terça-feira, 30 de novembro de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – O elixir da juventude

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica “Boa viagem!”.

Coluna Tecelã de emoções – Risomar Fasanaro, crônica “Um raio de luz na escuridão”

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, crônica “Festa Literária Internacional de Pernambuco (2007/2010)’”

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Canção marinheira”.

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, artigo ”Liberdade de expressão: uma armadilha para pegar quem?”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

O elixir da juventude


O espírito, essa nossa porção misteriosa e imaterial, que nos anima e dá vida, ao contrário do seu invólucro de carne, o corpo, nunca envelhece. Mantém o viço e frescor enquanto vivermos. Claro que, inadvertidamente, podemos matá-lo prematuramente. Mas não há idade para a elaboração de nossas obras e a conquista de nossos ideais. Compete-nos alimentar nosso espírito com boas idéias e nobres sentimentos e iluminá-lo com a beleza. Em vez de permitir que se envenene com ressentimentos, cobiça, inveja e outras tantas coisas mesquinhas e destrutivas, devemos nutri-lo com bons livros, boa música, amizades sinceras e um grande e indestrutível amor. Dessa forma, nosso espírito conservará, sempre, o viço da juventude. É do escritor Aníbal Machado esta feliz e precisa afirmação, colocada na boca de um dos seus personagens: “O espírito só tem uma idade: ou é sempre jovem ou não é espírito”.

E o corpo, há como evitar que envelheça? Não! O que existe é a possibilidade de, mediante hábitos saudáveis de vida, retardar, e apenas por certo tempo (mas não muito) o envelhecimento. Depois que este se instala, todavia, não existe forma de reverter o processo. É irreversível. Há milênios, no entanto, a humanidade sonha com produtos milagrosos que não somente retardem, mas revertam a velhice, deixando, quem os consuma, eternamente jovens. Há uma infinidade de lendas a propósito. Uma dlas é a que se refere à fonte da juventude. Foi em busca dela, por exemplo, que o conquistador espanhol, Juan Ponce de Leon, descobriu, em 1512, o território que hoje se constitui no Estado norte-americano da Flórida. Não era o que queria. Não encontrou sequer o mais remoto vestígio da tão ansiosamente buscada fonte da juventude e por uma razão simplérrima: esta, obviamente, não existe e nunca existiu.

Muita gente, todavia, ainda hoje, com todo o aparato de informação e comunicação que existe, ainda crê na sua existência. Há várias lendas a respeito da tal fonte. Dela manaria uma água miraculosa com a capacidade de rejuvenescer quem a beba. Caso existisse, de fato, e alguém a descobrisse, já imaginaram a fortuna que o sortudo descobridor ganharia? Afinal, quem não quer conservar o viço, a beleza, a disposição e o vigor da juventude? Da minha parte, gostaria de tudo isso, mas sem perder a sabedoria que os muitos anos que vivi me conferiram e, sobretudo, esse bem inestimável que é a experiência. Se tiver que fazer simplesmente mera troca, prefiro continuar como estou. Afinal, modéstia a parte, nem estou tão acabado assim.

Uma das narrativas que dão conta da existência da tal da fonte da juventude – a tal que Ponce de Leon nunca descobriu – diz que ela teria sido descoberta na Península Arábica, pelos árabes, obviamente, e, no entanto teria sido roubada por bárbaros (não no sentido que os jovens empregam esta palavra, ou seja, de magnífico, mas no de quem pratica barbáries). Os ladrões desse preciosíssimo bem foram, claro, amaldiçoados. Ninguém abençoa quem nos suprima o que é precioso. Quem os amaldiçoou? Foi o líder da aldeia em que a fonte da juventude havia sido descoberta. Deve ter sido uma maldição daquelas!

Os ladrões fugiram de barco, levando esse manancial com eles (só não entendo como alguém poderia transportar uma fonte. Mas como se trata de lenda... tudo é possível). Em alto mar, como conseqüência da maldição (maldiçãozona!), a embarcação afundou, matando os fugitivos. Desde então, há quem acredite que esse miraculoso manancial, por não ser natural e conter águas muito puras, não foi contaminado pelo mar. Flutua no oceano e um dia irá bater em alguma praia (se é que ainda não bateu). Sequer me admiro que haja quem acredite em absurdo como este. Afinal, se acreditam em Papai Noel, coelhinho da Páscoa e nos políticos de Brasília, por que não haveriam de acreditar nisso também?!

Outra lenda diz que a fonte da juventude se encontra (vejam só!) no Ártico. Suas águas misturaram-se às do oceano sem perderem seu poder. Essa versão diz que a pessoa que se banhar nua, em noites de lua cheia, nas águas mornas da parte do Ártico mais próxima do Pólo Norte, se tornará imortal e eternamente jovem. Aviso aos navegantes: a temperatura, ali, pode passar dos 50 graus centígrados abaixo de zero. Você se habilitaria a tomar banho, nu, lá, mesmo assim? Eu é que não!

Uma terceira versão diz que a fonte da juventude está no oceano (mas não identifica em qual), e numa ilha que não consta em nenhum mapa. Essa outra lenda garante que quem beber a sua água será teletransportado ao passado, ao tempo em que era bebê, retomando a vida desde o princípio. Quando começar a envelhecer, basta tomar novamente o miraculoso líquido para iniciar tudo de novo, quantas vezes quiser. Creiam-me, leitores, não estou brincando com vocês, há pessoas que acreditam em tudo isso!

Antes de se espalharem as lendas sobre a fonte da juventude, falava-se, e há muito tempo, de um hipotético elixir da juventude, boato que ninguém sabe onde, quando e nem com quem surgiu, mas que passou de pai para filho, por milhares de gerações, até chegar aos nossos dias. Para os alquimistas (aqueles que juravam saber como transformar chumbo em ouro), esse supostamente mágico líquido encontrava-se no “ouro potável”. Suas propriedades curariam qualquer doença e regenerariam organismos envelhecidos, prolongando a vida. O miraculoso elixir tinha, também, o nome de “águas dos filósofos”. Muito charlatão deve ter ficado milionário vendendo este suposto produto mágico a uma infinidade de trouxas.

Responda-me na bucha: você quer manter o espírito sempre jovem (pois o corpo não tem jeito)? Ame. Ame sempre, muito e profundamente. Ame sem peias e sem reservas. Ame física, mental e psicologicamente. Ame da manhã até a noite. Ame na infância, juventude, maturidade e velhice. Nunca se canse da amar. Asseguro-lhes, pacientes leitores, que não há processos de envelhecimento, por mais severos que sejam, que resistam a esse potentíssimo elixir da juventude chamado de “Amor”!

Boa leitura.

O Editor.



Boa Viagem!

* Por Evelyne Furtado

Quem compraria bilhetes para uma jornada árdua e insípida com incessantes escalas de contas a pagar, de compromissos a cumprir e de estratégias complexas para a sobrevivência?

Eu não compraria e meu não seria enfático. Isso me soa mais sacrificante de que uma peregrinação religiosa sem promessa de salvação ao fim.

E se o marketing prometesse prazeres, sonhos de consumo, realizações de desejos, contemplações estéticas, glórias e outras satisfações do ego?

Então eu pensaria mais um pouco, afinal sou sensível às tentações como qualquer ser humano.

-Tem amor nessa viagem? – perguntaria depois de contemplar os últimos itens com os olhos brilhando de contentamento antecipado, mas desconfiada de uma ausência essencial.

Diante da resposta negativa, recuaria. Eu não suportaria o tédio salpicado de prazer. A vida sem amor não faz sentido. Não me interessa uma viagem longa sem afeto ao começo, ao meio, ao fim.

-A vontade amorosa permeia toda a viagem! – Eis a resposta que me convence. Assim, embarco e recomendo a viagem. Pois a vida nasce do encontro de tais vontades e nelas se sustenta, ainda que sejam expressões de outras pulsões, como quis aquele senhor genial por quem nutro enorme admiração, simpatia e uma dose conveniente de reserva.

• Poetisa e cronista de Natal/RN



Um raio de luz na Escuridão

* Por Risomar Fasanaro

Eu estive no Rio de quinta, dia 25 deste mês, a domingo. Fui a dois eventos ligados à poesia, e pude sentir de perto o clima que vive sua população.
Caminhando nas ruas semi desertas daquela cidade que amo tanto, confirmei o que pensei sempre: as cidades têm alma, e o Rio estava triste, o Rio estava cinzento, cabisbaixo, de luto.
A cidade acostumada a ter suas ruas percorridas por pessoas “coloridas pelo sol” estava invadida por viaturas policiais, o som que ouvíamos era o de sirenes, e as pessoas com quem cruzávamos tinham um ar de preocupação, e a pressa dos que têm medo.
Mas mesmo no meio da escuridão que vive, há uma luz. E a encontrei em dois eventos poéticos: o lançamento do livro “Loucas Noites”, da poeta norte-americana Emily Dickinson, traduzido por Isa Mara Lando, e a exposição de Sílvio Tendler, “Há muitas Noites na Noite”: uma vídeo instalação sobre o “Poema sujo” de Ferreira Gullar que estará aberta até o dia 6 de dezembro.
Só ouvindo Isa declamar os poemas de E. Dickinson, no Califórnia Coffee, e só visitando a exposição de Sílvio Tendler, para se ter idéia do que se pode fazer com Poesia, esta arte tão mal compreendida.
Naquela cidade hoje encolhida pelo medo as pessoas tiveram a oportunidade ver o trabalho desses dois grandes artistas: Isa e Sílvio, que coincidentemente acontecem em locais diferentes, mas na mesma rua. Ambos ofereceram à cidade alguns instantes de esquecimento da violência que havia lá fora.
A exposição de Sílvio Tendler é um marco. Depois dela nunca mais se falará que poesia é uma arte distante dos simples mortais. Nunca mais ela será vista da mesma maneira.
Aberta à visitação no Teatro Oi Futuro- Rua visconde de Pirajá, 54, 2º andar – Ipanema. De terça a domingo, das 13 às 21 h.
E Isa Mara Lando estará vendendo o livro de E. Dickinson só no sábado, dia 4 de dezembro, no Califórnia Coffee- na rua Visconde de Pirajá, 540- térreo- Galeria Esquina de Ipanema a partir das 15h, quando contará passagens da vida da poeta além de ler alguns de seus poemas.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.










Festa Literária Internacional de Pernambuco (2007/2010)

* Por José Calvino de Andrade Lima


A Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto) este ano mudou. E eu, como escritor independente, ainda com disposição, não poderia deixar de registrar aqui no Literário um evento como a Flip, pela primeira vez, de paisagem. De Porto de Galinhas para a histórica Olinda, Cidade Patrimônio.
No sábado 13/11/2010, foi grande a alegria de encontrar a minha filha Maria do Carmo, com sua permanente capacidade de se comunicar com o próximo. Falamos sobre o fato da Flip homenagear a escritora Clarice Lispector e ela comentou sobre a palestra que assistiria com Contardo Calligaris, o psicanalista italiano residente no Brasil mais famoso do país, que faz ponte semanal entre São Paulo e Nova York e que atraiu centenas de psicólogos, que lotaram o auditório.
Como os debates eram transmitidos em telões, sem que fosse preciso comprar ingresso, quem não queria acompanhar as discussões teve a opção de passear pela Feira do Livro e assistir a leitura ao ar livre. Como não faço parte de panelinhas, fiz o que gosto: “ouvir a voz do povo”. Um poeta independente e o percussionista Emílio, mais conhecido por “Pinga” foram os que mais me chamou a atenção na Tribuna Livre da Praça do Carmo. Por que? Lembrei-me da Festa Literária Internacional (Fliporto), na então tribuna livre da Praça das Piscinas Naturais, Porto de Galinhas (2007), quando a UBE promoveu recital com a participação de 24 escritores. No domingo (14/11), o poeta e editor Lelces Xavier e Calvino Lima na Tribuna Livre fez a leitura do Folhetim Rimado (A herança que meu pai deixou!), de sua autoria, e que está sendo concretizado para levar aos leitores uma nova roupagem da Literatura de Cordel.

A quem interessar possa, segue a reprodução do show, gratuita:


1 - Maracatu Barco Virado: Olha que batuque, minha gente,/eu quero mostrar,/é o Barco Virado,/pra todo mundo dançar.//Dança preto e dança branco,/no Maracatu da Mata,/já dançavam os escravos,/sob o som dos atabaques.//O Maracatu no Paço,/ao paço pela tarde,/os reis vão assistir,/o rítmico do passo.../a alma negra está em nós,/o espírito da liberdade,/o batuque no terreiro,/este samba é de nós.//Dança, dança, minha gente,/Hoje não há mais escravos,/E vamos sambar,/Eu quero é sambar,/Eu quero é sambar...

( A platéia vibrou, sambando)


2 - Zezinho perde pão com medo das almas penadas


Zezinho trabalhava na padaria de seu Manoel, um português avarento da peste. A padaria ficava na Rua Padre Lemos em Casa Amarela, bem perto do cemitério.
Desde pequeno que ele tinha medo de alma. Além de trabalhar no balcão, fazia papel também de pãozeiro (nos anos 50 assim era chamado quem entregava de madrugada os pães nas casas dos clientes). Certo dia, quando passava pela calçada do cemitério, ouviu uma voz fanhosa:

- Ei, me dá um pão.

O susto foi tão grande que Zezinho derrubou o balaio cheio de pães e voltou às carreiras para a padaria mais branco do que cal. Só não viu o vigia Fom-fom (apelido por ter a voz nasal) morrendo de rir. Na padaria, o portuga carola tranqüilizou Zezinho:

- Fique calmo, Deus é pai. Vou descontar os pães de seu salário. Agora, você deve acender velas toda segunda-feira, à noite, para as almas penadas.

Zezinho pediu demissão na hora, dizendo:

- Alma, eu não quero ver mais nunca, nunca, nunca, nunca...

( Dominamos a platéia, fazendo todo mundo rir)


3 - Recife e Olinda: Do Recife/ De Olinda/ Das pontes/ Das praias/ Dos coqueiros/ Das gaivotas// Dos carnavais/ Dos bares/ das jangadas/ Das cirandas/ Dos amores// Do poema/ Da lua/ Do sol/ Dos arrecifes/ Dos morros/ das cidades...

4 – Festa Literária: Embora ocupado/ Mas pra mim foi bacana/ A Festa Literária/ Da Fliporto// (...) A nossa Bienal do Livro vem aí/ Eu quero ver os leitores/ O nosso livro procurar/ E cobrar também dos livreiros/ Os demais autores independentes// Finalizo com meu nome/ Vocês já me conhecem/ Através da poetada/ Calvino meu sobrenome/ A partir da intimidade/ Pois já sou de idade/ Vininho na intimidade/ Andrade Lima em nome da fidelidade. E

Obs: FLIPORTO foi de 12 a 15 de novembro de 2010.


Foto 1 - Calvino Lima - Fliporto Olinda (2010)

Foto 2 - O autor, lendo dois poemas da poetisa mineira Teresa Oliveira.

Foto 3 - Fliporto - Porto de Galinhas (2007)


*Formado em comunicações internacionais, escritor, teatrólogo, poeta, compositor, membro da União Brasileira de Escritores, UBE-PE e rei do Maracatu Barco Virado. Como escritor e poeta, tem trabalhos publicados nos jornais: Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Folha de Pernambuco e em vários sites... Tem 11 títulos publicados, todas edições esgotadas. Em 2007, integrou-se na Antologia (Poetas Independentes).



Canção marinheira

* Por Talis Andrade

Do insondável mar o convite
Que se dane a advertência
de tapar os ouvidos
a prudência de permitir
que amarrem o meu corpo
ao mastro do navio
Quero ouvir o cantar das sereias
o amavio da voz de Lorelei
me chamando

Salto no escuro
Vejo os olhos da morte
Azuis azuis azuis
Salto no escuro
cantando a canção de Fausto
nas tempestades e assaltos
A canção quem me ensinou
foi Evandro San Martim

Salto no escuro
entre os dentes trago a faca
e nos meus olhos coloridos
- juro –
ó Ana, vem ver
ó Ana, vem ver
o fogo no mar
os peixes a arder


(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 6 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Romance do Emparedado” (Editora Livro Rápido) e outros cinco à espera de edição.



Liberdade de expressão: uma armadilha para pegar quem?

* Por Elaine Tavares

O velho Marx já ensinou a muitos anos sobre o que é a ideologia. É o encobrimento da verdade. Assim, tudo aquilo que esconde, vela, obscurece, tapa, encobre, engana, é ideologia. É dentro deste espectro que podemos colocar o debate que se faz hoje no Brasil, na Venezuela, no Equador e na Bolívia sobre o binômio “liberdade de expressão X censura”. Para discutir esse tema é preciso antes de mais nada observar de onde partem os gritos de “censura, censura”, porque na sociedade capitalista toda e qualquer questão precisa ser analisada sob o aspecto de classe. A tal da “democracia”, tão bendita por toda a gente, precisa ela mesma de um adjetivo, como bem já ensinou Lênin. “Democracia para quem? Para que classe?”.

Na Venezuela a questão da liberdade de expressão entrou com mais força no imaginário das gentes quando o governo decidiu cassar a outorga de uma emissora de televisão, a RCTV, por esta se negar terminantemente a cumprir a lei, discutida e votada democraticamente pela população e pela Assembléia Nacional. “Censura, cerceamento da liberdade de expressão” foram os conceitos usados pelos donos da emissora para “denunciar” a ação governamental. Os empresários eram entrevistados pela CNN e suas emissoras amigas, de toda América Latina, iam reproduzindo a fala dos poderosos donos da RCTV. Transformados em vítimas da censura, eles foram inclusive convidados para palestras e outros quetais aqui nas terras tupiniquins.

Lá na Venezuela os organismos de classe dos jornalistas, totalmente submetidos à razão empresarial, também gritavam “censura, censura” e faziam coro com as entidades de donos de empresas de comunicação internacionais sobre o “absurdo” de haver um governo que fazia cumprir a lei. Claro que pouquíssimos jornais e jornalistas conseguiram passar a informação correta sobre o caso, explicando a lei, e mostrando que os que se faziam de vítima, na verdade eram os que burlavam as regras e não respeitavam a vontade popular e política. Ou seja, os arautos da “democracia liberal” não queriam respeitar as instituições da sua democracia. O que significa que quando a democracia que eles desenham se volta contra eles, já não é mais democracia. Aí é ditadura e cerceamento da liberdade de expressão.

No Brasil, a questão da censura voltou à baila agora com o debate sobre os Conselhos de Comunicação. Mesma coisa. A “democracia liberal” consente que existam conselhos de saúde, de educação, de segurança, etc... Mas, de comunicação não pode. Por quê? Porque cerceia a liberdade de expressão. Cabe perguntar. De quem? Os grandes meios de comunicação comercial no Brasil praticam a censura, todos os dias, sistematicamente. Eles escondem os fatos relacionados a movimentos sociais, lutas populares, povos indígenas, enfim, as maiorias exploradas. Estas só aparecem nas páginas dos jornais ou na TV na seção de polícia ou quando são vítimas de alguma tragédia. No demais são esquecidas, escondidas, impedidas de dizerem a sua palavra criadora. E quando a sociedade organizada quer discutir sobre o que sai na TV, que é uma concessão pública, aí essa atitude “absurda” vira um grande risco de censura e de acabar com a liberdade de expressão. Bueno, ao povo que não consegue se informar pelos meios, porque estes censuram as visões diferentes das suas, basta observar quem está falando, quem é contra os conselhos. De que classe eles são. Do grupo dos dominantes, ou dos dominados?

Agora, na Bolívia, ocorre a mesma coisa com relação à recém aprovada lei anti-racista. Basta uma olhada rápida nos grandes jornais de La Paz e lá está a elite branca a gritar: “censura, censura”. A Sociedade Interamericana de Imprensa, que representa os empresários, fala em cerceamento da liberdade de expressão. Os grêmios de jornalistas, também alinhados com os patrões falam a mesma coisa, assim como as entidades que representam o poder branco, colonial e racista. Estes mesmos atores sociais que ao longo de 500 anos censuraram a voz e a realidade indígena e negra nos seus veículos de comunicação, agora vem falar de censura. E clamam contra suas próprias instituições. A lei anti-racista prevê que os meios de comunicação que incentivarem pensamentos e ações racistas poderão ser multados ou fechados. Onde está o “absurdo” aí? Qual é o cerceamento da liberdade de expressão se a própria idéia de liberdade, tão cara aos liberais, se remete à máxima: “a minha liberdade vai até onde começa a do outro”? Então, como podem achar que é cerceamento da liberdade de expressão usar do famoso “contrato social” que garante respeito às diferenças?

Ora, toda essa gritaria dos grandes empresários da comunicação e seus capachos nada mais é do que o profundo medo que todos têm da opinião pública esclarecida. Eles querem o direito de continuar a vomitar ideologia nos seus veículos, escondendo a voz das maiorias, obscurecendo a realidade, tapando a verdade. Eles querem ter o exclusivo direito de decidir quem aparece na televisão e qual o discurso é válido. Eles querem manter intacto seu poder escravista, racista e colonial que continua se expressando como se não tivessem passado 500 anos e a democracia avançado nas suas adjetivações. Hoje, na América Latina, já não há apenas a democracia liberal, há a democracia participativa, protagônica, o nacionalismo popular. As coisas estão mudando e as elites necrosadas se recusam a ver.

O racismo é construção de quem domina

Discursos como esses, das elites latino-americanas e seus capachos, podem muito bem ser explicados pela história. Os componentes de racismo, discriminação e medo da opinião pública esclarecida têm suas raízes na dominação de classe. Para pensar essa nossa América Latina um bom trabalho é o do escritor Eric Williams, nascido e criado na ilha caribenha de Trinidad Tobago, epicentro da escravidão desde a invasão destas terras orientais pelos europeus. No seu livro Capitalismo e Escravidão, ele mostra claramente que o processo de escravidão não esteve restrito apenas ao negro. Tão logo os europeus chegaram ao que chamaram de Índias Orientais, os primeiros braços que trataram de escravizar foram os dos índios.

Os europeus buscavam as Índias e encontraram uma terra nova. Não entendiam a língua, não queriam saber de colonização. Tudo o que buscavam era o ouro. Foi fácil então usar da legitimação filosófica do velho conceito grego que ensinava ser apenas “o igual”, “o mesmo”, aquele que devia ser respeitado. Se a gente originária não era igual à européia, logo, não tinha alma, era uma coisa, e podia ser usada como mão de obra escrava para encontrar as riquezas com as quais sonhavam. Simples assim. Essa foi a ideologia que comandou a invasão e seguiu se sustentando ao longo destes 500 anos. Por isso é tão difícil ao branco boliviano aceitar que os povos originários possam ter direitos. Daí essa perplexidade diante do fato de que, agora, por conta de uma lei, eles não poderão mais expressar sua ideologia racista, que nada mais fez e ainda faz, que sustentar um sistema de produção baseado na exploração daquele que não é igual.

Eric Williams vai contar ainda como a Inglaterra construiu sua riqueza a partir do tráfico de gente branca e negra, para as novas terras, a serem usadas como braço forte na produção do açúcar, do tabaco, do algodão e do café. Como o índio não se prestou ao jogo da escravidão, lutando, fugindo, morrendo por conta das doenças e até se matando, o sistema capitalista emergente precisava inventar uma saída para a exploração da vastidão que havia encontrado. A escravidão foi uma instituição econômica criada para produzir a riqueza da Inglaterra e, de quebra, dos demais países coloniais. Só ela seria capaz de dar conta da produção em grande escala, em grandes extensões de terra. Não estava em questão se o negro era inferior ou superior. Eram braços, e não eram iguais, logo, passíveis de dominação. Eles foram roubados da África para trabalhar a terra roubada dos originários de Abya Yala.

Também os brancos pobres dos países europeus vieram para as Américas como servos sob contrato, o que era, na prática, escravidão. Segundo Williams, de 1654 a 1685, mais de 10 mil pessoas nestas condições partiram somente da cidade de Bristol, na Inglaterra, para servir a algum senhor no Caribe. Conta ainda que na civilizada terra dos lordes também eram comuns os raptos de mulheres, crianças e jovens, depois vendidos como servos. Uma fonte segura de dinheiro. De qualquer forma, estas ações não davam conta do trabalho gigantesco que estava por ser feito no novo mundo, e é aí que entra a África. Para os negociantes de gente, a África era terra sem lei e lá haveria de ter milhões de braços para serem roubados sem que alguém se importasse. E assim foi. Milhões vieram para a América Latina e foram esses, juntamente com os índios e os brancos pobres, que ergueram o modo de produção capitalista, garantiram a acumulação do capital e produziram a riqueza dos que hoje são chamados de “países ricos”.

E justamente porque essa gente foi a responsável pela acumulação de riqueza de alguns que era preciso consolidar uma ideologia de discriminação, para que se mantivesse sob controle a dominação. Daí o discurso – sistematicamente repetido na escola, na família, nos meios de comunicação – de que o índio é preguiçoso, o negro é inferior e o pobre é incapaz. Assim, se isso começa a mudar, a elite opressora sabe que o seu mundo pode ruir.

Liberdade de expressão

É por conta da necessidade de manter forte a ideologia que garante a dominação que as elites latino-americanas tremem de medo quando a “liberdade de expressão” se volta contra elas. Esse conceito liberal só tem valor se for exercido pelos que mandam e aí voltamos àquilo que já escrevi lá em cima. Quando aqueles que os dominadores consideram “não-seres” - os pobres, os negros, os índios – começam a se unir e a construir outro conceito de direito, de modo de organizar a vida, de comunicação, então se pode ouvir os gritos de “censura, censura, censura” e a ladainha do risco de se extinguir a liberdade de expressão.

O que precisa ficar bem claro a todas as gentes é de que está em andamento na América Latina uma transformação. Por aqui, os povos originários, os movimentos populares organizados, estão constituindo outras formas de viver, para além dos velhos conceitos europeus que dominaram as mentes até então. Depois de 500 anos amordaçados pela “censura” dos dominadores, os oprimidos começam a conhecer sua própria história, descobrir seus heróis, destapar sua caminhada de valentia e resistência. Nomes como Tupac Amaru, Juana Azurduy, Zumbi dos Palmares, Guaicapuru, Bartolina Sisa, Tupac Catari, Sepé Tiaraju, Dandara, Artigas, Chica Pelega, assomam, ocupam seu espaço no imaginário popular e provocam a mudança necessária.

Conceitos como Sumak kawsay, dos Quíchua equatorianos, ou o Teko Porã, dos Guarani, traduzem um jeito de viver que é bem diferente do modo de produção capitalista baseado na exploração, na competição, no individualismo. O chamado “bem viver” pressupõe uma relação verdadeiramente harmônica e equilibrada com a natureza, está sustentado na cooperação e na proposta coletiva de organização da vida. Estes são conceitos poderosos e “perigosos”. Por isso, os meios de comunicação não podem ficar à mercê dos desejos populares. Essas idéias “perigosas” poderiam começar a aparecer num espaço onde elas estão terminantemente proibidas. É esse modo de pensar que tem sido sistematicamente censurado pelos meios de comunicação. Porque as elites sabem que destruída e ideologia da discriminação contra o diferente e esclarecida a opinião pública, o mundo que construíram pode começar a ruir. A verdadeira liberdade de expressão é coisa que precisa ficar bem escondida, por isso são tão altos os gritos que dizem que ela pode se acabar se as gentes começarem a “meter o bedelho” neste negócio que prospera há 500 anos.

Basta de bobagens

É neste contexto histórico, econômico e político que deveriam ser analisados os fatos que ocorrem hoje na Venezuela, no Equador, na Bolívia e na Argentina. O Brasil deveria, não copiar o que lá as gentes construíram na sua caminhada histórica, mas compreender e perceber que é possível estabelecer aqui também um processo de mudança. Neste mês de novembro o Ministério das Comunicações chamou um seminário para discutir uma possível lei de regulamentação da mídia brasileira. Não foi sem razão que os convidados eram de Portugal, Espanha e Estados Unidos. Exemplos de um mundo distante, envelhecido, necrosado, representantes de um capitalismo moribundo. As revolucionárias, criativas e inovadoras contribuições dos países vizinhos não foram mencionadas. A Venezuela tem uma das leis mais interessantes de regulamentação da rádio e TV, a Argentina deu um passo adiante com a contribuição do movimento popular, a Bolívia avança contra o racismo, o Equador inova na sua Constituição, e por aqui tudo é silêncio. Censura?

Os governantes insistem em buscar luz onde reina a obscuridade. E, ainda assim pode-se ouvir o grito dos empresários a dizer: censura, censura, censura. O atraso brasileiro é tão grande que mesmo as liberais regulamentações européias são avançadas demais. Enquanto isso Abya Yala caminha, rasgando os véus...

• Jornalista de Florianópolis/SC

segunda-feira, 29 de novembro de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Como seria?

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, crônica “Mulheres”

Coluna Sensibi9lidade e sutilezas – Aliene Coutinho, crônica “Mãos ao alto, porquinhos de barro”.

Coluna Pessoas e histórias – Eduardo Murta, conto “Doei até meus ossos pelo eterno amor”.

Coluna Porta Aberta – Marleuza Machado, poema “Abrindo portas!”.

Coluna Porta Aberta – Karina Monteiro, crônica “Insônia literária”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Como seria?

A moderna tecnologia, notadamente a de comunicação – computador, internet, celular, mp4, IPAD, TV LCD de plasma ou 3D e vai por aí afora – e não apenas ela, mas também os avanços nos transportes, vieram a facilitar, em muito, a vida dos escritores. Até aí, eu não disse nada de novo. Limitei-me a ressaltar o óbvio e sequer fui original, já que escrevi a respeito um montão de vezes.
Ademais, todas as engenhocas que citei (e uma infinidade de outras que não mencionei, mas que ficam implícitas), trouxeram facilidades e conforto não somente para profissionais do texto, mas para todos. Claro, esse “todos” é relativo. Refere-se aos que tenham condições de pagar por tais quinquilharias. Então por que mencionei especificamente os escritores? Ora, por razões óbvias. Pelo fato deste espaço ser voltado à literatura e a quem a faz. Só por isso.
Fico perguntando cá aos meus botões, nos meus raros momentos de ócio: como seria a vida, e mais, a obra dos chamados “clássicos”, (já nem digo das letras mundiais, mas restringindo o âmbito, das nacionais) se pudessem contar com todos esses equipamentos? O que Machado de Assis, por exemplo, faria com todos esses recursos tecnológicos? Como tudo isso influenciaria nos enredos de seus contos, romances e novelas e na descrição e comportamento de seus personagens? Sua produção seria a que conhecemos ou se multiplicaria? Creio piamente nesta segunda hipótese.
Claro que só posso especular a respeito do que nunca aconteceu e nem pode (óbvio) acontecer. Mas o campo para a especulação é livre, irrestrito, vastíssimo, diria infinito, do tamanho da imaginação de cada um. E a minha, asseguro, não é pequena. Machado de Assis, com certeza, adquiriria todo esse aparato tecnológico, caso ele estivesse ao seu dispor. Afinal, era um sujeito tido como “moderno” já naqueles idos longínquos de metade do século XIX, época em que as grandes descobertas, que redundaram no mundo que temos diante de nós hoje, começaram a pipocar umas após outras.
O Bruxo do Cosme Velho teria, claro, seu computador. E à medida que a capacidade de memória fosse sendo expandida em novos modelos, trocaria, amiúde, seu aparelho “velho” por outro mais atualizado e potente. Disporia de todos os softwares que tivessem algo a ver com comunicação, como os editores de texto (não sei se o último Corel disponível, ou se o Indesign, ou se outro qualquer, ainda melhor, que eu sequer desconfie que exista), entre tantos outros.
Navegaria com a maior familiaridade na internet e teria, no seu menu de favoritos, os principais sites e blogs voltados à Literatura (quem sabe, o Literário ou, até mesmo, para o meu orgulho, o meu espacinho pessoal cujo nome de fantasia é “O Escrevinhador”?). Seria, certamente, blogueiro. E nos brindaria, todos os dias, com alguma crônica ou conto inéditos, novinhos em folha. Seria um luxo!
Será que Machado de Assis seria “twitteiro”? Desconfio que sim. E qual seria seu endereço no twitter? @machado? @massis? Não! Creio que seria mais criativo, Assumiria, de vez, o apelido que seus admiradores (e só não o admirava ou admira quem fosse ou quem é analfabeto explícito ou quase, que soubesse ou que saiba somente juntar as palavras sem entender seu sentido e se limitasse ou se limite a “desenhar” o nome, classificado por essa razão de “analfabeto funcional”, que o Brasil teve e tem em profusão).
Quem aprecia só um tiquinho a leitura (e nem precisa ser “rato de biblioteca”), já deve ter lido alguma coisa de Machado. E se leu... será muito burro, ou terá péssimo gosto, se não gostou. E se leu e apreciou sua escrita, concordará com o apelido dado ao nosso maior escritor: “Bruxo do Cosme Velho”. Seu endereço no twitter, portanto, provavelmente, teria relação com esse cognome. Seria, estou certo, @bruxo. Faz bem o gênero do Machadão.
Já imaginaram se no tempo em que ele viveu e produziu toda a sua obra já existisse toda essa parafernália? Capitu judiaria muito mais do Bentinho do que judiou. Este morreria de ciúmes e jamais acabaria com a incerteza se era ou não traído. Afinal, veria em seu filho, à medida que este crescesse, cada vez mais semelhanças com Escobar. Sua “dissimulada” amada seria mulher moderna, liberada e bem-informada. Trabalharia, possivelmente, como gerente de alguma multinacional ou de um banco ou coisa que o valha.
No Carnaval, sairia como rainha da bateria da Mangueira, para deleite dos sambistas e desgosto de Bentinho, que a vigiaria como uma sombra, de todas as maneiras que lhe fossem possíveis. Tentaria, por exemplo, ter acesso aos seus e-mails, para fiscalizá-los e saber se havia algum suspeito, com texto, digamos, mais tórrido e enviado a Escobar.
Entraria no Orkut, no Facebook ou em qualquer outra rede social, na tentativa de descobrir se o rival integrava os respectivos círculos de amizade de Capitu. Mas esta manteria a discrição e a compostura. Permaneceria mais misteriosa e impassível que a multimilenar Esfinge. E Bentinho? Sofreria o diabo, muitíssimo mais do que Machado o fez sofrer.
No mais... cada um de vocês que imagine como seria o comportamento do Machadão e, por conseqüência, dos seus milhares de personagens (só de contos, li mais de 200 que ele escreveu, descrevendo gente de todos os tipos, perfis e atitudes), caso tivesse acesso a toda esta parafernália tecnológica que para nós é tão familiar, senão trivial.

Boa leitura.

O Editor.



Mulheres

* Por Núbia Araujo Nonato do Amaral

Todas as sextas-feiras as mulheres se reuniam em frente ao bar do Mauricinho, inclusive a mulher dele, a mais discreta na gargalhada. Por mais que tentássemos disfarçar o assunto, a Déia nos delatava com sua risada, não tinha jeito.

Era engraçado perceber a curiosidade deles que para não darem o braço a torcer mantinham a distância. Numa dessas madrugadas da vida, ao retornarmos de uma apresentação de forró ou sei lá o quê (ainda não defini o estilo do cantor),, paramos em frente ao bar para tomarmos a saideira.

Um rapaz que saía ao portão ficou intrigadíssimo, pois no grupo não havia homens e divertindo-se com a nossa rebeldia, tão natural e espontânea, nos chamou de transgressoras.

Nos definir hoje, apenas, com o que estabelece o dicionário, é mera redundância. Somos muito mais do que isso, complexas, eu diria. Mas vale a pena... não vale?


* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário



Mãos ao alto, porquinhos de barro

* Por Aliene Coutinho


Ando contando moedas, assim como a maioria dos brasileiros, para comprar o pão, o leite e até o cigarro. Outro dia esvaziei o cofrinho das crianças para pagar a passagem de ônibus da diarista. Sem o charme de antigamente, quando eram cunhadas em ouro, prata e cobre e se chamavam tostão, vintém – vale ressaltar que não vivi nessa época – hoje, contar moedas é sinal dos tempos. Dos tempos em que vivemos agora, de economizar, de deixar de lado pequenas regalias e grandes extravagâncias. A moeda, que ficava largada nos cantos da estante, dentro de porquinhos de barro, latas ou enchiam pequenos potes como decoração, agora paga o essencial.

E com tantas moedas e tão poucas cédulas – não me venham falar das de um e dois reais que em breve vão sair de circulação – nossos objetos de desejo vão ficando cada vez mais distantes. Já não me pertence mais o carro zero 2.0, sequer 1.8, os almoços de quinta-feira no Piantella, a compra à vista nas lojas de marca do Parkshopping, muito menos minhas lentes siliconadas e fluorcarbonadas de alta oxigenação e durabilidade, que usava há mais de dez anos e meus olhos tão bem se adaptaram.

Dá vontade de chorar, e as moedas hoje nem podem ser raspadas como antigamente, quando eram de metais nobres e as pessoas assim faziam para ficar com um pouco do ouro ou da prata, antes de passá-las para frente. Mas tem certas coisas que faço questão de manter, apesar da perda do poder financeiro, se o carro é mil, tem de ter, pelo menos, direção hidráulica e vidros elétricos. Almoço fora, pelo menos uma vez por mês, nem que seja num self-service, as roupas... bem, me viro nas lojas de departamento, em promoções e em idas furtivas às feiras do Guará e do Paraguai. E olha, até que acho peças bem interessantes que algumas amigas “estilosas” não acreditam quando digo onde foram compradas.

Agora, minhas lentes, essas eu não posso abrir mão mesmo. Preciso continuar enxergando, e muito bem, o que está a minha volta, o que se passa na nossa economia, no nosso Distrito Federal e no nosso País. Negociei, pela primeira vez na vida pechinchei mesmo, e consegui um desconto de 10%, e pagamento em três quase suaves prestações. Ufa!!!

* Jornalista e professora de Telejornalismo



Doei até meus ossos pelo eterno amor

* * Por Eduardo Murta


Chegue mais perto, chegue, se aproxime sem temor, empreste seus ouvidos. Mais que os ouvidos, sua compreensão, porque esperei luas demais, até que pudesse lhe contar. Cultivei a esperança como se a ninasse, e eis-me aqui. Um tremor leve me passeia ainda à alma, mas sinto que estou pronta. Podemos seguir? Não vá interpretar como lugar-comum: me chamo Maria. Estou, perceba a delicadeza em minha pose, à direita, nesta imagem que agora lhe visita, feito fosse vento se assomando a todas as frestas da casa.
Note como estou feliz. Não se apiede, portanto. João me acolhendo como um menino acolheria passarinhos enfermos. Os símbolos daquela manhã me acompanhariam vida afora, ainda que soe irônico eu usando expressões assim. Me recordo do sol generoso dominando o céu. A colheita, os deuses fossem abençoados, abundante e rica. Ah, como tínhamos razões para celebrar. Corpos pintados, cantoria e dança iriam varar as noites na aldeia. Iriam. Já ouviram, claro, falar em sacrifícios, tradicionais naquele tempo, não? Fora exatamente a mim quem o chefe do clã escolhera.

Flagrei quando seus dedos magros, unhas protuberantes, se moveram, indicativos. O grupo se calando, em reverência. Vinham em minha direção. Dezesseis anos, a primavera da sexualidade incensando todos meus sentidos, e sob o juramento de que a ninguém, além de João, me entregaria nessa terra. E ele, pactuamos, negaria guerras, a que jamais me perdesse. Me lembro ele cruzando rumo à ala das mulheres, quebra suprema de ritual. Fez-se um silêncio longo, João caminhando a mim. Soou a uma transição interminável. E sua mão tocou a minha no momento em que um dos membros do Conselho de Anciãos interrompeu, abrupto, com um "Basta!!!".

Já sabíamos como casos assim terminariam. Eram sentenças sem apelação. Permitiam que nos despedíssemos dos entes queridos, que vestíssemos nossas melhores roupas (elegi minha túnica de algodão) e disséssemos uma só frase no adeus coletivo. Eu partiria com uma convicção e julguei que deveria partilhá-la. Fui sucinta: - O mundo um dia conhecerá nossa história. E me conforto agora, ao perceber que a vida, logo ela, nos revelou.

Sinto ainda na boca o gosto do preparado de ervas que nos fizeram beber naquela manhã. Amargo. E implacável o bastante para que fizesse adormecer mesmo Tigres de Dente de Sabre. Flanamos por um instante, como atravessando tempestades, o corpo de João foi tomando o meu, até mergulharmos num estado em que tudo se cala. Foi longa a espera, mas cá estamos nós, eu e João, nos apresentando. Somos uma migalha inteiramente nua do querer sem datas. Um sinal, vá entender o mapa contraditório da existência, um sinal mais vivo que nunca da paixão. Um sopro do amor em caprichosa pose para a eternidade.

* O casal de esqueletos foi encontrado em fevereiro de 2007, em Mântua, no Norte da Itália. Arqueólogos estimam que tenham entre 5 mil e 6 mil anos.

** Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.



Abrindo portas

* Por Marleuza Machado

Senhor...
Faça com que eu aprenda o que é amar!
E que amando, eu me torne mais gente
E sendo gente, eu aprenda a ser mais humana
E sendo humana, eu me permita errar
E praticando erros, eu aprenda a perdoar
E perdoando, eu esteja mais próxima de Ti.

• Jornalista e poetisa

Insônia Literária

* Por Karina Monteiro

O sono me esqueceu por completo. São 3 horas da manhã e nada dele se manifestar. Ás vezes, imagino que meu corpo e minha alma poderiam ser nutridos somente de versos, como se minha estrutura física não necessitasse do sono, nem do alimento, mas somente da grandeza interior adquirida pela paixão à arte e à escrita.
Não consigo parar. Este vício me consome dia a dia, madrugada a madrugada. Escrever é a força que me liberta das dores desta vida tão incerta. O dom de escrever é o presente que me foi dado. Após descoberto este poder, não canso de brincar com ele tal como uma criança entusiasmada. Às vezes não sei por onde meus passos devem caminhar, mas minhas mãos sabem exatamente quais traços devem ser deixados na folha em branco. Minha mente sabe primorosamente quais idéias devem ser expressas no papel.
Simplesmente quando eu estou sem rumo me coloco a escrever, então me reencontro e acho o caminho certo pra seguir. Escrever me devolve o chão, me traz tudo que necessito para continuar minha caminhada.
O silêncio da noite é meu companheiro. Ele me inspira a refletir e escrever. No momento em que estamos sozinhos, em busca do nosso verdadeiro eu, é quando realmente encontramos as respostas para às nossas aflições. É neste silêncio em que nos deparamos com nós mesmos, nossas fraquezas, sonhos e desejos. É no cair da madrugada que encontramos as nossas mais íntimas vontades e então percebemos o quanto somos movidos a sentimentos.
Mesmo que a madrugada passe e que apareçam os primeiros raios de sol da manhã, continuarei a escrever meus versos. O passar das horas já não me interessa. Perdi a noção de tempo tamanha é a sede que possuo de escrever, tamanha é a vontade de matar minha inquietude em cima de novos versos.
Esta é uma insônia maravilhosa. Não dormir para continuar escrevendo realmente vale à pena. Não quero saber se é dia ou noite, quero apenas escrever e descrever o que se passa em meu interior. Mesmo que meu corpo já não possua forças, minha alma não cansa de escrever. Portanto só dormirei quando for vencida por completo pelo domínio físico.
Que venham os próximos versos e que eu vire a próxima página do meu caderno de anotações literárias. O horário? Ah! Ele realmente não importa! Deixe-me escrever mais

* Poetisa e jornalista

domingo, 28 de novembro de 2010




Leia nesta edição:

Editorial – Thomaz Perina vive na memória

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Diferentes compassos”

Coluna Direto do Arquivo – Ronaldo Bressane, capítulo de romance “Código de silêncio”

Coluna Clássicos – Truman Capote, conto “A pechincha”

Coluna Porta Aberta – Emanuel Medeiros Vieira, poema “Plenitude – Não perfeição”.

Coluna Porta Aberta – Vitor Orlando Gagliardo, conto “Hospício Casa do Senhor...”. ..

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Thomaz Perina vive na memória


O artista, qualquer que seja sua arte, desenvolve com anos de exercício a aptidão de explorar sutilmente o subconsciente à cata de emoções que lhe sirvam de matéria-prima para maravilhosas obras. Sons, imagens, odores, sensações agradáveis ditadas pelos cinco sentidos etc. são transformados por esses magos criadores (que valorizam e dão nobreza à vida humana) em melodias, telas, esculturas ou palavras que formam metáforas bem ajustadas e harmoniosas. Com o talento de que são dotados, nos transmitem suas emoções, às quais agregamos as nossas, ditadas por nossa própria experiência pessoal.

Os grandes artistas tendem a exercer uma influência decisiva na formação da nossa personalidade e caráter, permitindo-nos conhecer situações, comportamentos e circunstâncias os mais diversos e extremos, sem que precisemos passar por essas experiências pessoalmente. E quando algo análogo ao que tratam nos ocorre, contamos com caminhos e alternativas já conhecidos para sairmos de enrascadas ou para usufruirmos plenamente os episódios benignos e favoráveis que surgirem.

Os grandes artistas estabelecem, sobretudo, sua identidade, que refletem nas obras que criam. Generosos, nos ofertam a possibilidade de libertação do espaço, do tempo e até da morte que, se não a evitam (e não nos ensinam a evitar, pois é inevitável) sugerem como aceitá-la serenamente, como realidade impossível de ser mudada.

Um desses criadores de beleza e transcendência foi, sem dúvida, o campineiro Thomaz Perina, que nos deixou exatamente num 28 de novembro de 2009, prestes a completar 89 anos de idade, vividos plena e produtivamente. Legou-nos uma obra magnífica e consolidada. Para que os leitores tenham uma idéia, basta informar que, além de centenas e centenas de obras vendidas, que hoje constam das melhores galerias e mais sofisticadas e completas coleções particulares, seu acervo pessoal ainda é formado por cerca de duas mil peças!!! Trata-se, como se vê, de intensíssima produção que se notabilizou não apenas pela quantidade (imensa, como se vê) mas, sobretudo, pela qualidade.

Thomaz Perina foi uma figura queridíssima na cidade em que nasceu e sempre viveu. Conquistou simpatia e admiração por onde passou. Para que sua memória não morresse com ele, parentes, amigos, discípulos e admiradores criaram o instituto que ostenta o seu nome. Nada mais justo e meritório. E, justamente na véspera do aniversário da sua morte, a instituição inaugurou (ontem, sábado) sua sede própria, que irá centralizar exposições, palestras e outros tantos eventos alusivos ao notável artista plástico. Fui convidado para a inauguração, mas compromissos inadiáveis impediram-me de estar presente. Peço desculpas aos dirigentes do instituto. Ainda assim... estive lá, posto que em espírito.

Ademais, não me faltarão oportunidades para visitar a sede do Instituto Thomaz Perina, já que esta fica a apenas dois quarteirões da minha casa, na Rua Santo Antonio Claret, 229, no bairro do Castelo, aqui em Campinas. Na cerimônia de ontem, foram abertas duas exposições. A primeira leva o título de “Retratos de Perina, olhares sob a forma de arte”, que é uma seleção de obras de diversos autores e realizadas em técnicas variadas, para retratar a imagem e a personalidade do notável artista homenageado. A segunda intitula-se “O restauro do livro de Thomaz Perina”. É uma exposição sobre o processo de restauração do “Livrão”, ou seja, do livro que o artista elaborou de 1949 a 1999.

Mais dois eventos estavam programados, um para este domingo e outro para segunda-feira. O primeiro já ocorreu hoje, às 9h30, que foia missa rezada em memória de Thomaz Perina, na Catedral Metropolitana de Campinas. Para amanhã, está prevista palestra, na sede recém-inaugurada do instituto. A palestrante será a museóloga especialista em restauro de papéis e bens culturais e mestre em Ciência da Informação, professora Ingrid Beck. O tema a ser abordado é “O restauro do livro de Perina”.

Não cabe, aqui, reproduzir a biografia desse célebre artista plástico (quem é entendido nesse tipo de arte sabe, de sobejo, de quem se trata), mas nunca é demais dar uma ou outra referência aos que o desconhecem. A jornalista Maria Alice Cruz (que saudade, querida!), em matéria que publicou no “Jornal da Unicamp”, edição de 9 a 14 de novembro, intitulada “Os caminhos de Perina”, escreve em determinado trecho: “Na infância, Thomaz Perina gostava de desenhar na rua de sua casa, bem na frente da sua porta, na Vila Industrial, para ouvir os comentários elogiosos dos funcionários das fábricas que passavam por lá na volta do trabalho. Logo, o traço leve do artista migrou do chão de terra para o papel, mas sem deixar de lado a imagem da cidade de Campinas, especialmente a região da Vila Industrial, onde viveu todos os dias da sua vida”.

Thomaz Perina nunca freqüentou nenhuma escola de arte. Seu talento é inato, puro, brotado da alma. Pelo contrário, ele foi, na verdade, um grande mestre para toda uma geração de ótimos artistas plásticos campineiros. Ele próprio comentou o seguinte, a respeito, em uma de suas derradeiras entrevistas: “Por ser autodidata, não tenho formulações teóricas. Com elementos simples, com tratamentos simples, reduzindo a cor a um estado quase neutro, busco uma dimensão, um movimento por percepção, induzindo a relação da paisagem, nome que dou aos meus trabalhos, não só como indicação de um problema, mas também por caráter afetivo”.

Quem quiser conhecer mais a respeito de Thomaz Perina – e asseguro que vale a pena por se tratar, sem favor algum, de um dos melhores e mais apreciados artistas plásticos brasileiros de todos os tempos, com inúmeras exposições e prêmios, quer no Brasil, quer no Exterior, em seu currículo – não pode deixar de adquirir o super-hiper-mega-tera e todos os superlativos que vocês imaginarem bem produzido DVD intitulado “Eu quero o mínimno para falar – Trajetória de Thomaz Perina”, patrocinado pela “CPFL Cultura”, gravado antes que se manifestasse a doença que findou por matar o querido e saudoso artista. Basta entrar em contato ou com o Instituto Thomaz Perina ou com o Departamento de Cultura da Companhia Paulista de Força e Luz, em sua sede de Campinas. Eu tenho esse DVD, assisti-o muitas veze4s e considero-o uma das peças mais preciosas do meu (já considerável) acervo de arte.

Uma das coisas que eu mais quis ser na vida foi artista plástico, embora almejasse, também, ser músico (e médico, e piloto de avião e jogador de futebol). Não fui nem uma coisa e nem outra. Admiro demais tudo o que não consigo fazer. Respeito e valorizo quem faz (desde que sua obra seja realizada com conhecimento de causa, talento e, sobretudo, com competência). O fato de eu não praticar determinada arte não implica em que eu a desconheça ou não a aprecie. Muitíssimo pelo contrário. Fiz, por exemplo, curso de artes plásticas, embora não para ser artista de modalidade (para a qual, reitero, não tenho o mais remoto talento), mas para fundamentar comentários na qualidade de crítico de arte. Thomaz Perina encerrou a última entrevista que concedeu aos meios de comunicação (foi à EPTV, em janeiro de 2009), com este desabafo, em tom de queixa: “Eu só pinto nesta vida!!!”. E seria preciso fazer mais alguma coisa, dotado de tamanho talento e magia como foi?!!!! Ora, ora, ora. Claro que não!!!

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor no twitter: @bondaczuk



Diferentes compassos

* Por Pedro J. Bondaczuk

O esquecimento é algo traiçoeiro e nos faz passar, muitas vezes, por dissabores, vexames, chateações e constrangimentos. Esquecer a data de aniversário da esposa, por exemplo, ou a do casamento, provoca, não raro, imensas tempestades domésticas que, em alguns casos, resulta, até, em separação. A mulher, via de regra, considera isso imperdoável heresia. Há, é verdade, as que não ligam, ou fingem não ligar. Essa, contudo, convenhamos, não é a regra.
Outro esquecimento potencialmente danoso é o de algum compromisso marcado, profissional ou meramente social, não importa. No primeiro caso, pode resultar até num “bilhete azul”, ou seja, em sumária demissão. No segundo, a perda de amigos e de prestígio. Para evitar esse tipo de mancada, existem as agendas. Todavia, alguns desmemoriados esquecem-se, também (ou principalmente) delas, ou pelo menos não se lembram de consultá-las. Aí... não tem remédio!
O esquecimento, porém, nem sempre é fruto da falta de memória. Em boa parte dos casos, é provocado por afobação, correria, falta de organização etc.etc.etc. Há pessoas que vivem correndo, como se o mundo fosse acabar em cinco minutos. Nessa pressa toda, esquecem, por onde passam, documentos, óculos, chaves do carro, guarda-chuvas, enfim tudo o que carregam consigo.
Caso sintam a falta, nas proximidades de onde deixaram esses objetos, tudo bem. É só dar a meia volta e retornar ao local. Quando não... Passam por uma série de dissabores, perfeitamente evitáveis. E perdem exatamente o que mais pretendiam ganhar: tempo. Bem diz o povão que “devagar também é pressa”.
Alguns esquecimentos, no entanto, são muito mais constrangedores do que os que citei. Diz a lenda (e não tenho como comprovar sua veracidade), que o genial filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson, quando estava bem velhinho, passou a ter alguns lapsos de memória. Fazia tudo o que citei. Ou seja, esquecia compromissos, deixava coisas que estivesse portando nos lugares por onde passava etc.
Certa ocasião, um seu admirador (e bastava ler seus livros para admirá-lo de imediato), quis conferir se Emerson tinha ou não perdido sua privilegiada memória. Apresentou, ao filósofo, um magnífico texto que este havia escrito há alguns anos, extraído de um de seus tantos livros, e lhe pediu que opinasse a respeito.
Este leu o trecho solicitado com a maior atenção e concentração, pôs a mão no queixo, olhou para os lados, parecendo um tanto confuso e disse, constrangido, ao interlocutor: “Que peça maravilhosa! Que clareza de idéias! Quanta concisão e sabedoria! Eu gostaria de ter escrito esse texto!”. Emerson não identificou, portanto, uma das suas peças filosófico-literárias mais originais, marcantes e fundamentais (a que tratava dos ideais).
Não reputo isso, porém, como falta de memória. Fato idêntico já ocorreu comigo (e olhem que tenho fama de contar com uma capacidade de retenção de informações que rivaliza com o HD do mais potente dos computadores, de trocentos gigabytes de capacidade, sem nenhum exagero).
Ocorre que quem tem produção bastante farta, por mais que tente, nunca vai se lembrar de tudo o que escreveu. Pode identificar o estilo, claro, mas existe sempre a possibilidade (posto que remota) de que outra pessoa o tenha igual. Pode reconhecer o tema tratado, o que não quer dizer nada. Mas não pode jurar sobre a Bíblia que determinado texto é de sua autoria (embora, de fato, seja).
Essa questão do esquecimento, portanto, deve ser tratada com bastante cautela. Cada caso é um caso. O ensaísta norte-americano, Henry David Thoreau, escreveu, a respeito, em um dos seus tantos memoráveis ensaios: “Se um homem marcha com um passo diferente do dos seus companheiros, é porque ouve outro tambor”.
Não é porque você esqueceu a data do seu casamento (e pagou o preço por isso), ou não lembrou daquele encontro com os amigos na casa do Zé, que deve se desesperar e sair por aí comprando todos os produtos à base de fósforo que encontrar na farmácia do bairro. Muitos fazem isso e não melhoram, claro.
Seus esquecimentos não têm componentes físicos, mas, apenas, comportamentais. São desorganizados, afoitos, agitados e fazem tudo, tudo na correria. O remédio para estes é simples e barato: organização, planejamento e autodisciplina. Essas coisinhas fazem milagres para a memória, muito mais do que qualquer preparado à base de ginseng (embora estes sejam úteis e recomendáveis para a saúde em geral). É preciso que ouçam sempre o mesmo tambor da maioria, para que possam marchar no mesmíssimo compasso.


*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

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Presente de Natal


Dê às pessoas que ama e admira o melhor dos presentes neste Natal: presenteie com livros. Dessa forma, você será lembrado não apenas o ano todo, mas por toda a vida.


Com o que presentear:

Cronos e Narciso (crônicas, Editora Barauna, 110 páginas) – “Nessa época do eterno presente, em que tudo é reduzido à exaustão dos momentos, este livro de Pedro J. Bondaczuk reaviva a fome de transcendência! (Nei Duclós, escritor e jornalista). –
Preço: R$ 23,90.

Lance fatal (contos, Editora Barauna, 73 páginas) – Um lance, uma única e solitária jogada, pode decidir uma partida e até um campeonato, uma Copa do Mundo. Assim como no jogo – seja de futebol ou de qualquer outro esporte – uma determinada ação, dependendo das circunstâncias, decide uma vida. Esta é a mensagem implícita nos quatro instigantes contos de Pedro J. Bondaczuk neste pequeno grande livro. –
Preço: R$ 20,90.

Como comprar:

Pela internet
WWW.editorabarauna.com.br – Acessar o link “Como comprar” e seguir as instruções.
Em livraria – Em qualquer loja da rede de livrarias Cultura espalhadas pelo País.





Código de silêncio

* Por Sergio Vilas Boas

Suspeitei desde sempre que o velho português não seria capaz de abandonar o carro à beira de uma via expressa, atravessá-la driblando buzinações, pulando sobre guardrails, chegar a pé até o aeroporto sem passagem comprada, comprar uma para o próximo vôo, não dando a mínima para onde, e partir deixando objetos, números e uma secretária singular, quarenta anos mais jovem. Que imaginação!

Sinmar serviu Áureo Figo durante 25 anos, dia a dia. As primeiras rotinas dela tinham uma seqüência premeditada. Às oito da manhã abria a porta do apartamento, preparava o primeiro café, consultava os bilhetes de instruções presos com alfinetes no quadro de cortiça, dispunha a mesa (não podia se esquecer de passar antes na confeitaria e trazer “dois croissants crocantes”) e tomava providências domésticas diversas.

O ritual matinal se completava com a imagem de Áureo em pé na cozinha, enfiado em pantufas e pijamas, com a fisionomia aparvalhada de quem acordou de um pulo e ainda não sabe onde está exatamente. A esta hora, ele costumava queixar-se de algum equívoco impossível de Sinmar, tão dedicada e leal, ter cometido. Ela não podia ouvi-lo resmungar, claro, mas sentia resvalarem nas paredes as ondas sonoras do rouco bom dia de seu “homem mais-que-perfeito”.

O cotidiano dos dois podia ser resumido assim: “óculos enfiados em silêncios”. Os óculos permitiam a ela visualizar além dos gestos e das formas; e o silêncio era o que assinalava a presença de Áureo em seu apartamento imenso, mobiliado com bastante reserva. Os dois habitaram um universo no qual era conveniente desaparecer. Bastava permitirem-se o desencontro para que um jamais trombasse com o outro. Temperamentos fugidios. Juntos e sós, enfim.

Áureo era carrancudo, não fazia no passo adequado o que precisava ser feito. E foi dando amplos poderes para Sinmar. Delegou-lhe até tarefas íntimas, como manipular suas dentaduras uma vez por semana com um químico branqueador. Ela testemunhou a decadência do sorumbático cronista nascido em Lisboa, enquanto estudava, de soslaio, suas perfeições tortuosas e suas integridades imperfeitas.

Áureo detestava datas comemorativas, o que não significa que repudiasse as repetições radicalmente. (Encontrei em seus guardados extensas coleções de chaveiros, bonés, selos postais e calendários antigos de mulheres de calcinhas e seios evidentes). O maior defeito do portuga, ao que parece, era desviar-se do essencial como ninguém: levava comédias a sério, dramas na brincadeira, tomava os próprios desajeitos como incidentes triviais e os thrillers eletrizantes como sessões de ioga.

Era o tipo de autista que, por incrível que pareça, deplora o desperdício; perturbava Sinmar com uma ladainha sem fim sobre reutilização de sacolas plásticas de supermercados. Chegou a criar planilhas para facilitar os ajustes das despesas com as elevações culminantes de preços. Ela, por sua vez, dominou estatísticas complexas a fim de compensar suas limitações de sentidos. Em suma, reciclavam tudo, menos o excêntrico relacionamento que mantinham.
O falecido não era o misógino que Sinmar pintou. (Sabem, a gente não descobre que temos uma vida singular. Na verdade, a gente descobre que outras pessoas tiveram – ou têm – uma vida muito diferente da nossa. É o único modo de comprovarmos a unidade cósmica que representamos. Um arquiteto pode construir a própria casa, um escritor pode fazer a própria psicanálise, surdos podem falar, alunos ensinam, espertinhos dançam, criminosos toleram, amantes falham, perdedores vencem, egocêntricos comovem-se).

Mas só Sinmar seria capaz de imitar a rubrica aloprada de Áureo Figo. E assim ela o manteve vivo em forma de números, códigos e senhas por vinte meses. Respondeu correspondências, e-mails e telefonemas com uma linguagem que – impressionante! – era a dele. Lavou, passou, cozinhou e reportou-se aos interessados no sumiço do velho como se ele tivesse apenas resolvido dar uma esticada em suas férias eternas.

Enganamo-nos todos. Efigênio, gerente da padaria próxima, onde Sinmar comprava os tais croissants crocantes, fanático leitor de crônicas, tinha Áureo Figo como um dos maiores jornalistas em atividade. A coluna dominical “Áureos tempos”, no Diário de Notícias, era então um sucesso. “O estilo dele parecia inimitável”, disse-me Efigênio, estupefato, em uma de nossas esclarecedoras conversas sobre o que um sujeito pode se tornar depois de morto.

Submeti um conjunto considerável de textos de Áureo Figo a um especialista para que os analisasse minuciosamente, do ponto de vista do estilo e dos dados biográficos que havíamos remontado. Encontramos uma crônica que começava com a seguinte frase: “Ninguém perde dinheiro ou poder subestimando a inteligência das pessoas”. O português era magnífico colecionador de frases provocativas, embora esta tenha sido escrita por ninguém menos que... Sinmar.

Então lemos e relemos textos que acreditávamos ser de autoria do portuga. Com uma lupa mental levantamos seus blefes intelectuais, repetições, morais entranhadas, citações sem crédito, lembranças truncadas, saudosismos baratos e ficcionismos pseudoliterários. Escavamos pegadas de sua trajetória errática no mundo e as confrontamos com suas crônicas interrogantes. Confirmaram-se minhas suspeitas. (Acredito, sinceramente, sem pretensão, que em breve os investigadores policiais substituirão os cientistas, os psicólogos e os jornalistas na tarefa inglória de desvendar a natureza humana).

Único da equipe a dominar a linguagem dos sinais, visitei Sinmar na cela do 8º Distrito anteontem. Ela voltou a jurar que não consumiu com o corpo e com a mente de sua “paixão mais-que-secreta”. Para ela, as evidências que arquivamos não passam de artefatos poéticos. Incrível. Uma criatura meiga, terrivelmente silenciosa e míope condicionar seu futuro ao pesadelo diário de ficar imaginando os movimentos labiais de uma multidão furiosa disposta a linchá-la.

Ah, Sinmar, senti engulhos ao saber que você quis abocanhar sozinha a grana do portuga. Por que descumpriu nossos acordos tácitos? Por que violou nossos códigos de silêncio? Por que sacar da conta do velho toda a generosa confiança que depositei em você? E esse absurdo de querer alterar o testamento antes do combinado! Você era uma surda-muda acima de qualquer suspeita. Afobada, isto sim, foste muito afobada, e ferraste com teu futuro.

A primeira medida que tomamos: dar um jeito de fazer o corpo de Áureo Figo reaparecer nessa vastidão de lacunas que é o mundo. Agora, Sinmar, não temos outra alternativa senão indiciá-la por estelionato, falsidade ideológica e homicídio. Você pode continuar se achando imaculada. Não a culpo. Há um medonho contingente de intocáveis sobre a Terra, e outro de celebridades e subcelebridades cujas vidas, cá entre nós, jamais deviam ser invejadas. Ou o bolo inteiro é nosso ou não é um bolo.

* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.



A pechincha

* Por Truman Capote

Várias coisas no marido irritavam a sra. Chase. Por exemplo, a voz: ele sempre falava como se estivesse apostando num jogo de pôquer. Ouvir aquela fala arrastada e indiferente era exasperador, sobretudo agora, que, conversando com ele por telefone, ela própria falava de forma estridente de tanta empolgação. "Claro que eu já tenho um, sei disso. Mas você não entende, querido — é uma pechincha", explicou, enfatizando a última palavra, depois fazendo uma pausa para deixar a magia dela crescer. Só ouviu silêncio. "Puxa, você podia dizer alguma coisa. Não, não estou numa loja, estou em casa. Alice Severn vem para o almoço. É sobre o casaco de Alice que estou tentando lhe falar. Você deve se lembrar dela." A memória esburacada do marido era outra fonte de irritação, e, embora ela lhe lembrasse que lá em Greenwich Village eles tinham visto com freqüência Arthur e Alice Severn, chegaram até a receber o casal em sua casa, ele fingiu não conhecer aquele nome. "Não importa", ela suspirou. "Só vou dar uma olhada no casaco. Tenha um bom almoço, querido."
Mais tarde, ao se aborrecer com as ondas precisas de seu cabelo retocado, a sra. Chase admitiu que realmente não havia motivo para o marido se lembrar dos Severn com tanta clareza. Deu-se conta disso quando, com sucesso parcial, tentou evocar uma imagem de Alice Severn. Pois bem, quase conseguiu: uma mulher rosada e desengonçada, com menos de trinta anos, que sempre dirigia uma caminhonete, acompanhada por um setter irlandês e por duas bonitas crianças de cabelos louros avermelhados. Dizia-se que o marido dela bebia; ou seria o contrário? Além disso, eles eram considerados maus pagadores, ao menos a sra. Chase lembrou de certa vez ter ouvido falar de dívidas incríveis, e alguém, teria sido ela própria?, descrevera Alice Severn como simplesmente boêmia demais.
Antes de se mudarem para a cidade, os Chase mantiveram uma casa em Greenwich Village, que era um tédio para a sra. Chase, porque ela detestava os sinais de natureza dali e preferia o divertimento das vitrines de Nova York. Em Greenwich Village, em algum coquetel, na estação de trem, vez por outra encontravam os Severn, e não passou disso. Nem éramos amigos, ela concluiu, um tanto surpresa. Como costuma acontecer quando de súbito se ouve falar de uma pessoa do passado, e alguém conhecido num contexto diferente, ela fora induzida a uma sensação de intimidade. Mas, pensando melhor, parecia extraordinário que Alice Severn, a quem ela não via fazia mais de um ano, tivesse telefonado oferecendo à venda um casaco de vison.

A sra. Chase parou na cozinha a fim de pedir sopa e salada para o almoço: jamais lhe ocorria que nem todo mundo estava de dieta. Encheu um decantador de xerez e o levou consigo até a sala de estar. Uma sala verde-esmeralda, o mesmo gosto excessivamente juvenil das roupas dela. O vento fustigava as janelas, pois o apartamento ficava num andar alto, com uma vista de avião do centro de Manhattan. Colocou um disco do Linguaphone na vitrola e sentou-se em posição não relaxada, ouvindo a voz forçada pronunciar frases francesas. Em abril, os Chase planejavam comemorar o vigésimo aniversário de casamento com uma viagem a Paris; por essa razão, ela começara as aulas do Linguaphone, e, por essa razão também, cogitou no casaco de Alice Severn: seria mais prático, achou, viajar com um vison de segunda mão; mais tarde, poderia mandar transformá-lo numa estola.
Alice Severn chegou alguns minutos mais cedo, uma casualidade decerto, pois não era uma pessoa ansiosa, pelo menos a julgar por seus modos contidos e cautelosos. Usava sapatos comuns, um casaco de tweed que já vira dias melhores, e carregava uma caixa amarrada com um barbante puído.
"Fiquei encantada quando você telefonou esta manhã. Deus sabe, faz um tempão que não nos vemos, mas, claro, não vamos mais a Greenwich Village."
Embora sorrindo, sua visita permaneceu calada, e a sra. Chase, que assumira um tom efusivo, ficou um tanto sem graça. Quando as duas sentaram, os olhos dela apreenderam a mulher mais jovem, e ocorreu-lhe que, se tivessem se encontrado por acaso, poderia não tê-la reconhecido, não porque sua aparência tivesse se alterado tanto, mas porque a sra. Chase se deu conta de que nunca antes olhara atentamente para ela, o que parecia estranho, pois Alice Severn era alguém que chamava a atenção. Se fosse menos comprida, mais compacta, as pessoas poderiam ignorá-la, talvez reparando que era atraente. Mas, do jeito que era, com seus cabelos vermelhos, a impressão de distância nos olhos, o rosto sardento, outonal, e as mãos magras e fortes, havia nela certa peculiaridade difícil de ignorar
"Xerez?"
Alice Severn assentiu com a cabeça, que, equilibrada precariamente sobre o pescoço fino, parecia um crisântemo pesado demais para seu talo.
"Cream-cracker?", ofereceu a sra. Chase, observando que alguém tão esguio e alongado devia comer feito um cavalo. Sua frugalidade de sopa e salada despertou-lhe um súbito receio, e ela contou a seguinte mentira: "Não sei o que Martha está preparando para o almoço. Sabe como é difícil, em cima da hora. Mas conte, querida, o que está acontecendo em Greenwich Village?"
"Em Greenwich Village?", ela disse, entrecerrando as pálpebras, como se uma luz inesperada refulgisse na sala. "Não tenho a menor idéia. Não moramos mais lá faz algum tempo, seis meses ou mais."
"Oh?", fez a sra. Chase. "Veja como estou desatualizada. Mas onde você está morando, querida?"
Alice Severn ergueu uma das mãos ossudas e desajeitadas e apontou para a janela. "Lá fora", respondeu, de forma estranha. Sua voz era clara, mas tinha um tom de esgotamento, como se ela estivesse pegando um resfriado. "Quer dizer, no centro. Não gostamos muito, sobretudo Fred."
Com a mínima inflexão, a sra. Chase perguntou: "Fred?", pois lembrava perfeitamente que Arthur era o nome do marido da visita.
"Sim, Fred, meu cachorro, um setter irlandês, você deve tê-lo visto. Está acostumado com espaço, e o apartamento é tão pequeno, só um quarto."

Dias difíceis deviam ter sobrevindo para que todos os Severn estivessem morando num único quarto. Por mais curiosa que fosse, a sra. Chase se controlou e não indagou a respeito do assunto. Provou seu xerez e disse: "Claro que me lembro do seu cachorro; e das crianças: todas as três cabecinhas vermelhas espiando pela janela da caminhonete".
"As crianças não têm cabelos vermelhos. São louras, como Arthur."
A correção, com tão pouco senso de humor, provocou na sra. Chase uma risadinha intrigada. "E Arthur, como vai?", perguntou ela, preparando-se para se levantar e conduzir a visita até o almoço. Mas a resposta levou-a a sentar-se de novo. Sem mudança alguma na expressão placidamente desornada de Alice Severn, consistiu apenas em: "Mais gordo".
"Mais gordo", ela repetiu após um momento. "A última vez que o vi, acho que só uma semana atrás, estava atravessando uma rua feito um pato. Se ele tivesse me visto, eu teria de rir: ele sempre foi tão preocupado com a aparência."
A sra. Chase pôs as mãos na cintura. ''Você e Arthur. Separados? É simplesmente incrível."
"Nós não estamos separados." Ela esfregou as mãos no ar como que para remover teias de aranha. "Eu o conheço desde criança, desde que nós dois éramos crianças: você acha", disse tranqüilamente, "que poderíamos algum dia estar separados um do outro, sra. Chase?"
O uso exato de seu nome pareceu afastar a sra. Chase; por um momento, ela se sentiu isolada, e, ao caminharem juntas até a sala de jantar, imaginou uma hostilidade circulando entre elas. Possivelmente foi a visão das mãos desajeitadas de Alice Severn tentando abrir um guardanapo que a persuadiu de que aquilo não era verdade. Exceto por algumas palavras corteses, elas comeram em silêncio, e ela começava a temer que não haveria nenhuma história.
Enfim Alice Severn disse abruptamente: "Na verdade, nos divorciamos em agosto passado".
A sra. Chase esperou; depois, entre a descida e a subida de sua colher de sopa, disse: "Que horrível. Por causa da bebedeira dele?".
"Arthur nunca bebeu", ela respondeu com um sorriso agradável mas espantado. "Ou melhor, nós dois bebíamos. Por prazer, não por vício. Era gostoso no verão. Costumávamos descer até o riacho, colher hortelã e preparar um coquetel de uísque com hortelã em enormes potes de frutas. Às vezes, nas noites quentes em que não conseguíamos dormir, enchíamos de cerveja gelada as garrafas térmicas e acordávamos as crianças, depois íamos de carro até a praia; é divertido beber cerveja e nadar e dormir na areia. Bons tempos; lembro que uma vez ficamos lá até o sol raiar. Não", disse, alguma idéia séria retesando sua face. "eu vou lhe contar. Sou quase uma cabeça mais alta que Arthur, e acho que isso o preocupava. Quando éramos crianças, ele sempre achou que me ultrapassaria, mas isso nunca aconteceu. Ele detestava dançar comigo, e olha que ele adora dançar. E gostava de um monte de gente ao redor, gente baixinha de voz alta. Não sou assim, preferia que ficássemos só os dois. Nesse aspecto eu não era agradável para ele. Pois bem, lembra de ]eannie Bjorkman? Aquela de rosto redondo e cabelo encaracolado, mais ou menos da sua altura".
"Lembro, sim", respondeu a sra. Chase. "Esteve no comitê da Cruz Vermelha. Horrorosa."
"Não", replicou Alice Severn, refletindo. "Jeannie não é horrorosa. Éramos ótimas amigas. O estranho é que Arthur costumava dizer que a odiava, mas tenho a impressão de que sempre foi louco por ela, com certeza agora é, e as crianças também. Eu queria que as crianças não gostassem dela, embora devesse estar feliz por gostarem, já que têm de viver com ela."
"Não acredito: seu marido casado com aquela horrorosa da Bjorkmanl"
"Desde agosto."
A sra. Chase, fazendo primeiro uma pausa para sugerir que fossem tomar o café na sala de estar, disse: "É deprimente você estar vivendo sozinha em Nova York. Pelo menos devia ter ficado com os filhos".
"Arthur quis ficar com eles", respondeu Alice Severn simplesmente. "Mas não estou sozinha. Fred é um de meus melhores amigos."
A sra. Chase gesticulou, impaciente: não gostava de fantasias. "Um cachorro. Loucura. A verdade é que você é uma tola: se algum homem tentasse me passar para trás, eu cortava os pés dele em pedacinhos. Vai ver que você nem exigiu", hesitou, "uma pensão."
"Você não entende, Arthur não tem dinheiro algum", disse Alice Severn com o desânimo de uma criança que descobriu que os adultos, afinal, não são muito lógicos. "Teve até de vender o carro, e vai e volta a pé da estação. Mas, sabe, acho que está feliz."

"O que você precisa é de um bom beliscão", disse a sra. Chase como se estivesse pronta para realizar o serviço.
"É Fred que me preocupa. Está acostumado com espaço, e, com uma única pessoa, não sobram muitos ossos. Você acha que, quando terminar meu curso, consigo arrumar um emprego na Califórnia? Estou estudando administração, mas não sou muito rápida, sobretudo na máquina de escrever, meus dedos parecem detestar aquilo. Deve ser como tocar piano, você tem de aprender quando é jovem." Ela olhou curiosa para suas mãos, suspirando: "Tenho aula às três; importa-se se lhe mostrar o casaco agora?".
A festividade de coisas saindo de uma caixa em geral alegrava a sra. Chase, mas, quando ela viu a tampa ser retirada, um mal-estar melancólico dominou-a.
"Pertenceu à minha mãe."
Que deve ter usado essa tralha durante sessenta anos, pensou a sra. Chase, encarando um espelho. O casaco dava nos seus tornozelos. Ela passou a mão pela pelagem opaca, quase sem pêlos: estava mofada, fedida, como se tivesse permanecido num sótão à beira-mar. Fazia frio dentro do casaco, ela estremeceu, ao mesmo tempo um rubor aqueceu-lhe o rosto, pois foi aí que notou que Alice Severn olhava sobre seus ombros e na expressão dela havia uma expectativa tensa, humilhante, antes inexistente. Quanto à solidariedade, a sra. Chase praticava a parcimônia: antes de oferecê-la, tomava a precaução de amarrar um barbante nela para, em caso de necessidade, pegá-la de volta. Quando ela fitou Alice Severn, porém, foi como se o barbante tivesse sido cortado, e dessa vez ela se confrontou com as obrigações da solidariedade. Hesitou mesmo assim, procurando uma escapatória, mas seus olhos colidiram com aqueles outros olhos, e ela percebeu que não havia nenhuma. A lembrança de uma palavra das aulas do Linguaphone facilitaram uma pergunta: "Combien?".
"Isso não vale nada, não é?" Havia confusão na pergunta, não franqueza.
"Não, não vale", ela respondeu, cansada, quase irritada. "Mas pode ter alguma utilidade." Não repetiu a pergunta; estava claro que estipular o preço fazia parte de sua obrigação.
Ainda arrastando o incômodo casaco, dirigiu-se a um canto da sala onde havia uma escrivaninha e, com movimentos nervosos e ressentidos, preencheu um cheque da sua conta pessoal: preferia que o marido não soubesse. Mais que a maioria, a sra. Chase detestava o sentimento de perda; uma chave fora do lugar, uma moeda caída, despertavam sua consciência do roubo e das trapaças da vida. Sensação semelhante acompanhou-a quando entregou o cheque a Alice Severn. Esta, dobrando-o sem olhar para ele, enfiou-o no bolso do traje. Era um cheque de cinqüenta dólares,
"Querida", disse a sra. Chase, carrancuda com a falsa preocupação, "você tem de telefonar e contar como andam as coisas. Não deve se sentir solitária."
Alice Severn nem agradeceu, e na porta não disse "tchau". Em vez disso, segurou uma das mãos da sra. Chase e deu um tapinha nela, como se estivesse delicadamente recompensando um animal, um cachorro. Fechando a porta, a sra. Chase fitou sua mão, aproximou-a dos lábios. A sensação da outra mão ainda perdurava, e ela continuou ali, esperando que passasse: logo sua mão ficou bem fria de novo.


(1950)


Nota: Texto extraído do livro "20 contos de Truman Capote", Ed. Cia. das Letras - São Paulo, 2006, organização de Reynolds Price, tradução de Ivo Korytowski.

* Truman Streckfus Persons Capote nasceu no ano de 1924 na cidade de Nova Orleans, Luisiana. Acabou indo morar em Nova York na companhia de sua mãe e seu padrasto. Foi dele, cubano, que Truman adotou o sobrenome. Suas primeiras histórias foram publicadas na Harper's Bazaar, quando tinha vinte e poucos anos. Muito bem recebidas, com o romance "Other voices, other rooms" (1948) e a novela "The grass harp" (1951), consolidaram sua fama precoce. Com uma ampla gama de escritores e artistas, figuras da alta sociedade e uma constante presença na mídia, passou a dedicar suas forças ao palco — adaptou The grass harp e escreveu o musical House of flowers — ao jornalismo e, também ao cinema. O assassinato de uma família no Kansas fez com que Capote se interessasse pelo assunto e, após, muita investigação, escreveu o famoso "A sangue frio" (1966), seu livro mais aclamado e de maior sucesso. Faleceu no