!
-Uma conspiração interplanetária numa fase da lua inconstante levou a esse equívoco. Vocês não têm nada em comum. Os signos combinam, mas se chocam no ar, formando um gás, uma espécie de conjunção planetária  diferenciada.
-Pera aí! Não entendi nada! Dá para explicar melhor?
-Resumindo: vocês não são almas gêmeas. Enganos acontecem.

Roseane se levantou da cadeira, furiosa. Se preparou para sair. A astróloga segurou a jovem pelo braço:
- Ei, mocinha: 50 reais a consulta!

Radialista e jornalista, trabalhou como produtora, repórter e redatora nas Rádios Fm O DIA, Tropical e Rádio Globo. Atualmente, é Produtora-Executiva da  Rádio Tupi. Lecionou, recentemente, Telemarketing,  atendimento ao público e comportamento do Operador , mas sua paixão é escrever, notadamente poesias e contos.

Uma rosa para Emily

* Por William Faulkner

Quando Miss Emily Grierson morreu, toda a nossa cidade compareceu ao enterro: os homens em atenção a essa espécie de carinho respeitoso que se tem por um monumento tombado; as mulheres movidas pela curiosidade de ver o interior de sua casa, onde ninguém entrara nos últimos dez anos, exceto um velho negro, ao mesmo tempo cozinheiro e jardineiro.

Era um casarão quadrado, de madeira, outrora branco, decorado de cúpulas, de flechas, de balcões, no estilo pesadamente frívolo da época de 1870, situado na rua que já tinha sido a mais distinta da cidade. Mas as garagens e as debulhadoras de algodão, multiplicando-se em derredor, acabaram por fazer desaparecer até os nomes augustos daquele bairro. A casa de Miss Emily era a única, levantando sua decrepitude teimosa e faceira acima dos vagões de algodão e das bombas de gasolina. Emily tinha ido juntar-se aos representantes daqueles nomes augustos, no cemitério adormecido sob os cedros, onde jaziam entre os túmulos enfileirados e anônimos, dos soldados da União e dos Confederados mortos no campo de batalha de Jefferson.

Viva, Miss Emily fora uma ‘tradição, um dever e um aborrecimento: espécie de obrigação hereditária, pesando sobre a cidade desde o dia em que, em 1894, o Coronel Sartóris (o prefeito que baixou o decreto proibindo às negras saírem à rua sem avental) a isentara do pagamento de impostos, isenção definitiva, que datava da morte de seu pai. Isto não quer dizer que Miss Emily aceitasse a caridade. O Coronel Sartóris inventara a complicada história de um empréstimo em dinheiro, feito pelo pai de Miss Emily à cidade e que a cidade, por conveniência própria, preferia reembolsar dessa maneira. Só um homem da geração e com as idéias do Coronel Sartóris poderia ter imaginado semelhante coisa, e só uma mulher poderia ter acreditado.

Quando a geração seguinte, com suas idéias modernas, deu, por sua vez, prefeitos e intendentes municipais, essa concessão provocou alguns descontentamentos. No primeiro dia do ano, dirigiram a Miss Emily uma notificação de impostos. Fevereiro chegou, sem trazer resposta. Enviaram-lhe uma carta oficial, pedindo-lhe para passar, quando pudesse, no gabinete do delegado. Na semana seguinte, o próprio prefeito lhe escreveu, oferecendo-se para ir, em pessoa, à sua casa, ou para mandar buscá-la no seu carro particular. Recebeu, como resposta, uma folha de papel de feitio arcaico, escrita com tinta desbotada, numa letra miúda e fluente, comunicando-lhe que não saía mais de casa. A notificação dê pagamento de imposto vinha inclusa, sem comentários.

O Conselho Municipal reuniu-se em sessão extraordinária. Uma delegação dirigiu-se à sua casa e bateu naquela porta que nenhum visitante transpusera desde que, oito ou dez anos antes, Miss Emily deixara de dar lições de pintura em porcelana. Os membros da delegação foram introduzidos num saguão escuro, de onde uma escada se projetava para as sombras ainda mais que espessas do andar superior. Havia em tudo um cheiro de poeira, de guardado, de coisas que nunca são usadas -um cheiro de mofo e umidade. O negro conduziu-os ao salão, de mobiliário pesado, forrado de couro. Quando o negro abriu as cortinas de uma das janelas, viram que o couro estava estalado, descascando e, ao se sentarem, uma nuvem leve de pó subiu-lhe preguiçosamente em volta das coxas e se espalhou em círculos vagarosos, desenrolando-se, desagregada, na única réstia de sol. Num cavalete de moldura dourada, perto da lareira, via-se o retrato a carvão do pai de Miss Emily.

Levantaram-se à sua entrada. Era uma mulherzinha pequena e gorda, vestida de preto, com uma fina corrente de ouro descendo-lhe do pescoço até a cintura, onde desaparecia no cós da saia. Tinha a ossatura pequena e delicada; talvez, por isso, o que em outra pessoa seria apenas gordura, parecia, nela, obesidade. Dava a impressão de estar inchada, como um cadáver muito tempo submerso numa água estagnada; tinha, mesmo, de um afogado, a carne lívida e balofa. Seus olhos, perdidos nas intumescências de sua face, lembravam dois pedacinhos de carvão enfiados numa bola de massa e iam de um rosto a outro, enquanto os visitantes expunham o caso.

Não mandou que sentassem. Conservou-se, apenas, em pé no limiar da sala, e esperou tranqüilamente que o porta-voz se interrompesse, balbuciando. Então, puderam ouvir o tic-tac do relógio invisível, preso na ponta de sua corrente de ouro.

Sua voz era seca e fria:
- Não tenho impostos a pagar em Jefferson. O Corenel Sartóris me explicou isso. Talvez um dos senhores possa consultar os arquivos da cidade e dar satisfações aos demais.
- Mas nós o fizemos. Nós somos as autoridades no município, Miss Emily. A senhora não recebeu a notificação assinada pelo delegado?
- Sim, recebi um papel – disse Miss Emily. – Talvez ele se considere realmente o delegado… Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
- Mas não há, nos livros, nada que o possa provar. Veja a senhora… É preciso que nós…
- Procurem o Coronel Sartóris. Não tenho impostos a pagar em Jefferson.
- Mas, Miss Emily -
- Procurem o Coronel Sartóris. (Havia quase dez anos que o Coronel Sartóris estava morto) – Não tenho impostos a pagar em Jefferson. Tobe! – O negro apareceu. – Acompanha estes cavalheiros.

Assim ela os venceu irremediavelmente, como já lhes vencera os pais, trinta anos antes, a respeito do cheiro. Isso aconteceu dois anos após a morte de seu pai, e quase em seguida à ocasião em que o namorado – aquele mesmo que nós pensávamos iria se casar com ela – a abandonou. Aquela morte e o abandono do namorado fizeram que ela depois pouco saísse de casa. Algumas senhoras tiveram a temeridade de ir visitá-la, mas não foram recebidas e, naquela casa, o único sinal de vida era o negro – ainda moço, então – que entrava e saía com um cesto de compras.
- Como se um homem – seja quem for! – pudesse conservar limpa uma cozinha! – diziam as senhoras. 

Assim, ninguém se surpreendeu quando se começou a sentir o cheiro. Foi um novo laço que se estendeu entre a gente grosseira e prolífica do bairro e os grandes e poderosos Grierson.

Uma mulher, sua vizinha, foi queixar-se ao prefeito, Juiz Stevens, que contava, então, oitenta anos.
- Mas que quer a senhora que eu faça? – perguntou ele,
- Ora, que ela acabe com isso – disse a mulher. Não existe lei?
- Estou certo de que não será necessário – afirmou o Juiz Stevens. Provavelmente, é só uma cobra ou um rato que o negro matou no quintal. Amanhã falarei com ele a esse respeito.

No dia seguinte, recebeu duas novas queixas; uma partiu de um homem, que apresentou uma súplica tímida.
- Nós precisamos, realmente, fazer alguma coisa nesse caso, sr. Juiz. Eu seria a última pessoa neste mundo capaz de incomodar Miss Emily, mas precisamos fazer alguma coisa.

Nessa mesma noite, reuniu-se o Conselho Municipal: três barbas grisalhas e um rapaz moço, membro da nova geração.
- A coisa é muito simples – disse o moço. – Mandem. lhe dizer para limpar a casa. Dêem-lhe um certo prazo para obedecer e, se ela não…
- Deus me livre, senhor! – exclamou o Juiz Stevens. Quer então dizer a uma senhora, nas bochechas, que ela cheira mal?

Assim, na noite seguinte, de madrugada, quatro homens atravessaram o gramado do jardim de Miss Emily e, como assaltantes, rondaram a casa, farejando os alicerces de tijolos e os respiradouros do porão, enquanto um deles, com um saco nos ombros, fazia, com regularidade, o gesto do semeador. Arrombaram a porta da adega, que salpicaram de cal, assim como todas as dependências. Quando, de volta, atravessaram o gramado, uma janela, até então sombria, iluminou-se de repente e viram Miss Emily sentada à contraluz, ereta, rígida, imóvel como um ídolo. Atravessaram em silêncio o gramado, metendo-se por entre as sombras das acácias que margeavam a rua. Depois de uma ou duas semanas, o cheiro desapareceu.

Isso foi quando as pessoas começaram realmente a ter pena dela. A gente de nossa cidade, que se lembrava de Lady Wyatt, sua tia-avó, que acabara louca, achava que os Grierson se julgavam muito mais importantes do que eram na realidade. Nenhum dos rapazes da cidade fora jamais considerado à altura de Miss Emily. Nós os imaginávamos muitas vezes como um quadro: ao fundo, Miss Emily, esguia figura vestida de branco; no primeiro plano, a silhueta de seu pai, virando-lhe as costas, com as pernas abertas, um chicote na mão; ambos, enquadrados pelos caixilhos da porta escancarada. Assim, quando ela chegou aos trinta anos ainda solteira, não posso dizer que isso tenha causado uma verdadeira alegria, mas nós, os rapazes, nos sentimos vingados; mesmo com os casos de loucura na família, ela não teria virado as costas a todas as oportunidades, se essas se tivessem verdadeiramente materializado.

Morto o pai, correu o boato de que só lhe tinha ficado a casa de herança, o que, de certo modo, alegrou todo mundo. Até que enfim, podiam apiedar-se de Miss Emily. Sozinha e na pobreza, iria humanizar-se. Agora, ela também conheceria a velha satisfação e o velho desespero de um vintém a mais ou de um vintém a menos.

No dia seguinte ao da morte do velho, as senhoras da cidade preparavam-me para ir à sua casa, apresentar-lhe os pêsames, conforme o costume. Miss Emily recebeu-as no limiar da porta, vestida como nos outros dias, e sem a menor marca de tristeza ou sofrimento na expressão. Disse-lhes que o pai não tinha morrido. Repetiu essas palavras durante três dias, quando os pastores e os médicos iam vê-la, tentando persuadi-la a deixar dispor do cadáver. Mas, no momento em que estavam resolvidos a recorrer à Lei e à força, ela cedeu, e enterraram-lhe o pai a toda pressa.

Não se disse, então, que estava louca. Pensamos que tinha agido como devia. Lembrávamo-nos de todos os moços que seu pai afastara, e sabíamos que, achando-se sem nada, ela deveria agarrar-se àquele que a despojara de tudo, como em geral acontece.

Esteve muito tempo doente. Quando tornamos a vê-la, tinha os cabelos cortados, o que a fazia parecer uma menina e lhe dava uma vaga semelhança com os anjos dos vitrais de igreja – uma mistura de trágico e sereno.

A cidade acabava justamente de firmar o contrato para pavimentação das calçadas e, no verão que seguiu a morte de seu pai, começaram os trabalhos. A companhia construtora trouxe negros, mulas e máquinas, e um contramestre chamado Homer Barron, um “yankee”, homem grande, moreno e decidido, com um vozeirão enorme e olhos mais claros do que a pele do rosto. Os garotos seguiam-no aos bandos, para ouvi-lo gritar com os negros, e para ouvir os negros cantando em compasso, enquanto erguiam e abaixavam a picareta. Em breve, o contramestre conhecia toda a gente da cidade. Cada vez que se ouviam ruidosas gargalhadas na praça, podia-se jurar que Homer Barron estava no centro do grupo. Não tardamos a avistá-lo, nos domingos à tarde, passeando com Miss Emily na carriola de aluguel, que tinha rodas amarelas e era puxada por uma parelha de cavalos baios.

A princípio, todos ficaram satisfeitos de ver que Miss Emily tinha agora um interesse na vida. As senhoras andavam dizendo: “Naturalmente, nunca uma Grierson tomará a sério um nortista, um assalariado.”

Mas havia outras pessoas, as mais velhas, que achavam que nem mesmo o desgosto deveria fazer que uma verdadeira senhora se esquecesse de que “noblesse oblige”. (Sem no entanto, empregar essa expressão: Noblesse oblige). Diziam, apenas: “Pobre Emily. Os parentes deviam procurá-la.”

Tinha parentes em Alabama, mas, alguns anos antes, o pai rompera com eles por causa da herança da velha Lady Wyatt, a louca, e não havia mais relações entre as duas famílias. Nem sequer se tinham feito representar no enterro.

E, mal a gente velha exclamou “Pobre Emíly”, os mexericos começaram: “Vocês imaginam que, realmente. . .” diziam uns para os outros. – “Mas nem há dúvida. Porque, a não ser isso. . ” tudo sussurrado atrás das mãos no amarrotado farfalhar de sedas e cetins por detrás das janelas fechadas ao sol das tardes de domingo, enquanto a parelha de cavalos baios passava num leve e apressado clop-clop-clop. – “Pobre Emily!”

Ela, porém, erguia a cabeça bem alto, mesmo quando pensávamos que tinha decaído. Parecia, mais do que nunca, exigir que se reconhecesse sua dignidade de última dos Grierson, como se fosse necessário aquele toque de vulgaridade terrestre para acentuar mais profundamente a sua impenetrabilidade. Tal como no dia em que comprou o veneno para ratos, o arsênico. Isso aconteceu um ano depois de terem começado a dizer:

“Pobre Emily”, e quando as duas primas estavam hospedadas em sua casa.
- Quero comprar veneno – disse ao farmacêutico. Contava, então, mais de trinta anos; era ainda delgada, embora estivesse mais magra do que de costume, com os olhos negros, altivos e frios num rosto cuja pele se repuxava na altura das têmporas e em volta das pálpebras, como se imaginava que deveria ser o rosto de um guardião de farol. – Quero comprar veneno.
- Pois não, Míss Emily. Que espécie de veneno? para ratos ou qualquer coisa assim? Recomen…
- Quero o que o senhor tiver de melhor. Não importa qual seja.

O farmacêutico citou alguns:
- Matariam até mesmo um elefante. Mas o que a senhora quer e…
- Arsênico – disse ela. – É bom?
- É… arsênico? Pois sim, senhora. Mas o que a senhora quer ….
- Eu quero arsênico.
- Pois, naturalmente – disse ele. – Se é isso que a senhora quer. Porém, a lei determina que a senhora declare o fim que dará ao veneno.

Miss Emily limitou-se a fitá-lo, com a cabeça pendida para melhor fixar os olhos nos olhos dele, até forçá-lo a desviar o olhar e a ir buscar o arsênico, que embrulhou. O caixeiro negro que fazia entregas trouxe-lhe o pacote, pois o farmacêutico não tornou a aparecer. Ao chegar em casa, tirou o papel; na tampa da caixa, debaixo da caveira e os dois ossos, estava escrito: “Para ratos”.

Assim, no dia seguinte, nós dizíamos: “Ela vai suicidar-se”, e achávamos que era a melhor solução. Quando começáramos a vê-la com Homer Barrou, tínhamos dito: “Vai casar-se com ele”. Depois, dizíamos: “Ela ainda acabará por persuadi-lo”, porque o próprio Homer observava – gostava da companhia dos homens e sabia-se que bebia com os rapazes no Elk’s Club – que não era feito para casamento. Mais tarde, dissemos: “Pobre Emily”, por detrás das venezianas, quando ambos passavam, nas tardes de domingo, na carriola vistosa, Miss Emily de cabeça erguida e Homer Barrou com o chapéu de lado e um charuto entre os dentes, segurando as rédeas e o chicote nas luvas amarelas.

Então, algumas senhoras começaram a declarar que aquilo era uma vergonha para a cidade e um mau exemplo para a gente moça. Os homens não ousavam intervir, mas, finalmente, as mulheres forçaram o pastor batista – a gente de Miss Emily era episcopal – a ir procurá-la. O pastor negou-se sempre a contar o que acontecera durante a entrevista e recusou-se a voltar à sua casa. No domingo seguinte, saíram juntos novamente e, no outro dia, a mulher do ministro escreveu aos parentes de Miss Emily, em Alabama.

Dessa forma, ela teve pessoas de seu sangue outra vez debaixo de seu teto e nós ficamos todos à espera dos acontecimentos. A princípio, nada aconteceu. Depois, ficamos convencidos de que iam se casar. Soubemos que Miss Emily fôra à joalheria e encomendara um jogo de toucador para homem, todo de prata, com as iniciais II. B. gravadas em cada peça. Dois dias mais tarde, fomos informados de que comprara um enxoval masculino completo, inclusive uma camisola de dormir, e dissemos: “Estão casados”. E ficamos contentes, porque as duas primas eram mais Grierson ainda do que Miss Emily jamais o fora.

Não tivemos grande surpresa quando, terminado o calçamento das ruas, Homer Barron partiu. Sentimo-nos um pouco decepcionados por não ter havido nenhuma manifestação pública de regozijo, mas julgamos que se tivesse afastado para preparar a ida de Miss Emily, ou para lhe dar a oportunidade de se livrar das primas. (Por essa época formáramos uma verdadeira cabala, e éramos todos aliados de Miss Emily no sentido de ajudá-la a alijar as primas). O que é certo é que elas partiram ao fim de outra semana. E, como esperávamos, no terceiro dia após essa partida, Homer Barron estava de volta à cidade. Os vizinhos viram o negro abrir-lhe a porta da cozinha, uma tarde ao escurecer.

Foi essa a última vez que vimos Homer Barron. E, durante algum tempo, não tornamos também a ver Miss Emily. O negro ia e vinha com a cesta das compras, mas a porta da entrada continuava fechada. Uma vez ou outra conseguimos avistá-la à janela por alguns instantes, como naquela noite em que os homens foram à sua casa espalhar a cal; durante mais de seis meses, porém, ela não apareceu nas ruas. Compreendemos que isso também era de esperar; como se aquele aspecto do caráter de seu pai, que tantas vezes constrangera sua vida de mulher, fosse virulento e furioso demais para morrer assim.

Quando a vimos novamente, Miss Emily tinha engordado muito e seus cabelos estavam ficando grisalhos. Nos anos seguintes, foram ficando cada vez mais grisalhos, até o momento em que, tendo adquirido um tom cinzento-de-aço, sua cabeleira não mudou mais de cor. Até o dia de sua morte, aos setenta e quatro anos, aqueles cabelos conservavam ainda esse vigoroso tom cinzento-de-aço, como os cabelos de um homem ativo.

Desde aquela época, sua porta ficara fechada, exceto no decorrer de um período de seis ou sete anos, quando ela, quarentona, dava aulas de pintura em porcelana. Instalara, num aposento do andar térreo, o atelier onde as filhas e netas dos contemporâneos do Coronel Sartóris lhe eram enviadas com a mesma regularidade e dentro do mesmo espírito com que as mandavam à igreja, nos domingos, munidas de uma moedinha de vinte centavos para a hora da coleta. Nesse ínterim, Miss Emily se vira dispensada do pagamento de impostos.

A nova geração tornou-se, então, a espinha dorsal e a alma da cidade, as alunas cresceram e dispersaram-se, e não lhe mandaram as filhas com as caixinhas de tinta, os aborrecidos pincéis e os modelos recortados das revistas ilustradas femininas. A porta fechou-se sobre a última aluna e ficou fechada desde então. Quando a cidade adotou a distribuição gratuita do correio, Miss Emily foi a única pessoa que se negou a consentir que fixassem um número de metal acima de sua porta e uma caixa postal ao lado. Não houve argumento que a convencesse.

Dias, meses e anos, vimos o negro, cada vez mais grisalho e curvado, entrando e saindo com a cesta de compras. Anualmente, em dezembro, mandavam-lhe a declaração de impostos, que o correio devolvia na semana seguinte, com a nota de não haver sido reclamada. Uma vez ou outra, nós a avistávamos diante da janela do andar térreo – tinha, evidentemente, fechado todo o andar superior da casa – semelhante ao busto esculpido de um ídolo no seu nicho, e nunca chegamos a saber se estava olhando para nós, ou se nem sequer nos via. E assim passou ela de geração para geração – querida, inevitável, impenetrável, tranqüila e perversa.

E, então, ela morreu. Caiu doente no seu casarão cheio de sombras e de pó, tendo como único auxílio o negro caduco. Nem ao menos soubéramos que estava doente, pois havia já muito tempo que desistíramos de arrancar qualquer informação ao negro. Não falava com pessoa alguma, talvez nem mesmo com ela; sua voz se tornara áspera e rouquenha como uma voz que não serve nunca.

Morreu num dos quartos do andar térreo, numa cama de nogueira maciça com cortinados, a cabeça grisalha erguida por um travesseiro amarelo e mofado pelo tempo e pela falta de sol.

O negro encontrou a primeira das senhoras na porta da frente; deixou-as entrar, com suas vozes sussurradas e sibilantes, com seus olhares rápidos, furtivos e curiosos, e depois desapareceu. Meteu-se pela casa a dentro, atravessou-a toda, saiu pelos fundos e sumiu para sempre.

A duas primas não tardaram a chegar. Fizeram o enterro no segundo dia. A cidade em peso compareceu para ver Miss Emily coberta por um montão de flores compradas, o retrato, a carvão, de seu pai profundamente pensativo, acima do caixão, cercado pelas senhoras sibilantes e macabras. No saguão e no gramado, homens, muito velhos – alguns nos uniformes de confederados muito bem escovadinhos – falavam de Miss Emily como se fosse uma de suas contemporâneas, imaginando que tinham dançado com ela, e até mesmo, talvez, que a tinham namorado, confundindo o tempo e a progressão matemática, como fazem os velhos, para os quais o passado não é uma estrada que se vai encurtando, porém uma vasta planície nunca atingida pelo inverno, dividida para eles, agora, pelo estreito gargalo da ampulheta dos últimos dez anos.

Nós todos já sabíamos da existência, naquela região, do andar superior, onde ninguém pisara há quarenta anos, de um quarto fechado que seria preciso arrombar. Esperamos que Miss Emily estivesse docemente enterrada, antes de forçá-lo.

A violência com que pusemos a porta abaixo pareceu encher o quarto de uma poeira penetrante. Era como se uma mortalha, tênue e acre, se estendesse sobre todas as coisas daquele quarto, mobiliado e enfeitado para urna noite de núpcias: sobre as desbotadas cortinas de pesada seda cor-de-rosa, sobre os quebra. Luzes rosados das lâmpadas, sobre a penteadeira, sobre os delicados objetos de cristal, sobre as peças do aparelho de toucador para homem, com seus dorsos de prata embaciados, tão embaciados que nem se distinguiam os monogramas escurecidos.

Entre os pertences do toucador, estavam jogados um colarinho e uma gravata, como se tivessem acabado de tirá-los naquele momento; quando os levantamos, deixaram na superfície uma pálida meia lua traçada na poeira. O terno de roupa estava dobrado cuidadosamente numa cadeira, debaixo da qual se viam os dois sapatos mudos e as meias largadas no chão.

E o homem estava deitado na cama.

Durante muito tempo, ali ficamos, imóveis, olhando para o seu ríctus profundo e descarnado, O corpo devia ter, a principio, repousado na atitude de carícia, abraçado a outro corpo, mas agora o grande sono que sobrevive ao amor, o grande sono que vence até mesmo as carícias do amor, dominara-o afinal. O que restava dele, em decomposição dentro do que restava de sua camisola de dormir, tornara-se inseparável do leito em que jazia; e sobre ele, assim como sobre o travesseiro vazio ao seu lado, estendera-se aquela camada espessa de paciente e obstinada poeira.

Notamos, então, que no segundo travesseiro havia a marca funda de uma cabeça. Um de nós encontrou qualquer coisa caída sobre esse travesseiro e, debruçando-se, enquanto a leve, impalpável poeira acre e seca, nos entrava pelas narinas, vimos um longo fio de cabelo de um tom cinzento-de-aço.


* Escritor norte-americano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1949. 
As Armações de Baleia

* Por Urda Alice Klueger

Fico pensando nas muitas Armações que existem pelo litoral brasileiro. Eu só conheço três: a de Itapocoroy, a do Pântano do Sul e a de Garopaba (lá em Garopaba já não se usa a palavra Armação, mas tanto quanto sei, houve uma naquela enseada). Normalmente, são lugares muito bonitos e aconchegantes, e eu imagino a maioria de vocês a perguntarem: “Por que é que se chamam Armação? O que quer dizer Armação?”.

Vamos ver isto. Lá pelo século XVIII e XIX, a iluminação da Europa (e de outros lugares) era movida a óleo de baleia. O óleo de baleia vai perder a sua importância com a descoberta da querosene, o que, por sorte, salvou as baleias que ainda teimavam em viver num mar coalhado de seus caçadores. E o lugar onde se “fritava” a baleia (claro que depois de picá-la toda em pedacinhos), eram grandes construções industriais que se chamavam Armações.

Não pense você que alguma dessas Armações trouxe algum progresso ao Brasil – todo o dinheiro produzido por causa delas ia diretinho para os cofres de Portugal, não ficava nem uma moedinha aqui para a terra de Santa Cruz. O que ficou foram ossos, muitíssimos ossos de baleias que ainda restam nos jardins das casas das antigas Armações, e a lembrança levantada recentemente por uma pesquisadora da UNIVALI, Alejandra Luna, que descobriu que até a década de 1950 ainda se caçavam baleias na praia de Barra Velha/SC, e foi lá e pesquisou com os velhinhos, e nos trouxe uma realidade que me deixou pasma ao ler sua pesquisa, publicada numa das revistas daquela universidade. Segundo contam os moradores de Barra Velha, a morte de uma baleia pesteava totalmente uma praia por semanas e meses: o óleo da mesma se entranhava na areia, e tinha que haver muita e muita maré cheia e ressaca de mar para revolver e limpar a areia, sem contar que a quantidade de carne de um bicho enorme daqueles não tinha como ser comida por pessoas e cachorros das pequenas populações de então, e acabava apodrecendo, e deixando no ar o cheiro mais pestilencial que se possa imaginar. Então, uma Armação não era uma coisa tão idílica como eu havia pensado até então – outro relato que li me contou dos grandes tachos onde o toucinho da baleia era fervido, das emanações da fumaça acre, mal-cheirosa e quentíssima, dentro da qual trabalhavam os escravos que ali passavam suas vidas.

Pois é, os escravos. De tudo o que tenho lido a respeito deles na vida, com certeza a pior sina que tinham eram a de ser trabalhadores das Armações. Para dar conta dos pesados serviços de lá, eles eram escolhidos entre os mais jovens, os mais fortes, os mais capazes. Então, iam para uma das Armações, e como que lhes era sugada toda a sua seiva vital: trabalhavam até já não ter mais nenhuma força, nenhuma vitalidade, e então eram abandonados como que à deriva, nas imediações das Armações, sem comida, sem nenhum tratamento, e ficavam à espera da morte. Se algum mortal resolvesse lhes fazer a caridade de alguma comida, de algum abrigo, eles poderiam considerar-se com sorte – a grande empresa Capitalista que era a Armação, porém, agia exatamente como age o Capitalismo hoje: não estava nem aí! E havia outro agravante para a péssima qualidade de vida desses escravos: eles iam para a Armação enquanto jovens e cheios de saúde, e por toda a sua vida não tinham, nem uma vezinha, a possibilidade de algum contacto com alguma mulher. Há que pensarmos que um ou outro acabasse se agradando de algum outro bonito e saudável rapaz, e então preenchesse no coração a sua cota de emoção e carinho – mas a grande maioria, como em qualquer sociedade, deveria passar a vida ansiando por ter uma mulher para si. É difícil a gente imaginar vida mais ruim, não é? E eles não tinham a menor escolha.

Então, hoje, freqüentamos as Armações e achamos tudo lindo, por lá. Os fantasmas dos nossos irmãos escravos, a estas alturas, já voaram para muito longe, para plagas melhores, e nós nunca nem pensamos que eles existiram. E comemos camarão com caipirinha sem o menor peso na consciência., naqueles mesmo lugares onde no passado houve o horror!

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR


Dona Maria, uma brasileira

* Por Clóvis Campêlo


Descobri Dona Maria em Mirandiba, vendendo comida perto da feira. Era um dia de sexta feira e nós estávamos na cidade movidos pela curiosidade e pelo inusitado.

Mirandiba fica no sertão de Pernambuco, a 423 quilômetros do Recife, na região do Rio Pajeú, desgarrada da rodovia BR-232. Com pouco mais de 13 mil habitantes, entrou para a história política do Estado por ter sido a primeira cidade pernambucana a eleger um prefeito do Partido dos Trabalhadores.

Na época, eu fazia parte da Secretaria de Imprensa do Sindicato dos Previdenciários de Pernambuco e acompanhado da jornalista Wedja Gouveia e de Manoel, motorista, fomos em busca da matéria para o nosso jornal, o SindPress.

Queríamos entender como "o modo petista de governar" havia sensibilizado o povo daquele grotão perdido nos confins do Estado, em 1994. O que haveria mudado para que isso acontecesse?

O prefeito eleito pelo PT, Nelson Pereira, hoje deputado estadual pelo Partido Comunista do Brasil, era oriundo do PMDB e chegara ao poder depois de uma briga regionalizada onde o que menos interessava era a sigla partidária. Ou seja, mudara tudo e não mudara nada. Continuava tudo na mesma.

Tentamos conversar com Dona Maria sobre isso, mas para ela a vida era ir à feira e vender os seus quitutes. Não tinha nem ilusões e nem desilusões. Já se acostumara com a alternância dos coronéis no poder e instintivamente sabia que nada disso modificaria a sua vida.

E na verdade, a passagem do Partido dos Trabalhadores pelo poder, naquela pequena cidade do sertão pernambucano, em nada transformou o seu perfil ou a qualidade de vida do seu povo. O modo petista de governar era muito mais um refrão do que uma nova perspectiva de realidade.

E Dona Maria, uma brasileira, continuaria a sua rotina de fazer e vender comida na feira esperando que um dia o futuro finalmente chegasse a Mirandiba.


* Poeta, jornalista e radialista
E a Síria?

* Por Paulo Reims

A tão propalada primavera árabe, que aos poucos está caminhando para um inverno rigoroso e persistente, pois é exatamente isto que vão provando os desdobramentos, levou alguns opositores do governo sírio a iniciar, em março de 2011, uma revolta com o objetivo, não muito confiável, de derrubar o presidente daquele país, que mantinha uma economia estabilizada.

A iniciativa se transformou em uma guerra civil que já levou muita destruição, violência, e ao redor de cem mil pessoas mortas. Mas o que tem por trás de tudo isso, quem mantém esta guerra civil? Como sempre os Estados Unidos, sob a maquiagem de protetor dos povos e nações, quer impor sua liderança ao mundo a qualquer preço, especialmente àquelas nações com muitas riquezas naturais, para poder explorá-las à sua maneira.

A Síria é rica em petróleo e gás natural; mais que isso, ela é ponto estratégico para poder invadir também o Iran. Portanto, dominada a Síria, vão em busca da próxima vítima tão deseja.

Foi assim que invadiram o Afeganistão em 2001, para depois invadirem o Iraque em 2003, sob o pretexto de que Sadam Hussein dispunha de armas de destruição em massa, nunca encontradas. Só encontraram as riquezas naturais do povo iraquiano.

E desta forma vão levando guerra sobre guerra à guisa de proteção, como se não soubéssemos que violência gera violência, e que seus objetivos visam aumentar seu capital e poderio bélico.

Aos Estados Unidos se aliam as suas colônias da União Europeia e outros países, cujos dirigentes dobram seus joelhos ao odiado e amado Tio Sam.

Já no ano de 2006, os EUA tentaram derrubar o presidente sírio, com a ajuda de seus assessores mais próximos, segundo informação divulgada pelo Wikileaks, obtida na embaixada dos Estados Unidos em Damasco.

São dois anos de sofrimentos do povo sírio, ao qual os EUA quer atacar militarmente, a partir do dia 29/08.

O motivo dado para o ataque é o de que o governo sírio teria usado armas químicas, no último dia 21/08, quando centenas de pessoas morreram vitimadas por elas. Os dirigentes ocidentais aceitaram a denúncia dos ‘rebeldes’ de que o governo sírio foi quem lançou as armas químicas. A denúncia foi feita antes que se iniciasse o recolhimento das provas.

O que pensar disso? Que também os ‘rebeldes’ possam ter lançado as armas químicas? Existem grandes possibilidades de eles terem agido assim, a mando dos seus arregimentadores, para depois incriminar o governo sírio, e ter motivo para uma ação militar imediata, talvez sem autorização da ONU.

E os tiros nos carros dos agentes da ONU que foram até o local do lançamento das armas químicas? Quem pode garantir que não foram os ‘rebeldes’ que agiram assim para amedrontá-los a fim de que recuassem para não obter as provas contra eles mesmos?

Mas quem são estes ‘rebeldes’? Como vimos, são pessoas da própria Síria, contrárias ao governo, e que querem o poder para si, juntamente com outras pessoas arregimentadas pelo imperialismo estadunidense, em outros países árabes, e outros, que buscam junto com os EUA e seus comparsas as vantagens oriundas destes atos terroristas. Sim, são mercenários que estão aí para enfrentar qualquer situação, matando por todo lado, desde que tenham o seu quinhão. Entre os ‘rebeldes’ existem também os incautos, obtusos e inocentes úteis. São mantidos economicamente, e com armas, pelos EUA e seus aliados.

É interessante dizer aqui que a manifestação orquestrada pela direita fascista, com o aval e apoio da CIA, para o próximo dia 7 de setembro, no Brasil, tem um pouco de semelhança com os grupos que iniciaram a desditosa primavera árabe.

É preciso pensar bastante antes de aderir a esta manifestação. Você já pensou que esta pode ser uma forma de estar colaborando para o início de uma guerra civil, que pode culminar com uma intervenção militar, que muito sangue inocente pode ser derramado, e que seu sonho pode se transformar num pesadelo longo? Não sou contra as manifestações, muito pelo contrário, mas há manifestações e manifestações... Mesmo entre as manifestações sérias há infiltrados. Muita cautela...

O fato é que se os EUA e seus vassalos atacarem mesmo a Síria, um revide haverá, com consequências funestas imprevisíveis.

O correto é deixar os agentes da ONU fazerem suas investigações e constatações in loco, e se ficar comprovado o uso de armas químicas, que sejam punidos os responsáveis, do governo ou dos ‘rebeldes’.

A despeito de tudo, lembremo-nos sempre de que toda guerra é estúpida. É precisar dar lugar ao diálogo sincero, às negociações honestas, que visem o bem dos povos e a paz entre as nações.


* Jornalista

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 7 anos e cinco meses de existência. .

Leia nesta edição:

Editorial – Você decide.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica, “Magrão, o goleiro do Sport”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, conto “Clara”.

Coluna Observações e reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, homenagem, “As fotografias”.

Coluna no Sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto “Nós, os honestos”.

Coluna Porta Aberta – Marcos Romão, artigo “Negras médicas e domésticas”.


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.