quarta-feira, 31 de agosto de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Histórias que a vida cria

Coluna De Corpo e Alma – Mara Narciso, crônica “Lagartas, girinos e mariposas”.

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, relato histórico “O Cabeleira é solto”.

Coluna Personalidade e Atitude – Sayonara Lino, crônica “O casal”.

Coluna Porta aberta – Marleuza Machado, crônica “Cumprindo metas”

Coluna Porta Aberta – Ana Flores, crônica “Cadê a água que estava aqui?”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Histórias que a vida cria

Há determinados escritores cujas vidas são mais repletas de aventuras e circunstâncias ( boas e más) do que os enredos que criam em seus romances, contos e novelas. Muitos aproveitam essas experiências pessoais, adaptando-as, com seu talento, e produzem obras imortais, best-sellers, cujas raízes estão fincadas bem fundas na veracidade. Outros tantos, aproveitam um ou outro episódio para esse fim e também se dão bem.
Não é a primeira – e certamente não será a última – vez que faço essa constatação. Tenho trazido, até com freqüência, exemplos e mais exemplos a esse propósito. Muitos dos meus melhores contos tiveram, também, essa origem. Ou seja, baseiam-se em fatos reais, em episódios que vivi e que mereceram registro. Foram histórias que a vida criou e que eu me limitei a registrar por escrito, dando-lhes os devidos retoques literários.
Um dos escritores que se valeram da própria experiência, do que testemunhou e viveu para produzir magníficos textos dramáticos, foi o norte-americano Eugene Gladstone O’Neill. E o que escreveu teve tamanha qualidade, que lhe rendeu justíssimo Prêmio Nobel de Literatura.
O genial dramaturgo nasceu em 16 de outubro de 1888, no quarto número 236 do terceiro andar da Barret House, pensão familiar situada na Broadway, em Nova York, ocupada quase que exclusivamente por atores que atuavam nos diversos teatros desse popular bairro novaiorquino. O próprio local do seu nascimento pareceu indicar qual seria seu destino, anos depois: o palco. Não como ator, como era o caso do pai, mas como criador de magníficos dramas, encenados não apenas nessa “Meca do teatro”, mas pelo mundo afora.
A família de Eugene não tinha residência fixa. O pai, James, descendente de irlandeses, católico fervoroso e homem de grande talento, era uma espécie de cigano, vagando pelo país com as várias companhias de teatro que integrou. Os que o conheceram testemunharam que esse ator era o caso típico do sujeito que desperdiçava o talento que tinha, errando, frequentemente, nas escolhas que fazia. Mas não se tratava de nenhum ator canastrão. Era, na verdade, muito bom no que fazia.
Sua especialidade eram as peças de William Shakespeare. James O’Neill era soberbo, por exemplo, na interpretação do principal personagem de “Otelo”, entre tantos outros criados pelo gênio de Stratford-on-Avon. Entretanto, fascinado pelo dinheiro fácil, preferia, via de regra, trabalhos menos exigentes. Seu personagem predileto, por exemplo, era o convencional Edmund Dantes, de “O conde de Monte Cristo”, peça que então gozava de grande popularidade nos Estados Unidos, percorrendo a América de costa a costa.
A vida de James era a de um nômade urbano, abrigando-se numa interminável sucessão de pensões e mais pensões, baratas, desconfortáveis e sombrias e hotéis de terceira categoria, sem uma raiz para se fixar e constituir família. A mãe de Eugene, Ella Quinlan, é quem sofria as conseqüências desse tipo de vida instável e inseguro. Era mulher frágil, delicada, instruída e de grande religiosidade.
Para casar-se com James, rompeu com tudo o que lhe fora caro anteriormente. Abandonou, sobretudo, uma vida de conforto, elegância e luxo, já que era filha de um rico comerciante que nunca deixara de satisfazer seus mais complicados caprichos. O amor... ah, o amor! Dada sua posição, Ella, antes de conhecer James e se apaixonar por ele, freqüentava as mais requintadas rodas sociais.
Ao casar-se, no entanto, deixou tudo para trás. Rompeu com a família, com os amigos e com tudo o que lembrasse seus sonhos de juventude. Destaque-se que, naquele tempo, os atores eram socialmente discriminados. Eram encarados como vagabundos, irresponsáveis, dissolutos e imorais. Claro que nada disso era verdade. Mas era assim que as pessoas pensavam.
Quando Ella deu à luz a Eugene, já era viciada em morfina. Começou a consumir a droga após a morte do segundo filho, Edmund, que morreu na casa de seus pais com poucos meses de idade, enquanto acompanhava o marido em uma de suas tantas turnês. O sentimento de culpa que a assaltou foi avassalador. Jamais apagou-se da sua mente. Para “acalmar os nervos”, passou a consumir morfina secretamente. A primeira vez que Ella consumiu a droga foi quando deu à luz a Edmund. Nunca conseguiu se livrar do vício.
O primeiro filho do casal foi James, que tinha o mesmo nome do pai, nascido dez anos antes de Eugene. Ele praticamente nunca viveu com o casal. Ainda muito criança, foi internado no Colégio Notre Dame, em Nova York. Só conheceu Eugene três meses após seu nascimento, quando os pais o levaram ao internato, em uma de suas raras e esporádicas visitas. A esta altura, já era um garoto problemático, rebelde e insubordinado, que nutria acentuado sentimento de rejeição. Pudera!
A vida de Eugene não foi muito diferente da do irmão mais velho. Até os sete anos, foi criado pelos avós, vendo os pais raramente e, por isso, não nutrindo nenhuma espécie de afeição mais profunda por eles. Nessa época, foi mandado para um internato católico, dirigido por freiras, em Nova York, o Mount Saint Vicente. Como o irmão, desenvolveu profundo sentimento de rejeição. Ali, na rígida disciplina do colégio, com as religiosas agindo de maneira competente, mas impessoal, o menino tornou-se triste, arredio e um tanto sombrio. Talvez essas circunstâncias expliquem e justifiquem o gosto que viria a desenvolver, anos depois, já escritor consagrado, pelo drama, notadamente, pela tragédia. Oportunamente, voltarei ao assunto.

Boa leitura.

O Editor.




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Lagartas, girinos e mariposas

* Por Mara Narciso

O primeiro dia de férias tinha programa pronto: procurar lagartas. Principalmente no verão, quando o mundo fica acelerado. Tudo cresce mais rápido, desde as unhas e os cabelos, até a altura dessa menina curiosa. Avistava de longe a palha de um coqueiro e chegava até lá. Quando não tinha ninguém olhando, -vejam só, as casas ficavam abertas-, entrava no jardim, catava as lagartas que tinham descido e as levava para sua casa, um apartamento no centro da cidade.
As lagartas de coqueiro, nessa fase, não comem mais. Procuram um canto, ficam imóveis e se transmutam em casulos ou crisálidas. Depois de alguns dias, a pupa fica com cor escura, a carapaça se rompe e se solta e é só esperar a borboleta sair escorregando. Não pode haver ajuda, e mesmo que demore, é bom esperar, senão a metamorfose interrompe-se e as asas não se abrem, ficando atrofiadas. Então, ao sair da casca, a ex-lagarta, com o abdômen dilatado, tem de soltar um líquido amarelo, começar a andar, esticar-se toda, e depois, de asas abertas e secas, já poderá voar. Essa etapa pode demorar horas.
Nesse ponto a menina era pura crueldade. Após ver tudo se transformar, ela, que vinha meticulosamente observando todo o processo, com um alfinete, espetava as costas do inseto, que morria debatendo-se bastante, e o colocava fixo num isopor. E para nada, pois em poucos dias as asas se desprendiam, sob a ação do tempo e de formigas. Com o ressecamento, entre pó e asa esfarelada, o animal inútil era jogado fora.
Nas idas aos clubes, a menina pegava girinos nas lagoas. Trazia tudo num vidro. Montava em casa uma espécie de aquário numa bacia de alumínio, sendo numa das metades terra e na outra água. Os bichinhos eram acompanhados em seu desenvolvimento, nadando e crescendo, criando perninhas, primeiro as posteriores e depois as anteriores, até que um dia saiam da água, sapinhos com cauda curta, e esta depois caia. A menina dava carne de boi para os girinos em pedaços bem pequenos, e eles, anfíbios carnívoros, comiam sem reclamar. Eram muitos dias para essa metamorfose se completar. Ao final, a frustração: os sapinhos pulavam, mas não chegavam a crescer, pois logo morriam. E sem a interferência da menina.
Quando as primeiras chuvas caiam, as mariposas chegavam junto delas. À noite, a casa era invadida por uma multidão desses insetos, que giravam em torno das lâmpadas. A menina catava algumas, que ao serem tocadas perdiam as asas. Então, a menina as colocava num vidro de maionese cheio de terra molhada e fofa. As mariposas começavam a cavar, tentado formar um formigueiro. Eram túneis e mais túneis que, quando próximos as bordas, mostravam o trabalho incansável das futuras rainhas. Mas a menina nunca viu o fim do trabalho. Ela não sabe o motivo, mas as mariposas morriam. Devia ser falta de água e comida. Não conseguiu descobrir o que esses bichinhos gostavam para poder alimentá-los.
O quarto de menina era cheio de vidros de álcool com milhares de insetos de todos os tipos, uma coleção de pedras e outra de areia de todas as cores, além da coleção de borboletas, que caçava com uma armação de arame e tule, no formato de uma biruta de aeroporto, na Praça de Esportes. O que mais chamava atenção nesse quarto de cheiros estranhos e nada cor-de-rosa era uma cabeça de burro, parte superior e mandíbula, que ela tinha pegado na beira de um rio, toda descarnada. Trouxe para casa e ficou uma tarde de domingo inteirinha lavando com escova e sapólio esse monumento. Muita gente teria medo do azar da tal cabeça, não a menina nunca foi de crendices. Acumulava essas coisas esquisitas, por vezes bizarras, mas, ao lado dos estudos de História Natural na Enciclopédia Conhecer, na casa do avô, não pensava em medos.
Quem visse essa menina, nessa mania que durou muitos anos, da terceira infância até a adolescência, poderia imaginar que ela seria uma naturalista, feito Charles Darwin, gênio muito admirado por ela, e por todos, ou até mesmo uma bióloga, mas ela desapontou todo mundo que pensou nisso. Bobagem tentar adivinhar quem será o quê! Acabou médica, jornalista e escritora.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-







O Cabeleira é solto


* Por Marco Albertim

O sorriso fugiu-lhe dos beiços feito o corrupião, súbito preso, desjeitoso e mudo. O Cabeleira, na primeira bordoada da cepa de goiabeira, vira sumir da memória o tumulto promissor das reuniões no sindicato. O bioco cobrindo o rosto dos capatazes, no fim de tarde chuvoso no canavial, não lhe infundira medo; mesmo sabendo que o capote de feltro grosso no corpo do homem, dava abrigo a um rifle de cano longo e grosso; às vezes com dois canos. Na cela escura, estirado no catre de madeira, vira com os olhos inchados a feição dura do capataz que o ameaçara de morte várias vezes. O homem não estava ali, mas o efeito da tortura junto à solidão sem luz da cela, trouxera-o para um canto da parede; trouxera-o com a ajuda do juízo cambado.
Os soldados, do mesmo modo que não tiveram o cuidado de abafar-lhe os gritos, bem como o de ocultarem o uso do tronco cheio de nós da goiabeira, soltaram-no com o rosto ainda roxo de hematomas; o costado arriado. Justo num sábado, dia da feira, a rua apinhada de gente como ele. O Cabeleira, sem orgulho nem vindita na testa franzida pelo sol que lhe fora tirado há três meses, errou entre caçoás de inhames, macaxeiras, batatas. Quis embriagar-se com o cheiro do ananás exposto em grossas lonas no chão; mas as narinas, tumefatas, não deixaram o olfato vazar. Andou devagar, como urdira o soldado Garrafinha, como um exemplo vivo, quase morto, de rebeldia frustrada.
Deixaram-no tomar banho na cela dos fundos, sem grades, ao lado do tonel de água fria. Ele se arrepiou com os beiços tremendo. Um soldado apenas vigiando sua mirrada nudez. Depois deram-lhe um pente sem o exigir de volta. Com os cabelos penteados para trás, fácil seria identificá-lo como o líder que discursara sobre o parapeito da ponte. O vento soprando os finos cabelos, as folhas das canas. Agora, sentindo o mesmo sopro, a cabeleira não se deu por agitada, nervosa. Como a alma, os cabelos entranharam-se-lhe na submissão a um punhado de homens usando farda cáqui.
A família, uma mulher e três filhos, mudara-se para a rua do Toco. Uma dúzia de casas erguidas com o mesmo massapê que nutria as plantações. Casas apenas de um lado; de outro, uma fileira de aveloses; plantas verdes, com galhos da raiz ao alto, dois metros de altura e a ameaça de cegueira, caso o salpico do leite após o corte de um ramo atingisse os olhos.
Do outro lado dos aveloses, um sítio com fartura de cajás, mangabas, mangueiras, um leirão ou outro de coentros e covas de inhames com ramos verdes, soltos feito cobras. Sem vigias, mas cães ferozes dando segurança à família do abastado proprietário.
Mirta, tão magra quanto o marido, acolheu-o com o nome da certidão de batismo, de casamento.
- Adauto... – Queria abraçá-lo, mas a união dos dois não se curtira com afagos à luz do dia.
A casa não tinha luz, a não ser o lume mortiço do candeeiro na sala, da lamparina na cozinha.
Os filhos, o mais velho com 14 anos, o do meio com 12 e o caçula com nove. Todos usando camisa de chita e calça curta.
- Pai... – disse o mais velho.
Nenhum se moveu para tocar na pele sofrida do pai. Ele, também escasso em carinhos, tocou na cabeça de cada um. O cumprimento deu conta da sobrevida que conseguira manter.
Ela fora ao sindicato pedir ajuda em dinheiro. Informaram-lhe que os sócios, mesmo os que não foram presos, não estavam recolhendo para o caixa do sindicato. A usina não lhes pagara o salário, mas conforme o corte de tarefas. Da minguada renda, boa parte ficava com o Barracão, onde compravam charque, farinha, açúcar, café.
Os meninos, com as pernas iguais a cambitos de cana, tinham o rosto acinzentado; confundiam-se com o massapê socado do piso, das paredes sem reboco.
Mirta tratou as feridas do marido com tintura de barbatimão. Logo que viu-as secas, incitou-o a aceitar favores de algum senhor de engenho; assim, teriam comida e a untura de um banguezeiro ilustre. A polícia não o poria mais no açoite da goiabeira.
Múcio Rabelo, dono de engenho, gabava-se de tratar bem os empregados; sobretudo depois de bêbado. Reconheceu o Cabeleira na feira.
- Já está trabalhando? – quis saber.
- Não tem jeito. Ninguém me dá trabalho.
Não ouviu promessa de trabalho. Da última vez que agradeceu ao senhor de engenho o dinheiro para a feira, o vento soprou na calçada da próspera rua do Amparo. Os cabelos de Adauto, curtos, não seguiram no rumo do vento.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.







O casal

* Por Sayonara Lino


Não consigo imaginar aqueles dois separados. Projetos afins, gostos, planos, jeitos e manias similares. Neuroticamente complementares. É assim que me lembro deles. Unidos na beleza, na doença, na saúde e até na distância. Um é a extensão do outro, estão diretamente relacionados, proporcionalmente apaixonados. Como se tudo isso não bastasse, encontraram na família as interseções que os ligam desde a infância: eles têm uma prima em comum! Foi ali que tudo começou!

Sou amiga dela há mais de uma década. Conheci-o na mesma época, acho que em 1995. Só tempos depois descobri que ele me odiara secretamente durante anos. Achava-me chata, entrona, mala mesmo. E das grandes, sem alça nem roda! Confessou-me sua ira lá pelo ano 2000, em mais um dos muitos carnavais que passamos juntos (caretíssimos, isolados da multidão, somos sistemáticos, passamos sempre no terraço dele e na minha varandinha). Ótimos, por sinal. Chegou e disse baixinho que havia me detestado durante muito tempo, mas que havia percebido – levou cinco anos – que eu era uma pessoa muito boa! Muito obrigada!

O engraçado é que estou sempre com o casal. Já se acostumaram comigo. Virei o apêndice deles. Carregam-me pra lá e pra cá. Acompanharam o desenrolar de t-o-d-o-s os meus dramas pessoais: namorado maluco, namorado careta, briga de mãe, falta de emprego, monografia emperrada, cachorro hiperativo, viagem de ônibus para o Nordeste, ressaca de pinga do vô, socorro! Mas também compartilharam lindos momentos, brincadeiras, risos, cervejinhas na sacada, cada dia na casa de um, pequenas viagens, filmes exóticos, livros de cabeceira, almoços de domingo, nascer do sol ... nossas particularidades!

Outro dia entramos no elevador do prédio dele. Olhamo-nos no espelho e identificamos os inúmeros cabelos brancos que teimaram em surgir em nossas vastas cabeleiras. “Ah, precisa pintar!”, ela comentou. “Amiga, é a casa dos trinta! Estamos descendo a ladeira, mas não deixaremos a peteca cair! Somos resilientes! Sabe o que é isso? Não?! É um termo que vem da física e está sendo amplamente divulgado pelas ciências sociais. Resumindo, significa que vamos nos adaptar às novas circunstâncias, vamos nos recobrar!”

Enfim, o casal é assim: namorados, amigos, quase parentes, um é a cara do outro. Vão e vêm, eu também já fui e voltei. Sempre nos encontramos. E cada encontro é a vivência da verdadeira amizade!

• Jornalista, fotógrafa e colunista do Literário







Cumprindo metas

* Por Marleuza Machado


A cada ano que se inicia, estabeleço uma meta para melhoria de meus defeitos (que não são poucos!) e tento cumpri-la à medida que ele transcorre. À cerca de dois meses recebi por email uma questionário a ser respondido e quando interrogada sobre o desejo que gostaria de realizar este ano, não tive dúvidas ao responder: "Quero estar mais perto de Deus". Foi só então que minha percepção se abriu e notei que minha agenda, no quesito "pontos de melhoria", estava em branco. A partir daquele momento, a resposta dada transformou-se num desafio. Só não sabia que rumo tomar e que ponto atacar para atingir meu objetivo.
A maioria das mulheres que, como eu, trafegam solitárias pelos caminhos da vida, não raramente sentem-se magoadas, ressentidas e usadas na questão da banalização dos relacionamentos amorosos. Acredito que isso aconteça porque pisoteiam valores adquiridos através da educação que receberam para a vida e em muitos casos, preferem considerá-los ultrapassados, ao invés de aglutinar experiências. Sentem-se "crescidinhas" o suficiente para criarem seus manuais de conduta e passam a bater cabeça, como donas absolutas de seus destinos. Eu, particularmente, tenho levado algumas rasteiras do sexo oposto e em meio ao sofrimento, procuro no outro razões para alguns episódios dos quais não entendo o desfecho, entre eles, alguns desligamentos, digamos, "repentinos e inexplicados". Confesso que dificilmente as encontro. O homem não precisa de razões para executar suas manobras: Ele é puro instinto e, como um animal, faz seus experimentos por simples curiosidade ou para saciar o desejo incapaz de conter. A mulher, ao contrário, perde o senso analítico: Sua razão bate em retirada quando a emoção entra em campo. Ela se apaixona, fantasia, se casa, tem filhos... E tudo numa fração de segundos! Quando acorda desses devaneios, a criatura já "bateu asinhas". Acredita que eu, por algumas vezes, quando me dei conta percebi que o "dito cujo" tinha saído da minha vida, assim como quem foi à feira comer um pastel e nunca mais deu notícias? E quando situações dessa natureza ocorrem, qual é o posicionamento correto para não permitir que mágoas tomem conta do nosso coração?
Padre Zezinho tem uma música que se encerra com a seguinte frase: "A vida é uma questão; o amor é a resposta". Realmente, a vida nos questiona todos os dias e utilizando do sentimento maior, todas as respostas virão. É amando, seja amor carnal ou fraternal, que tenho aprendido a necessidade do perdão. Houve um tempo em que eu ousava não me sentir magoada, como a querer ser perfeita o bastante para não alimentar sentimentos negativos . Raiva, hoje me permito sentir. Ódio, jamais. E guardar ressentimento? Nem pensar! Por isso, procuro perdoar o mais rápido que posso. Procuro digerir, em tempo recorde, o desconforto que uma desilusão produz, para que não se transforme em ressentimentos e fique envenenando minha alma. A frase bíblica dita por Paulo de Tarso "todas as coisas me são lícitas, mas nem todas me convêm" (I Cor, 20, 23) remete a estas situações que vivo hoje. Se não aprender usar a razão antes da emoção se contrapor, acabo permitindo que pessoas me machuquem e erroneamente me sentirei injustiçada. Nesse caso terei que usar doses imensas de perdão, o que em pequenas porções muito me custa. Por outro lado, se trilhado com sabedoria, esse parece ser o caminho para atingir o objetivo que tracei para o ano.
Dos sentimentos que um ser humano pode cultivar, com certeza o amor é o maior e mais nobre. É mais uma verdade dita por Paulo de Tarso em I Coríntios, cap. 13. Através da prática do amor por mim mesma, tenho aprendido a valorizar meu corpo, templo sagrado onde habita meu espírito, que traz nele a marca do Criador. Com isso, atribuo também a mim, as culpas pelo que de ruim venha acontecer através dele. E vejo em várias circunstâncias, pontos onde posso crescer e evoluir, acionando o mecanismo o autoperdão. Em relação ao outro, Jesus me exorta ao perdão infinito. Aceitando e praticando esses ensinamentos, percebi que já estou me sentindo bem mais perto de Deus.

E assim foi que aprendi
Na hora de sofrer
Que nada faz sentido sem perdão
Que se eu não perdoar eu me enveneno.
E, se eu viver querendo eterna compreensão
Jamais aprenderei do amor esta lição:
O amor é bom demais
Porém às vezes dói!
(Pe. Zezinho em "O Amor é a Resposta")

• Poetisa e jornalista




Cadê a água que estava aqui?

* Por Ana Flores


Se o gato bebeu, sorte a dele de ainda encontrar água potável no planeta. Porque, segundo previsão da ONU, se não forem adotadas providências urgentes para a contenção do consumo da água na Terra, o resultado é que, no máximo em 25 anos, 4 bilhões de pessoas não terão acesso a uma quantidade suficiente para suprir necessidades básicas. E, para pensar globalmente mas agir localmente, confira a cena abaixo.
De manhãzinha, cidade acordando, movimento apenas começando nos bairros. E lá estão ela, a dona da casa e ele, o faxineiro de um condomínio, cada um no seu pedaço, preparados para a limpeza da calçada, armados com uma... mangueira!
E tome água jorrando, concentrada em cada uma das folhinhas secas que tiveram o infortúnio de cair ali e teimam em não desgrudar do chão. Empurradas pela força da água abundante, cada uma à sua vez vão as folhinhas escorregando devagarzinho até chegarem ao meio-fio e mergulharem na sarjeta. Mas, oh, céus! Lá está outra, pequenininha, esquecida perto do portão. Mangueira nela, água ainda jorrando, até a dissidente terminar como as companheiras.
Calcula-se que, só nessa atividade, a dona da casa e o faxineiro gastaram – cada um na sua calçada – o volume correspondente a uma caixa d´água de porte médio. Multiplique-se pelo número cada vez maior de usuários que substituem vassoura e balde pela mangueira, e já se pode ter uma idéia do tamanho do desperdício que se pratica diariamente numa só rua.
Reciclagem da água de esgoto doméstico para uso industrial; água pluvial regularmente recolhida antes de escorrer pelas galerias para ser utilizada em lavagem de carros, calçadas, playgrounds e jardins, deixando a água potável apenas para consumo doméstico racionado; e conserto de vazamentos e preservação sempre são algumas sugestões que podem suavizar – inverter já não é mais possível – o processo da escassez de água.
Debaixo da ducha, ligada ininterruptamente até o longo banho terminar, posso achar que o meu banho não vai contribuir para a seca do planeta. Engano meu. Só como ilustração, segundo a Cedae, um fiozinho de água de 1mm de diâmetro, escorrendo sem parar de uma torneira mal fechada, gera um gasto de 8 mil litros por dia, o correspondente ao gasto de uma escola de 240 alunos. É só fazermos as contas e as adaptações ao nosso consumo diário.
Em breve, quando a água for disputada como pepita de ouro em nosso planeta, não adianta fugir para Miami: serão igualmente atingidos pela seca os que andam descalços e os que têm 20 pares de tênis importados. Não vai sobrar para ninguém. Nem para o gato lá do início da história.

• Escritora

terça-feira, 30 de agosto de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Gênio da dramaturgia.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica, “Novo amanhecer”..

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, poema, “O futuro do marginal”.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “O homem feliz”..

Coluna Porta Aberta – Fausto Brignol, conto “Prismas e aparências”.

Coluna Porta Aberta – João Alexandre Sartorelli, poema “Cresce sob a praça um riso escasso”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Gênio da dramaturgia

O Prêmio Nobel de Literatura, de uns anos para cá, vem se caracterizando por projetar no cenário literário mundial escritores virtualmente desconhecidos fora de seus países de origem e cujas obras são acessíveis quase que exclusivamente por fechadíssimos círculos acadêmicos. Todavia, embora os responsáveis pela atribuição dessa premiação tenham cometido muitas injustiças, ao não premiar autores notoriamente merecedores, não podem ser acusado de omitir “todos” os grandes nomes do mundo literário, consagrados pelo público e pela crítica.
O Prêmio Nobel de Literatura de 1936, por exemplo, foi atribuído a um dramaturgo genial, ainda hoje considerado o “pai da dramaturgia norte-americana”, homem cuja vida chegou a ser até mais trágica do que as peças que escrevia. Esse autor tinha tamanho talento para escrever tragédias, que chegou a exigir que uma de suas obras mais célebres fossem publicadas, apenas, 25 anos após sua morte. Refiro-me a Eugene O’Neil, sem favor algum, um dos maiores escritores de peças teatrais de todos os tempos.
Vários escritores, atualmente tidos como mitos literários, ganharam projeção internacional somente depois de serem premiados com o Nobel. Posso mencionar, assim de memória, pelo menos duas dezenas deles, como Ernest Hemmingway (1954), Anatole France (1921), Albert Camus (1957), John Steinbeck (1962), Gabriel Garcia Marquez, Pablo Neruda, Rudyard Kipling, William Faulkner, Bernard Shaw, Gabriela Mistral, Henri Sienkiewicz, Sinclair Lewis, André Gide, François Mauriac e vai por aí afora.
Outros grandes mestres das letras, óbvio, poderiam ser incluídos nesta já extensa relação. São todos vastamente conhecidos pelo público e imortalizados por obras que atravessaram gerações, mantiveram a atualidade e seguem encantando leitores mundo afora. Seus méritos, ninguém se atreve a discutir. São consensuais.
Em contrapartida, inúmeros escritores, virtualmente saídos do anonimato para os holofotes da fama, mas que, mesmo após a súbita, porém fugaz notoriedade, caíram no esquecimento, também foram premiados com o Nobel. São os casos, por exemplo, de Giosué Carducci (1906), Ivo Andrii (1961), Karl Gjellerup (1917), Odysseus Alepoudelis (1979), Rudolf Eucken (1908), Franz Silampaa (1939), Haldor Laxness (1955) e Grazia Deledda (1926), entre tantos outros.
O leitor se lembra de qualquer livro desses escritores? Ou de pelo menos haver ouvido algum dia seus nomes? Dificilmente. A resposta mais provável às duas perguntas é: não. E isso não é demérito algum. Não desmerece suas obras, que provavelmente são excelentes, ao ponto de impressionarem aos membros da comissão responsável pela atribuição do Prêmio Nobel de Literatura.
Muitos editores, que têm a tarefa de difundir o que há de mais sofisticado e valioso em termos de produção literária, também jamais ouviram falar dos autores que mencionei ou sequer sabem que eles existiram. Provavelmente, foram mal divulgados. Pouco se falou deles e de seus respectivos livros na época da premiação. Não me perguntem a razão, pois, na verdade, não sei.
O mesmo já não se pode dizer de Eugene O’Neil, nome que, à simples menção, lembra “tragédia”, à qual está associado. Menino criado em colégios internos, com mãe viciada em morfina, um irmão alcoólatra e ele próprio, mais tarde, dado ao vício de beber, teve vida aventurosa e atormentada. Em muitos aspectos chega a lembrar Edgar Allan Poe, embora existam muito mais diferenças do que semelhanças entre ambos.
Ambos se diferenciam, por exemplo, quanto às ligações afetivas. Enquanto o trágico poeta de Boston nutriu doentia fixação pela frágil e macilenta Virgínia Clemm, que conheceu quando a menina tinha apenas 13 anos de idade e que amou extremadamente até que ela morresse, o dramaturgo novaiorquino teve três casamentos, dois dos quais extremamente infelizes e de curta duração. Enquanto Poe mergulhou, sem retorno, no alcoolismo e degradou-se em conseqüência dele, O’Neill teve forças para reagir ao vício e, após submeter-se a sessões psicanalíticas, tornou-se rigoroso abstêmio.
Enquanto o escritor bostoniano, em sua obra, descambou para o tétrico, o misterioso e o aterrorizante (de maneira insuperável e magistral, reconheça-se), o dramaturgo mergulhou na alma do cidadão comum e foi, provavelmente, o maior crítico da modernidade, com seu artificialismo e sua o0pressão. Opôs, ao realismo, que execrava, um novo tipo de misticismo, coletivo, de multidões, nunca escondendo, porém, um renitente pessimismo que, aliás, dominou por muitos anos todo o teatro norte-americano.
Provavelmente, a obra de Eugene O’Neill tem tamanha aceitação por ser toda ela elaborada com base em experiências pessoais. Tem, por isso, aquele caráter de autenticidade, de sinceridade, de verossimilhança indispensáveis às obras-primas. O dramaturgo culminou sua produção com a elaboração dessa preciosidade dramática que é “Longa jornada noite adentro”, peça que vetou por 25 anos após sua morte, escrita em 1941. Justificou o veto afirmando que um dos personagens ainda estava vivo. Somente omitiu o fato que este era ele próprio.
A família, no entanto, não respeitou sua determinação. Passados apenas três anos da morte de Eugene O’Neill, a magnífica peça foi publicada e, posteriormente, levada ao palco em Nova York, chegando, pouco tempo depois, ao Brasil, em 1958. Voltarei, com certeza, a tratar desse escritor.

Boa leitura.

O Editor.

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Outro amanhecer

* Por Evelyne Furtado

Se demorei demais para responder é por que a vida não anda tão fácil por aqui. Tudo parece correr ao contrário do que previ. Ou do que sonhei. Bebi sonhos ao anoitecer por muito tempo, certa de que o saudaria em um próximo amanhecer. Mas a noite insiste. Algumas são claras, doces e ternas. Outras sombrias. É quando mais sinto e sentir nem sempre é bom. Contudo, sinceramente, às vezes sinto-me muito bem.
Esperei o momento melhor para escrever. Aguardei as palavras certas; não queria errar e não querer errar é um suplício. Não dou um passo por medo de cair. Não falo nada para não me comprometer. Ou, ao contrário, falo tanto que nada consigo dizer; corro sem governo e sem destino.
Hei de encontrar alguma coerência em tudo isso. É reconfortante pensar que existe um sentido nos passos trôpegos, no alvoroço ou mesmo na calmaria. Todo universo em sincronia.
É vital acreditar em alguma coisa. Eu acredito em muitas: em Deus, em Freud, nos afetos, nos cristais. Alguns dias creio até em astrologia.
Em tempos em que a vida não nos permite realizar tudo aquilo que sonhamos, é preciso respirar fundo, viver o que é possível ser vivido e manter a fé, mesmo que mesclada como a minha.
Bem, era o que eu tinha para hoje, além do desejo insistente de sermos felizes. Fico por aqui. Até outro amanhecer.

• Poetisa e cronista de Natal/RN







O futuro do marginal

* Por José Calvino de Andrade Lima

Nasci na favela do V-SÓ
Hoje tenho quinze anos
Vejam só:
Não estudo
Não trabalho
“tenho tudo”!

O Pastor me ensinou
Que devo amar a Deus
Ele é o nosso Senhor
Fez os céus e a terra.

Vejam bem:
Para melhor dizer
Graças a Deus
Também assisto televisão
Lá na FEBEM!!!

* Escritor, poeta e teatrólogo







O homem feliz

* Por Talis Andrade

O homem feliz
o homem comum
extrai o saber
o sabor da vida
no sentir
Simplesmente no sentir

O contentamento de ir à feira
deliciar-se com as cores
os odores dos frutos da terra
Discutir os preços com os vendedores
Ver a natureza foi generosa
no esplendor de uma flor
na sustança de uma baga
no verde do abacate
no amarelo do caju
As cores os odores
a carnosa polpa das frutas
dão água na boca

O dia vestiu-se bonito
de rosas e mirto
porque é primavera
O dia exibiu as ricas
vestes de luz
porque é verão
O dia vive o ritmo
da sazão

O contentamento de ir à feira
mapiar com os lavradores
os presságios de chuva
no florescer do juazeiro
no aparecer da lua com circo
trazendo água no bico
na noite de São José
A chuva molhadeira
embebe os campos
A terra úmida prenhe
arrebenta-se em pendões de milho
e intumesce a cana
o caldo verde suculento

O homem feliz
o homem comum
Quanta poesia nos causos
na conversa jogada fora
Quanto saber no viver
a banalidade do dia
sem ansiedade
e melancolia

O dia corre seu curso
marcado pelos sons
O clarinar dos galos
o ziziar das cigarras
o trilar dos grilos
o crujar das corujas

Sem medo da morte
a consciência leve
o coração meigo
o homem segue
o desdobrar do dia
Dormir com a lua
acordar com o sol
o canto dos passarinhos
o cheiro de café
o café quentinho
passado na hora

O homem acorda
com o prazer
a alegria
de viver
mais um dia
O cantar do fogo
no fogão de lenha
as labaredas lambendo
da noite os restos
da escuridão
A zoeira da feira
cada vendedor
com um pregão

O homem acorda
com os aromas da casa
o cheiro de alfazema
das fêmeas
o cheiro doce
de fruta
apurando o ponto
em fogo brando
o gosto gostoso
de uma cocada de coco
a água friinha
dormida na quartinha

O contentamento de lembrar
acontecimentos do passado
sem ranço de amargura
Faz bom tempo
o dia corre sossegado
O céu claro promete
uma enluarada noite
estrelada
um sono sereno
como recompensa
de um dia deslumbrante
e ameno

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).







Prismas e aparências

* Por Fausto Brignol

Com florzinhas nas lapelas, os senadores saíram da sua casa oficial. Foram recebidos por centenas de estranhas pessoas que não paravam de se beijar. Havia homens que pareciam mulheres e mulheres que pareciam homens. Todos pareciam ser alguma coisa que não eram, mas que desejariam ser. Pareciam manequins. E não paravam de se beijar. Os lábios já estavam roxos, mas não de frio.
Os senadores e senadoras foram cercados e ovacionados com gritos histéricos dos homens que pareciam mulheres e com urros atordoantes das mulheres que pareciam homens. Os lábios dos seres, aos poucos, voltaram às cores normais, mas somente o tempo suficiente para gritarem histericamente e urrarem grotescamente quando da saída dos senadores. Do outro lado da calçada, mas cercados por um cordão de isolamento e por policiais que pareciam ser policiais – alguns pareciam homens de verdade, outros pareciam mulheres de verdade – centenas de pessoas que pareciam pessoas de verdade e não manequins, gritavam com vozes que pareciam vozes humanas, palavras de ordem que variavam entre “Vendidos!” e “Vendidas!”. Porque os senadores eram, supostamente, dos dois primeiros sexos que formaram a raça humana.
Supostamente. Ouvia-se buzinaços nas ruas, mas ninguém sabia se eram de vaia ou de ovação. Tudo se confundia, conforme o planejado. Súbito, alguns senadores dos que pareciam homens foram cercados pelos homens que pareciam mulheres e algumas das senadoras que pareciam mulheres foram cercadas pelas mulheres que pareciam homens e, apesar dos seus protestos iniciais, também foram beijados e beijadas, ou beijadas e beijados, fogosamente. Beijos que correspondiam a votos e, aos poucos, os escolhidos deixaram-se beijar e abraçar e acariciar e...
Do outro lado, na outra calçada, supostos homens policiais e supostas mulheres policiais começavam a preparar as bombas de gás lacrimogêneo e as balas de borracha contra a multidão que ameaçava avançar. Os buzinaços aumentavam. Parecia até que o Brasil inteiro acordava, embora houvesse futebol em todos os estádios. A multidão revezava-se entre rezas em altos brados e gritos de fúria. Os senadores que não tinham sido seqüestrados aos beijos pelos estranhos e alegres seres humanos que pareciam, fingiam que nada estava acontecendo, com aquelas caras de sonsos que os caracterizam e tentavam sair rapidamente de entre os seus acariciadores eleitores. Seus seguranças, que supostamente era homens, chamavam helicópteros para resgatá-los - mesmo os(as) que estavam nus ou nuas e assediados ou assediadas de todos os lados por beijos e sexos e coisas e tais.
Supostos homens e supostas mulheres jornalistas tudo filmavam e reportavam à sua maneira ou conforme o roteiro especificado ou de acordo com as suas preferências sexuais, mas sempre havia um(uma) âncora que repetia para não esquecerem o politicamente correto. E tudo era filmado, exceto as cenas burlescas de repto e de rapto e os senadores eram descritos como heróis que a pátria aclama e ama por terem aprovado uma lei que protegia e aspergia uma classe especial de pessoas sensuais, sensoriais, sensíveis e sensitivas, que agora estavam acima dos demais seres que não eram tão sensuais ou tão sensíveis assim, ou o eram à sua maneira que, de agora em diante, deveria ser considerada errada.
A multidão do outro lado da rua urrava. Os seres que pareciam gargalhavam, ou pareciam gargalhar. Súbito, o cordão de isolamento foi rompido. Pedras, balas e bombas foram jogadas, de ambos os lados – e ambos os lados não eram ambos, porque existiam diversos lados – e já se trocavam os primeiros socos e empurrões e palavras não escritas na Bíblia eram proferidas aos gritos e raivosamente e mulheres que pareciam homens, fortes e destemidas, formaram a linha de frente dos Mais Sensíveis. Junto a elas ou eles, homens vestidos de mulheres, mas sensivelmente musculosos, começaram a esbordoar os que brandiam bíblias – em legítima defesa ou em fero ataque – e repeliram a agressão dos que estavam na frente da multidão urrante e foram ouvidos gritos de “Cuidado com a Gaystapo!” e muitos foram feridos e posteriormente presos pelos policiais que pareciam realmente ser policiais, embora surgissem dúvidas, e a voz de prisão para todos e cada um dos que formavam a multidão que era Contra Os Mais Sensíveis era dada por dez seres que pareciam seres alados, vestidos com coloridas togas que pareciam asas e muito foi o gemer e o chorar.
O Brasil estremecia sexualmente. Orgasmos múltiplos aconteciam a todo instante nos mais diversos recantos deste país continente. Mesmo os que estavam nos estádios e torciam pelos seus coloridos times de futebol, ao saberem da notícia dividiram-se e começaram a brigar enquanto os jogadores faziam a dança do trenzinho. Templos eram fechados por ordem dos cumpridores da Nova Lei da Sensibilidade e os fiéis recolhiam-se aos esgotos e cloacas públicas, que acreditavam catacumbas. Os que não conseguiam se esconder a tempo eram obrigados a prestar o Juramento Sensível e a provar a sua sensibilidade no ato.
Coloridos do Brasil inteiro se uniam em passeatas magníficas, ao lado dos deputados que por eles tudo faziam e dos senadores que tentavam esconder a sua senilidade com gestos sensíveis. O Exército estava nas ruas para prevenir novos ataques dos que eram Contra os Mais Sensíveis. A Esquadrilha da Fumaça fazia revoluteios no ar. Navios coloridos da Marinha ostentavam bandeirolas e lançavam vistosos fogos de artifício que podiam ser vistos nas alegres praias do país. A Nova Lei da Sensibilidade era pregada em majestosos Templos Sensoriais para multidões embevecidas com a sua nova liberdade dos cinco sentidos.
Faziam-se festas e um Carnaval fora de época era anunciado. Tudo parecia muito alegre. Tudo se confundia, conforme o planejado. E a confusão tornava todos confusamente felizes.
Depois de algum tempo – talvez meses, talvez anos – quando os fulgores da alegria geral já não eram tão fulgurantes e a alegria geral não parecia geral, e quando os assustados moradores dos esgotos que apelidaram de catacumbas, animaram-se a sair, aos poucos, e não foram agredidos imediatamente, mas apenas olhados com alguma animosidade, formaram-se, em nome da Democracia das Cores, pequenos grupos de obsoletos heteros, que somente foram aceitos porque podiam proliferar e o Estado necessitava de novos atores e novos soldados. E desses grupos surgiu um movimento que foi denominado Movimento da Proliferação, ao qual foi dado o direito de manifestar-se publicamente e, inclusive, fazer passeatas que reivindicavam direitos iguais aos Coloridos.
Os políticos, que continuavam políticos, apesar de Coloridos e dividindo-se no Congresso apenas pelas diversas cores e matizes, perceberam que surgia uma nova força social que proliferaria e traria votos. Logo, os Prolíficos começaram a queixar-se de agressões e até assassinatos, de perseguições pelos Coloridos Ortodoxos e os políticos, aos poucos, foram acolhendo as suas reivindicações.
Chegou o dia em que uma nova lei seria votada no Senado, depois de ter sido aprovada pela Câmara, que daria aos Prolíficos os mesmos direitos que os Coloridos, e até alguns a mais. Uma lei que defenderia os Prolíficos do que eles chamavam de crescente heterofobia no país. Os Coloridos Ortodoxos reagiram e manifestaram-se contra aquela nova lei.
No dia da votação, os Coloridos Ortodoxos colocaram-se na calçada oposta à do Senado, enquanto os senadores votavam. Mal perceberam quando foram cercados por um cordão de isolamento e por policiais que pareciam Prolíficos de farda, que começavam a preparar as bombas de gás lacrimogêneo e as balas de borracha. Ouvia-se buzinaços nas ruas.

• Jornalista e escritor



Cresce sob a praça um riso escasso

* Por João Alexandre Sartorelli

Na manhã acabrunhada e pura.
Nas frestas sem luar, nos alfarrábios,
Incensos sem broquéis, literaturas.

Cansado de esperar, em vão procuro
A glória de saber, a vil beleza
Das noites sem luar, o lago impuro
Onde boiam desejos e certezas.

Há muito a esquecer, o pão dormente
Na mesa sem toalha, a ceia fria,
Casais no frio da noite indecente.

O pouco que restou, a alegria,
Os dias de teu sol e riso ardente,
A hora que ora segue, tão vazia.

* Analista de Sistemas por profissão e poeta por vocação

segunda-feira, 29 de agosto de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Ato solitário.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Poema dos milagres”.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, poema, “Dente de leão”

Coluna Porta Aberta – Rubem Costa, crônica “Usina de sonhos”.

Coluna Porta Aberta – Giovani Roehrs Gelati, artigo “O golpe do disque sequestro”..

Coluna Porta Aberta – Rubem Alves, crônica “Sobre o casamento”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Ato solitário


A decisão é sempre um ato solitário. Por mais pessoas que estejam envolvidas nas tarefas de preparação de qualquer empreitada, por maior que seja a equipe responsável pela coleta de informações que vão servir de base para se decidir alguma coisa, a responsabilidade final vai caber a uma só pessoa. Ao chefe, mentor, comandante ou seja lá o que for do projeto.

Um exemplo disso é quanto a um aspecto fundamental até para a sobrevivência do ser humano. Estados Unidos e Rússia, dispõem de um arsenal nuclear capaz de destruir uma centena de planetas como a Terra. Mas a utilização, ou não, desse potencial está nas mãos de dois líderes, o presidente norte-americano, Barack Obama, e o homem forte russo, Vladimir Putin, que certamente não entendem nada de Física.

É provável que os dois tenham aquelas noções básicas, que qualquer pessoa com nível colegial tem. Ambos, portanto, desconhecem o verdadeiro potencial da energia nuclear, a capacidade de destruição das ogivas estocadas em milhares de silos espalhados por seus países.

Por essa razão, tanto um, quanto o outro, contam com assessores altamente especializados na matéria. É a prerrogativa dos cargos que ocupam. Mas a decisão final, quanto à eventual utilização, ou não, dessas armas de tamanha capacidade de destruição, não compete a nenhum auxiliar, por mais gabaritado que seja. Compete, exclusivamente, a cada um deles.

Obama e Putin têm em suas mãos a real possibilidade de causar a completa destruição do Planeta e tudo o que há nele, se tomarem uma decisão errado. Como se vê (e não apenas nesse exemplo extremo), a solidão caracteriza o ato de decidir seja lá o que for. É um ato individual, mesmo que afete (como é o caso) bilhões de pessoas.

A lição ensinada por Ernest Dichter em seu livro “Espelho, espelho meu, existe gerente mais eficaz que eu?” (Editora McGraw Hill), aplica-se bem tanto a Obama, quanto a Putin (ou outro líder qualquer cujo país disponha de arsenal nuclear). O publicitário austríaco observa: “A discussão com colaboradores confiáveis é valiosa”. Apesar dessa consulta, no entanto, é evidente que nenhum líder que se preze vai abrir mão da prerrogativa de decidir.

Ele é que terá de arcar com todos os bônus e com os correspondentes ônus da decisão que tomar. E Dichter justifica a prudência da consulta: “Falar a respeito de decisões importantes (sempre com colaboradores confiáveis, frise-se) ajuda a assegurar que você não omitiu detalhes importantes”.

Muitas vezes um fator mínimo da questão em análise, que visto de forma isolada aparenta ser irrelevante no contexto, pode ter importância fundamental. Se não for levado em conta, pode levar todo o empreendimento (seja de que natureza for) ao fracasso. Afinal, duas cabeças tendem a pensar melhor que uma. E várias delas...

Há dois tipos de decisões: as que somos forçados a tomar quase que instantaneamente, em fração de segundos, mais ditadas pelo instinto do que pela razão, em determinada situação de emergência, sem tempo para nenhuma espécie de reflexão e as que podem ser refletidas, ensaiadas, pesadas e exaustivamente analisadas.

Digamos que o leitor esteja dirigindo um carro numa rodovia, em noite tempestuosa, em velocidade que lhe permita frear abruptamente o veículo caso tope com algum obstáculo não previsto, sem riscos de capotamento. Suponhamos que a estrada seja de pista única e que em determinada curva, de baixa visibilidade, um animal qualquer cruze a frente do automóvel.

Numa fração de segundos, correndo os riscos ditados pelas circunstâncias, o motorista terá que tomar uma decisão imediata, que pode, não raro, lhe custar a vida, se for a errada, e muitas vezes as de outras pessoas. O tal leitor terá, em primeiro lugar, contar com um veículo em perfeito estado mecânico. Vai precisar, também, que seus reflexos estejam afiados.

O que fazer? Desviar do animal, indo na direção do barranco no acostamento à esquerda? Torcer o volante para a direita, onde há um profundo abismo, separado da estrada somente por um frágil “guard-rail”? Frear bruscamente, correndo o risco de sofrer um choque de outro veículo na traseira? Ou atropelar o animal, para ver no que dá? Tudo isso, o motorista vai ter que decidir instantaneamente.

No entanto, há decisões que, mesmo importantes, não são tão urgentes e dramáticas. Permitem um tempo de “maturação” que varia de acordo com as circunstâncias. Como a que um determinado diretor de uma empresa rentável, que tenha recebido uma proposta de fusão com outra, que não seja lá muito bem administrada, mas que com algumas correções administrativas, poderia ser altamente lucrativa, às vezes enfrenta.

Caso concorde com a medida, pode ensejar o surgimento de uma companhia maior, mais poderosa e mais eficiente, uma “holding”, ou corporação ou algo parecido, com amplas vantagens para todas as partes envolvidas. Pode, porém, estar assumindo um indesejável problema, que apenas cause dores de cabeça e enormes prejuízos.

Dichter recomenda nesses casos: “Durma em cima do problema”. Ou seja, pondere sobre ele. Permita que a decisão amadureça em seu espírito. Colha o máximo de informações possíveis (e todas rigorosamente exatas e objetivas) sobre a questão em torno da qual você terá que decidir.

Mas nunca confunda a prudência com a procrastinação. Não assuma a atitude covarde de “empurrar a decisão a ser tomada com a barriga”, adiando-a sine die, indefinidamente. É necessário que nesses casos o administrador tenha “feeling” para determinar o tempo certo antes de decidir. Este não pode ser nem maior do que o necessário, nem menor do que recomenda a prudência.

É indispensável que seja o ideal. É verdade que decisões apressadas freqüentemente induzem as pessoas a erros, com os conseqüentes aborrecimentos e prejuízos. Mas as tardias podem pôr por terra preciosas oportunidades, que provavelmente jamais voltarão a aparecer.


Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk







Poema dos milagres

* Por Talis Andrade

Eu era cego
e tua saliva
tocou os meus olhos.
Vi as cores jorrando
por doce encantamento
de tuas mãos de fada.
Um simples gesto teu
transformava os helicópteros
do Apocalypse Now
em corcéis azuis,
edifícios num campo
flavescente de trigo
e amarelos jacintos.
Os revólveres dos homens
saltavam das cinturas
transmudados em brancos pombos.
Fazias a inversão do mundo
para justificar a minha visão.

Eu era surdo
e tua saliva
tocou os meus ouvidos
para que eu escutasse
perdidos sons:
a fala do colibri e a flor,
o tremular das asas das borboletas
em um vôo volúvel e errante
como volúvel e errante
o vôo de Eros,
o deus menino.
Para que eu escutasse
o canto dos pássaros,
tocastes meus ouvidos
com a tua saliva.

Eu era mudo
e bebi
nos teus lábios
as palavras libertadoras.
Eu era mudo
e as palavras nasceram
da minha boca
como as flores silvestres
ressurgem no virgem campo
das manhãs de primavera.
Eu era mudo e aprendi
a linguagem dos pássaros
para cantar o irmão sol,
a irmã lua.
Eu era mudo e aprendi
a linguagem dos deuses
para cantar tua beleza
de flamejante luz.


* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).







Dente de leão

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

Narinas arfantes,
olhos adiante.
O temor em
deixar o tempo
passar.
Tanta pressa...
A vida lhes escorre
sem que percebam.
Da janela avisto
o pequeno dente
de leão...desafiador.
Em meio ao
concreto ele se
espicha.
Torço para que
o vento moleque
espalhe suas
sementes.

* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário







Usina de sonhos

* Por Rubem Costa

Dias atrás, estive, ou melhor, estivemos, Agostinho Tavolaro, presidente, Arita Pettená e eu, representando a Academia Campinense de Letras no IV Festival Internacional de Poesia. Local: Dois Córregos.
Uma diminuta urbe de apenas vinte e cinco mil habitantes, situada na área central do Estado e a cento e vinte quilômetros de Campinas. Indústria incipiente, comércio limitado, mas uma grande e generosa gente. Perante a estatística, apenas uma pequena localidade estacionada no tempo. Porém, aos olhos do visitante surpreendido, um admirável núcleo de inteligência e cultura.
Não se impressionem com o paradoxo da referência adjetiva, porque no modesto burgo se precipita um mistério, o milagre da transubstanciação que faz o grande caber no pequeno. Tanto que, desde a fundação, na crônica da cidade se concentra, ao sabor de história, um punhado de “estórias” e sagas que falam de perto à percepção afetiva do ser e à tendência criativa do povo local.
Ali, onde a brisa cicia lembrando romance, a poesia campeia no espírito do homem como o ar que se respira. Até a denominação — Dois Córregos — advém de uma concepção mística que faz da sua existência um poema de crença. Assim, diz a lenda que o fundador da cidade, José Alves Mira, homem de percepção política e muito ligado à igreja, tendo prometido ao povo a construção de uma capela que, servindo de consolo espiritual, estratificasse no núcleo a religiosidade citadina, viu-se de repente diante de um dilema — onde erguer o templo — já que entre os moradores, num jogo de opiniões, se erguera uma disputa em torno da localização do edifício.
Nesse arrocho, fala a crônica que, numa reunião em que os ânimos já se exaltavam, lhe sobreveio uma ideia providencial que ele, homem de crença, atribuiu à inspiração divina. Imitando a Salomão, para conciliar gregos e troianos, propôs preparar uma junta de bois que, solta livremente pela estrada, demarcaria no ponto em que estacionasse o lugar escolhido por Deus para a construção.
E assim aconteceu. Gemendo nos eixos, o carro pachorrento e abandonado — sem carreiro — impulsionado ao deus dará, atravessou modorrentamente a ponte sobre o Tietê, que já então existia, indo estacionar, ao guincho das rodas gementes, isento de qualquer aboio, numa área plana e verde situada entre dois córregos que caminham para o rio. Extasiado, o povo emocionado rezou genuflexo.
Cumprindo a promessa, ali, no lugar que a intuição santificara, Alves Mira ergueu a igreja — templo de fé e ara de oração que, ainda hoje, lá continua para glória de Deus e edificação do homem. Do homem que, acreditando na mística, canonizou a cidade com o nome da geografia — Dois Córregos.
Desde então, exemplo de sabedoria que ficou regendo a emoção e cadenciando o ritmo da vida, a saga prevalecesse como bússola da predisposição sensitiva da coletividade. Talvez, seja por isso que no pequeno burgo campeia a poesia como — “linguagem da alma” — que, diga-se ao ensejo, foi o lema do festival que, neste mês de maio, ali nos pagos, completou seu quarto ano de realização construtiva.
Conclave que, transcendendo os lindes nacionais, reuniu intelectuais de além fronteira, como Susan Andrews, psicóloga e antropóloga pela Universidade de Havard (EUA) e doutora em psicologia transpessoal pela Universidade de Greenwich, que veio dos Estados Unidos para falar sobre a busca eterna do homem — a felicidade — anseio de vida e lastro da poesia.
Também Luis Gilberto Caraballo (prêmio mundial Andrés Bello - 2009) locomoveu-se da Venezuela para velejar no evento, enquanto o gaúcho Carlos Nejar, ocupante da cadeira nº 4 da Academia Brasileira de Letras, transportou-se de Porto Alegre para dissertar sobre a história da literatura no Brasil.
Por seu turno, Jorge Tufic, autor do hino do Amazonas, deslocou-se de Manaus com a mensagem do homem do norte, ao passo que do Rio caminhou Jorge Tannuri para dialogar sobre sonetos. Muitos outros se manifestaram, inclusive nós, gente de Campinas, para evidenciar que, irmã gêmea da música, a poesia filtra na mente os sentimentos que se aninham na alma e reproduzem, catalisantes na forma, o calor do afeto, a amplitude do amor e a grandeza da vida.
Agostinho Tavolaro que, na data, coincidentemente, completava mais um ano de matrimônio, serviu-se da sabedoria para dedicar a Ilze, ali presente, um comovente poema de amor. Arita, como sempre, grande poeta e declamadora, enalteceu a Guilherme de Almeida e dedicou à platéia poemas de sua lavra. Aplausos candentes.
Uma apresentação de gente de todas as tendências. Falou Frederico Barbosa — prêmio Jabuti (1993 e 2004) — diretor executivo de Polesis: Organização Social de Cultura que administra a Casa das Rosas, o Museu da Língua Portuguesa e a Casa Guilherme de Almeida. De outro lado, vencedor do Prêmio Jabuti de melhor livro infantil (2006), Gabriel, o Pensador desenvolveu com verve sua arte de dizer.
Ao traçar este relato que ressalta a magnitude cultural de uma ideia que transborda do pequeno burgo para o mundo, impossível é deixar de trazer a lume a força geradora do evento — o projeto Usina de Sonhos — em que se inscrevem os anseios de um personagem excepcional e seu idealizador, o empresário e poeta José Eduardo Mendes Camargo.
Figura profundamente humana que, desde longa data, vem-se dedicando ao bem coletivo e à felicidade de sua gente. E isso, que eu saiba, acontece desde 1996, quando conseguiu promover a 1ª Mostra de Cultura e Arte de Dois Córregos. Evento tão relevante que se projetou além mares, despertando o interesse da Unesco que, para melhor conhecê-lo, mandou então ao Brasil seu consultor de cultura em Paris. Um feito para ficar selado na história.

• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras.



O golpe do disque seqüestro

* Por Giovani Roehrs Gelati

Estamos com o seu filho. Não desligue o telefone, senão apagamos ele. Se avisar a polícia, ele morre. Você quer o seu filho vivo? Então deverá fazer exatamente o que estou dizendo. Deposite cinco mil reais nesta conta, anota aí.... E nada de avisar a polícia, certo?”
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Foi mais ou menos esse o diálogo inicial de um conhecido meu com o suposto sequestrador do seu filho. Este fato ocorreu meses atrás, mas sua incidência é quotidiana. Não havia sequestrador, muito menos sequestrado. É um golpe ao qual muitas pessoas já sucumbiram.
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Não é novidade aos bandidos essa maneira de ganhar dinheiro "fácil". Infelizmente, a mente humana tem o seu brilhantismo também à disposição do mal.
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A história acima ocorreu ao amanhecer de uma quinta-feira, com dois idosos. Eles tomavam seu chimarrão costumeiro quando receberam a ligação pelo celular. Ao ouvir que o filho fora sequestrado, o pai mal conseguiu raciocinar e continuou acreditando na mentira maldosa. Era cedo e o banco não havia aberto ainda. Saiu o casal, desesperado pela rua, gritando que o filho iria morrer, a caminho do banco.
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"É caso de vida ou morte", respondeu a mãe ao segurança do banco. Este chamou o gerente, que os mandou entrar. Enquanto a polícia dirigia-se ao banco, acionada pela gerência, o pai continuava ao telefone, sendo ameaçado pelos sequestradores.
O desespero era tanto que a mãe não recordava o número do filho, até lembrar-se que estava anotado na sua agenda. A ligação foi realizada e o primogênito, que estava são e salvo em casa, tranquilizou todos.
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Ficou evidente que se tratava de um falso sequestro pelo telefone.
Realmente, não passava de uma ligação feita por bandidos que tentavam subtrair dinheiro de duas pessoas que não conheciam, mas sabiam dos efeitos devastadores das suas palavras.

"Eu escutei a voz do meu filho. Era ele mesmo". O desespero em que a pessoa entra após ouvir que alguma pessoa muito próxima foi sequestrada acaba por diminuir o discernimento entre realidade e ficção. É o que afirmou o psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, na edição de 12 de fevereiro de 2007, da Revista Veja: "O estado de desorganização mental que se segue a uma notícia de acidente ou sequestro do filho ou cônjuge faz com que a vítima entre em um estado de quase-hipnose".
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A reportagem antiga faz perceber que o golpe é velho. Ainda assim, muita gente continua sendo vítima de pilantragens como esta.
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Outra modalidade semelhante ao "disque-sequestro" é a "ligação-premiada", onde um suposto funcionário de uma empresa conhecida informa que a pessoa ganhou boa quantia em dinheiro e para que seja depositado na sua conta, deve comprar cartões telefônicos e informar o número do código, ou então depositar 500 reais para ganhar os dois mil da premiação.
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Ligações como essas podem ocorrer tanto em São Paulo como em qualquer outro canto do país. Ainda mais com a facilidade que existe, atualmente, em acessar as informações de qualquer pessoa. As lojas detêm um cadastro com incontáveis informações pessoais, que vão de nome completo a filiação, CPF e endereço.
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As redes de relacionamento na internet dispõem de álbuns de foto, onde o internauta divulga imagens da sua casa, dos pais, filhos, irmãos, amigos de maior convivência, local de trabalho, isso se não escancarar o endereço e o número do celular. Basta um acesso rápido aos álbuns, nem sempre disponíveis apenas a amigos, mas a amigos dos amigos ou àqueles que são adicionados sem realmente sabermos quem são e, pronto, tem-se uma ficha completa.
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Também são encontradas informações que você quer que apareçam e também o que não quer se digitar o seu nome no site do Google: concursos realizados, aprovações, promoções em empresa pública ou caso seja citado num site; tudo isto/está disponível na web.É muita informação solta, livre e fácil de ser encontrada e fica difícil manter em segredo, na internet, a própria atividade profissional, rede de amigos e demais dados pessoais.
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Ajuda se controlar o impulso de postar na internet tudo o que ocorre consigo. A foto está tão bonita, dá tanta vontade de deixá-la pública para que os meus amigos vejam. E para que os inimigos invejem. É um enorme campo para contraventores aproveitarem-se e usarem contra nós.
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Não se desesperar ao ouvir o anúncio do sequestro, quando ele pode ser verdadeiro, é uma tarefa difícil. Mas é possível bloquear imagens, selecioná-las melhor para que nossa vida fique menos exposta e tentar permanecer sempre atento a qualquer chamada fora do usual.

• Contista, cronista e escritor gaúcho, graduado em Língua Portuguesa pela PUCRS Campus Uruguaiana



Sobre o casamento

* Por Rubem Alves

É bom atentar para o que o papa diz. Porta-voz de Deus na Terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo pensando sobre coisas sem importância tais como o efeito estufa e a possibilidade do fim do mundo. O papa vai direto ao que é essencial: “O segundo casamento é uma praga!”
Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do paraíso.
No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento: o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembléia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: “E eu, Jeová, vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar…”
Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso. Nessa ordem não se pode confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é, no caso de algum dos cônjuges não cumprir o contrato, obrigá-lo a cumpri-lo.
Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento. E foi isso que ele disse aos noivos: “O que vos une não é o amor. O que vos une é o contrato”. Aprendi então que o casamento não é uma celebração do amor. É o estabelecimento de direitos e deveres. Até as relações sexuais são obrigações a ser cumpridas.
Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos, amigos, fazem amor, geram filhos.
Mas, segundo a igreja, estão em estado de pecado: falta ao relacionamento o selo eclesiástico legitimador. Ele, divorciado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a igreja proíbe a praga do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se separar para participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos de ternura… Agora está tudo nos conformes. Porque Deus não enxerga o amor. Ele só vê o selo eclesial.
O papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca, mas da maldição. O símbolo dessa maldição está na palavra “conjugal”: do latim, “com”= junto e “jugus”= canga. Canga, aquela peça pesada de madeira que une dois bois. Eles não querem estar juntos. Mas a canga os obriga, sob pena do ferrão…
Por que o segundo casamento é uma praga? Porque, para havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a igreja admitir a anulação do primeiro casamento, terá de admitir também que o sacramento que o realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado pelo próprio Deus. Permitir o divórcio equivale a dizer: o sacramento é uma balela. Donde, a igreja é uma balela… Com o divórcio ela seria rebaixada do seu lugar infalível e passaria a ser apenas uma instituição falível entre outras. A igreja não admite o divórcio não é por amor à família. É para manter-se divina…
A igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da maldição do amor. Proibiu-os de se casarem. Livres da maldição do casamento, os sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem abraços e nem beijos. Estão livres da praga…”

* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador

domingo, 28 de agosto de 2011







Leia nesta edição:

Editorial – Questão de identificação

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Conflito e interação”.

Coluna Direto do Arquivo – Risomar Fasanaro, crônica “Nas asas de um beija-flor”.

Coluna Clássicos – Paulo Coelho, crônica “Duas reflexões sobre animais”.

Coluna Porta Aberta – Lêda Selma, crônica “Que canseira!”.

Coluna Porta Aberta – Flora Figueiredo, poema “Atitude”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Questão de identificação

O
amor, nas variadas formas e intensidades com que se apresenta, é, sem nenhuma dúvida, a experiência maior, mais marcante e inesquecível de quem o experimentou algum dia ou tem a ventura de ainda vivê-lo intensamente, até o derradeiro instante da vida. Mesmo o que acaba frustrado, fica gravado, a ferro e fogo, na memória e na alma, à revelia de quem se frustrou com ele, com as lembranças, todavia, “adoçadas” pelo tempo, que dilui o veneno da frustração.
Por incrível que pareça, quem e o que nos fez sofrer é recordado com saudade e veneração. Claro que não saímos por aí apregoando algo tão íntimo e tão nosso. Daí o amor ser o tema preferencial e recorrente de praticamente todos os escritores, de todos os tempos. E eles encontram sempre ângulos novos, interessantes e originais para abordar.
Embora as histórias pareçam se repetir, na verdade nunca se repetem. São sempre originais e únicas. Têm personagens e enredos muito diferentes. Mais marcante uma novela, um conto ou um romance (não importa) de amor se tornam quando guardam identidade com nossas experiências pessoais. Quando personagens ou circunstâncias, ou ambos, nos retratam, e descrevem o que, de fato, vivemos, mesmo que apenas por ligeira aproximação.
Identifico-me, em particular, com um romance épico, desses de ficarem marcados na memória para sempre, dos tais que lemos, relemos e voltamos a reler vezes sem fim, com a mesma emoção e mais, com idêntica empolgação. Refiro-me a “O amor nos tempos do cólera”, de Gabriel Garcia Marquez, escritor conhecido, intimamente, como Gabo.
Chamo-o assim, com toda essa intimidade como se o conhecesse pessoalmente. Claro que não tive esse privilégio. Mas é como se o tivesse, tantas foram minhas leituras e releituras de sua magnífica obra (tão magnífica, que lhe valeu o Nobel de Literatura), como “Cem anos de solidão”, “O outono do patriarca”, “Os funerais da mamãe grande”, “O enterro do diabo”, “Relato de um náufrago”, “A incrível e triste história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada” e uma meia dúzia de outros.
Identifico-me profundamente com o relato de “O amor nos tempos do cólera” por uma razão que, por mais que tente, não consigo explicar racionalmente. Seu personagem central, por exemplo, que viveu uma experiência afetiva remotamente parecida com a minha, Florentino Ariza, uma espécie de anti-herói, que só na última linha do livro identificamos como herói de fato, não se parece em nada comigo. Somos, fisicamente, rigorosamente diferentes. Ou, forçando a barra, diametralmente opostos.
O que nos identifica é a paixão. Mais do que ela, é a fidelidade devotada a ela. A dele, Florentino Ariza, pela esquiva Firmina Daza. A minha... pela mulher que me acompanha há décadas, mãe dos meus quatro filhos e avó dos meus dois netos. Há, claro, uma diferença fundamental sobre a nossa forma de amar e o tempo transcorrido para o sonhado “happy end” (que, em ambos os casos, ocorreu).
Florentino Ariza persistiu por cinqüenta e três anos, sete meses e onze dias (“com as respectivas noites”, como Gabo acentua), para saber-se correspondido. Tive mais sorte. Despendi sete anos, um mês e vinte e oito dias para ter igual sucesso em minha teimosa busca pela “cara metade”.
Nós dois – o personagem e eu – tivemos que nos contentar, por muito tempo (põe muito nisso!), com bilhetes apaixonados, cartas de péssima literatura mas de intensa e febril paixão, olhares furtivos e outras tantas loucuras de amor, para expressar à amada nosso sentimento e demonstrar-lhe nossa incorruptível fidelidade. Em ambos os casos, o obstáculo era idêntico: a oposição das respectivas famílias das nossas musas. Eram obstáculos aparentemente intransponíveis à concretização dos nossos delírios de paixão. Ambos os transpusemos.
Tive, é verdade, mais sorte do que Florentino Ariza. Após sete anos, um mês e vinte e oito dias, consegui vencer a resistência familiar e obter o consentimento para “viver para sempre”, até “que a morte nos separe”, com a mulher que minha intuição concluiu que era a que me fora destinada. Por quem? Sei lá!
Mas Florentino Ariza, despendendo quase oito vezes mais tempo do que eu para obter o mesmo resultado, também viu compensadas sua fidelidade e sua constância. No seu caso isso ocorreu, apenas, quando ele e Firmina Daza estavam em provecta idade, em que eram, ambos, anciãos, e ela há tempos viúva, certamente com lembranças de outros braços e outros beijos. No meu, felizmente, isso não acontece. Tive (e tenho) a ventura de usufruir do amor em toda a sua plenitude e glória a partir da minha completa maturidade, física, mental e afetiva até este início de declínio das minhas energias e vitalidade.
Todavia, os sofrimentos, as frustrações, as esperanças seguidas de desespero e de novas esperanças e de outros tantos desesperos, por mais de meio século, descritos com a perícia de um escritor genial, como Gabo, de Florentino Ariza, me são sumamente familiares. E como são! O amor... ah, o amor! É, sem tirar e nem pôr, o que tão bem o caracterizou a escritora Marguerite Grepon: “Uma enfermidade sem a qual ninguém passa bem”. E da qual, aduzo, intimamente, nos recusamos a nos curar.
O poeta romano Virgílio, impotente para se livrar dele, amaldiçoou-o. Não em nome próprio, é verdade (não chegou a tal atrevimento), mas colocando a maldição na boca de um personagem da sua imortal epopéia “Eneida” (Livro IV), que diz, num assomo de ira e de desalento: “Maldito amor, a que não obrigas os corações mortais!”.
Às imprecações, queixas e maldições, prefiro a ponderação sábia e segura de um especialista na alma e no comportamento humanos, o psicanalista Erich Fromm, que sentenciou, em seu livro “Arte de amar”: “O amor é a única resposta sadia e satisfatória para o problema da existência humana”. E não é?! Florentino Ariza (ou melhor, Gabriel Garcia Marquez) que o diga.

Boa leitura.

O Editor.




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Conflito e interação

*Por Pedro J. Bondaczuk

O relacionamento harmonioso entre as pessoas é o fator determinante do grau de civilização de um povo. Quanto mais respeito existe entre os indivíduos, sem que os diferenciais da posição social, da intelectual e da idade (entre outros), interfiram, mais civilizada é a sociedade. Esse entendimento, evidentemente, não pressupõe ausência de conflitos, mas sua sábia administração, naquilo que os sociólogos denominam de "interação".
A humanidade, na presente geração, está muito avançada, neste aspecto, em relação a um passado não tão remoto. A escravidão de pessoas era um fato normalíssimo no Brasil, por exemplo, até recentemente (1888). Hoje, embora exista, é tida como atitude abominável.
Mas a espécie humana ainda está extremamente atrasada se atentarmos para o ideal, para o ápice da civilização (a absoluta liberdade dentro dos limites democráticos, ou seja, onde a nossa termine no ponto em que a do próximo comece), a espontânea fraternidade entre todos os indivíduos e a solidariedade total, que talvez jamais venha a ser alcançado, mas que deve ser incansavelmente perseguido.
Enquanto houver dominadores e dominados, exploradores e explorados, privilegiados e excluídos, estaremos distantes "milhões de anos-luz" da absoluta racionalidade, que por enquanto continua sendo apenas aspiração e não realidade. O predomínio dos instintos sobre a razão está muito longe de ter acabado.
A diversidade de opiniões (seja a respeito do que for) é sempre salutar. Em raríssimos temas duas pessoas, livres para pensar e externar o que pensam, concordam integralmente. Até sobre o conceito que a lógica diz que deveria ser óbvio para todos e absolutamente consensual, o da existência de Deus, há discordâncias. Uma parte considerável dos quase seis bilhões de indivíduos que povoam o Planeta nega que haja qualquer divindade.
E entre os que crêem que ela exista, há profundas divergências, que vão desde a sua unicidade (muitos acreditam em muitos deuses), até sua forma, extensão e poder. E é bom que seja assim. É o homem exercendo sua racionalidade. Irracional é tentar fazer, a força, com que alguém pense como nós. E o número de vítimas de guerras, que tiveram por pretexto razões religiosas (envolvendo um grupo tentando impor seus pensamentos e conceitos a outro através de armas) ascende a milhões ao longo da história.
Claro que tais guerreiros não podem ser enquadrados na definição de "civilizados". As divergências (sejam de que natureza forem), em vez de conduzir as pessoas à confrontação e até ao homicídio (como ocorre), deveriam agir no sentido da sua aproximação, enquanto seres inteligentes e livres.
Os verdadeiros democratas sabem que democracia não é a ausência de conflitos. Esta só ocorre nas mais ferozes ditaduras, onde o pensamento do tirano conta com exclusividade. O ditador é o único "dono da verdade", até por definição. Sente-se senhor da vida e da morte dos que estão submetidos à sua tirania, amparado, é claro, na força bruta, tendo a cumplicidade de seguidores fiéis (que só mantêm fidelidade enquanto seus interesses são satisfeitos).
A história provou inúmeras vezes que sociedades desse tipo nunca prosperam. As maiores potências da atualidade são aquelas onde os conflitos não são extintos, mas administrados com sabedoria e relativa justiça por instituições criadas para esse fim. É o caso específico dos Estados Unidos. Ou dos países que integram a União Européia.
Mesmo ali, no entanto, ainda há muito, muitíssimo, exagerado autoritarismo, que nasce dentro da família (com a ausência de diálogo em casa de pais que "mandam" e não "ponderam") e se espraia por toda a sociedade.
O escritor britânico H. G. Wells destaca: "O estimulante conflito das individualidades é o fim último da vida pessoal e todas nossas utopias não são senão esquemas para melhorar essa interação".
O dramaturgo Nelson Rodrigues tem uma forma mais direta e saborosa de dizer isso. Afirma que "toda unanimidade é burra". E é mesmo. Na maioria dos casos, reflete unicamente "preguiça de pensar". Ou domínio de alguém sobre muitos, na maioria das vezes determinado por ameaças (sutis ou ostensivas, não importa).
A Carta Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, muito mencionada e pouquíssimo cumprida, sentencia que "todos os homens nascem livres, com igualdade de direitos e obrigações". Mas não é preciso ser nenhum gênio para perceber que isto não passa de "letra morta". Por incrível que possa parecer, e por maiores que tenham sido os avanços no relacionamento entre os indivíduos, ainda há escravidão --- explícita e disfarçada --- em várias partes do Planeta.
Estima-se por volta de 200 milhões o número de pessoas que têm sua liberdade e sua dignidade covardemente violadas, sem que ninguém faça nada para coibir ou evitar. Uma geração que age dessa maneira, que tolera tal comportamento, não pode ser considerada civilizada. Que todos os homens deveriam ser iguais em direitos e deveres é bastante óbvio, embora nem todos (ou raríssimos) entendam isso. Até porque, há um fator biológico que atua como argumento decisivo e que suprime na prática eventuais veleidades de superioridade: a morte. Quem pode contra esse nivelador?

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk