domingo, 28 de fevereiro de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Consciência coletiva

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Reencontro diário”.

Coluna Clássicos – Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), conto “Dois amigos e um chato”..

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, artigo “Ops, desculpa, foi engano!”

Coluna Porta Aberta – Núbia Araújo Nonato do Amaral, conto “Conversa de passarinho”.

Coluna Porta Aberta – Cacá Mendes, crônica “Tédio, você vê na tevê”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Consciência coletiva

Caríssimos leitores, boa tarde.
O papel do escritor na sociedade é pouco compreendido, inclusive pela imensa maioria (se não a totalidade) dos que se dedicam a essa nobre tarefa. Dado seu incomparável talento para descrever idéias, fatos, sensações e emoções, quando não gerá-los, ele é uma espécie de consciência coletiva do bicho homem.
É, pois, como aquele personagem do italiano Carlo Colodi, o Grilo Falante. É isso mesmo. A comparação procede. O tal bichinho, na famosa história infantil, fazia as vezes de consciência do boneco de madeira Pinocchio, que tinha como grande aspiração se tornar humano (coitado, se soubesse!).
Por isso que o escritor, ao mesmo tempo em que fascina, incomoda os poderosos de plantão. Através dos seus livros, detecta e revela as esperanças, sonhos e ilusões da humanidade. Mas também traz a lume seus medos, perigos, dores (físicas e emocionais) etc.
Ninguém, pois, é mais habilitado a ser o arauto das reivindicações sociais dos povos. Todavia, num aspecto, nós, escritores estamos falhando, e feio: no papel de conclamar as populações a pressionarem os líderes políticos, as pessoas que detêm poder de mando, para salvarem o Planeta. Mesmo que os “idiotas da objetividade” e os profundamente alienados não percebam, ele está agonizando.
Em um espaço de apenas 46 dias, o mundo presenciou, horrorizado, dois terremotos de grandes proporções e muita intensidade, e em áreas diferentes, banhadas pelos dois principais oceanos da Terra. Em 12 de janeiro de 2010, o Haiti, país mais pobre das Américas, viu sua miséria se multiplicar exponencialmente, além de lamentar a perda de 300 mil vidas. Em 27 de fevereiro do mesmo ano, foi a vez do Chile conhecer o horror da rebelião da natureza.
Os especialistas na matéria asseguram que os dois eventos não têm relação entre si. Que são catástrofes isoladas, bla-bla-blá, bla-bla-blá. Mas será que não têm? Eles têm a mínima condição de provar isso? A probabilidade é de quase 100% deles estarem errados.
Raciocinemos. É nítido, notório e, sobretudo sensível, que o Planeta está esquentando. A cada dia que passa Os que acham que não (sempre há algum idiota que aposta contra as evidências), argumentam com o rigoroso inverno do Hemisfério Setentrional. Todavia, o Pólo Norte vem, literalmente, derretendo. Já está reduzido a uns 40% da quantidade de gelo original.
A situação do Pólo Sul, não é nada melhor. Dia desses, uma enorme geleira, com as dimensões do nosso Distrito Federal (Brasília e suas cidades-satélites), rompeu-se e se transformou num monstruosamente grande iceberg, que ameaça, inclusive, a navegação.
Com o passar dos dias, essa geleira monumental irá se derreter. E para onde irá todo esse volume de água? Para o mesmo lugar que está indo o resultante do derretimento do Pólo Norte. Ou seja, para os oceanos.
Todos sabem que a água tem peso. Esse volume sobressalente, quer no Atlântico, quer no Pacífico, certamente está pressionando as respectivas placas tectônicas sobre as quais ambos estão assentados. E estas, com certeza, fazem, por sua vez, pressão sobre as placas dos continentes. Uma hora, essa tensão acaba por ser liberada. Como? Através de terremotos, cuja intensidade, momento e lugar são absolutamente impossíveis de se prever.
Esse peso sobressalente de água tende, também, a despertar uma quantidade imprevisível de vulcões adormecidos, principalmente no chamado Cinturão de Fogo do Pacífico, que conta com 456 dessas “chaminés” das fornalhas infernais do centro da Terra, 10% dos quais em plena atividade. Tudo é questão de causa e conseqüência.
É isso mesmo o que está acontecendo? Não sei! Sou jornalista e escritor, e não geólogo, sismólogo ou vulcanólogo. Porém, como dizem os italianos, “se non é vero, é bene trovato”. As evidências da proximidade de uma catástrofe sem precedentes (pelo menos no período de existência do homem), são visíveis, palpáveis, sensíveis, diria até que “cheiráveis”. E o que fazem os detentores do poder, os que detêm o comando dos povos, para evitar a hecatombe e começar a cuidar convenientemente do Planeta? Nada! Absolutamente nada!
Recentemente, na conferência mundial sobre o clima, em Copenhague, não foi adotada uma única, reles e mísera providência prática para deter a perniciosa poluição que vem aquecendo a Terra. Esses políticos, que teoricamente contam com procurações tácitas de cada um de nós para agirem em nosso nome (no caso, os votos que obtiveram nas urnas), agem como se tudo estivesse às mil maravilhas. E, reitero, em nosso nome. Diz um axioma político, alçado à condição de dogma, que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Na prática, isso funciona?
Esse princípio precisa ser devidamente testado. Nunca foi de fato. É indispensável que os povos do mundo todo se mobilizem, e já, com a máxima urgência, no sentido de cobrarem providências urgentíssimas das autoridades. Vocês vêem alguém fazendo isso? Eu não vejo.
Os 6,7 bilhões de habitantes do Planeta, em sua imensa maioria (as exceções são pouquíssimas), não têm a menor noção dos riscos que correm. Quem poderia (e deveria) alertá-los? Os tais dos “Grilos Falantes”. Ou seja, nós, os comunicadores (jornalistas e escritores) que contamos com o talento de comunicar qualquer coisa, boa ou horrenda. E estamos fazendo isso? Não, não e não!
Está mais do que provado (e isso até os mais medíocres antropólogos amadores sabem), que catástrofes naturais (ou provocadas pelo homem), como as que se abateram sobre o Haiti e sobre o Chile, significam retrocessos em termos de civilização.
Dependendo do povo atingido e da intensidade do desastre, este pode retroagir, inclusive, à barbárie. Foi, inclusive, o que começou a ocorrer com os haitianos, processo contido pelos militares que lá estão com a tarefa de manter um mínimo de ordem. Houve uma sucessão de saques e brigas ferozes por comida e água, com os mais fortes subjugando os mais fracos, sem nenhum pudor.
Mesmo no Chile, país melhor preparado para enfrentar esse tipo de tragédia, haverá retrocesso civilizatório, principalmente social. Afinal, cerca de um terço das pessoas (mais de dois milhões) perderam suas casas e outros tantos bens que tinham. Muitos terão que recomeçar as vidas do zero. E por maior que seja a ajuda interna e, principalmente, externa, vários, e vários, e vários, que ostentavam condição social estável (ou até invejável), de classe média ou até abastada, retroagirão à pobreza. É inevitável.
Nós, escritores, temos a obrigação de “sacudir” as populações adormecidas, ou entorpecidas, ou anestesiadas, para que acordem, e se não quisermos fazer isso por nobreza, façamo-lo por egoísmo.
Afinal, de que valerão nosso talento, nossa cultura, nossa facilidade de comunicação, enfim, nossa escrita, se a humanidade retroagir à barbárie? Se isso acontecer, não haverá indústria de tipo algum, muito menos a gráfica.
Não haverá editoras para publicar nossos livros. E pior, não haverá leitores, pois cada qual estará empenhado em conquistar sua porção diária de comida (que será escassíssima, quase nenhuma) e de água potável (muito mais escassa ainda) para sobreviver.
Ler, nessas circunstâncias, será, certamente, a última coisa que as pessoas irão pensar em fazer. E escrever, convenhamos, não será nenhuma prioridade para nós. Sem leitores... a existência da nossa função será rigorosamente supérflua.

Boa leitura.

O Editor.




Reencontro diário

* Por Pedro J. Bondaczuk

A auto-aceitação é um dos fatores fundamentais para que nos sintamos felizes (embora, claro, não seja o único). Devemos nos aceitar como somos e, para que isso se torne possível, temos que levar uma vida simples e ordenada, sem excessivas ambições e nem culpas, conhecendo os nossos limites e somente nutrindo sonhos e desejos que sejam factíveis e estejam ao nosso alcance. Difícil? Sem dúvida.

Temos duas tendências antagônicas, ambas fontes de profunda insatisfação pessoal. Uma é a da supervalorização das nossas supostas virtudes e talentos. Achamos que somos mais, muito mais do que aparentamos ou do que os outros achem e que não somos devidamente valorizados pelas pessoas do nosso convívio. Convivemos, por isso, com permanente sensação de sermos injustiçados (quando, na maioria das vezes, não somos).

A segunda tendência – no meu entender ainda pior do que a primeira – é a da subvalorização. É o que os psicólogos chamam de “complexo de inferioridade”. Julgamo-nos inferiores a todos e sofremos muito por isso. Tornamo-nos tímidos, retraídos, arredios, vacilantes e profundamente antissociais.

Damos excessiva importância às opiniões alheias ao nosso respeito e não nos aceitamos como somos, o que, claro, é um grande erro. Por fim, acabamos por adquirir o vício da infelicidade e sequer atinamos com a mais remota possibilidade de mudança de comportamento para melhor.

Outro fator, diretamente ligado à auto-aceitação, é a convivência com culpas (reais ou imaginárias, não importa). Quem age dessa forma, vive em perpétuo sobressalto, temendo punições e/ou retaliações. O melhor exemplo, deste tipo de pessoa, é o estudante Rodion Romanovitch Raskolnikov, personagem criado pelo escritor russo Fedor Dostoievsky, em seu clássico “Crime e Castigo”.

O referido indivíduo, apesar de ser professor de línguas, vivia em estado de profunda miséria. Achava-se, claro, injustiçado, ainda mais quando observava uma velha agiota, cuja obsessão era a de juntar valores (dinheiro, jóias etc.), sem usufruir dos benefícios de sua riqueza. Ponderou e concluiu que esta era uma pessoa inútil e até nociva à sociedade e que ninguém se importaria se a matasse e subtraísse seus bens.

Da cogitação, à efetiva ação, foi um passo. Em determinado dia, Raskolnikov assassina a velha agiota a machadas. Contudo, as circunstâncias forçaram-no a não se limitar a esse crime. Teve, também, que matar Lisavieta, irmã da anciã, que havia visto o cadáver no chão e, certamente, o denunciaria.

A partir de então, o estudante vive no inferno. Sequer aproveita o resultado do roubo que praticara, no caso algumas jóias de relativo valor. Arrependido do que havia feito, mesmo sabendo que não poderia voltar atrás no crime, enterra, sob uma pedra, o que havia roubado. Mas a consciência de Raskolnikov não lhe dá tréguas. Com todas as pessoas que cruzava, não importa se estranhas ou conhecidas, tinha a sensação de que elas sabiam o que havia feito. E o olhar – por mais inocente e casual que fosse – que estas lhe dirigissem, era, em sua mente atormentada, enfáticos libelo de acusação.

Mesmo depois que a polícia prendeu um suposto culpado, que inexplicavelmente havia confessado o crime que não tinha cometido, o remorso e a sensação de que todos sabiam que era o verdadeiro assassino persistia na mente do estudante. A consciência não lhe dava tréguas. Até que um dia, estimulado por Sônia, a mulher que amava, confessou às autoridades seu delito.

São muitas as vezes em que convivemos com essa mesma sensação de culpa, devendo ou não. E sofremos inutilmente, quando a atitude mais sábia seria a de nos livrarmos desse inútil peso na consciência. Como? Muito simples. Se realmente prejudicamos alguém, o caminho mais sábio, sem dúvida, é o da reparação da falta. Caso não seja possível repará-la, o melhor que se faz é ter a humildade de pedir perdão ao ofendido.

O irônico é que os verdadeiros culpados, aqueles que de fato se esmeram em fazer o que não devem, nunca se julgam maus. Têm a consciência embotada. Quando eu era estudante de Direito, fui, um dia, com meu professor, visitar uma cadeia pública da minha cidade, para conversar com os presos. Nas entrevistas (foram umas dez), nenhum, absolutamente nenhum deles admitiu o delito de que era acusado. Eram todos uns “anjinhos”, totalmente inocentes, injustiçados pela família e pela sociedade.

Um deles era acusado de haver chacinado, de forma bárbara e brutal, toda uma família, apenas para roubar alguns míseros trocados, crime que causara profunda revolta popular na época. Mas, a despeito das provas contundentes contra ele, teimava em se declarar (e jurava por todas as juras) inocente. Insistia em afirmar que fora preso por engano. Não fora, é claro. Um sujeito assim jamais terá dor de consciência. Não mais a possui.

O escritor francês, Paul Valéry, constatou, em um de seus textos, a propósito da relação que há entre auto-aceitação e felicidade: “O homem feliz é aquele que ao despertar se reencontra com prazer e se reconhece como aquele que gosta de ser”. Como se vê, é uma receita simples, simplérrima, ao alcance de todos, que não implica em nenhuma complexidade e independe da ação alheia. Que tal experimentarmos agir assim?

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com




Dois amigos e um chato

* Por Stanislaw Ponte Preta

Os dois estavam tomando um cafezinho no boteco da esquina, antes de partirem para as suas respectivas repartições. Um tinha um nome fácil: era o Zé. O outro tinha um nome desses de dar cãibra em língua de crioulo: era o Flaudemíglio.

Acabado o café o Zé perguntou: — Vais pra cidade?
— Vou — respondeu Flaudemíglio, acrescentando: — Mas vou pegar o 434, que vai pela Lapa. Eu tenho que entregar uma urinazinha de minha mulher no laboratório da Associação, que é ali na Mem de Sá.

Zé acendeu um cigarro e olhou para a fila do 474, que ia direto pro centro e, por isso, era a fila mais piruada. Tinha gente às pampas.
— Vens comigo? — quis saber Flaudemíglio.
— Não — disse o Zé: — Eu estou atrasado e vou pegar um direto ao centro.
— Então tá — concordou Flaudemíglio, olhando para a outra esquina e, vendo que já vinha o que passava pela Lapa: — Chi! Lá vem o meu... — e correu para o ponto de parada, fazendo sinal para o ônibus parar.

Foi aí que, segurando o guarda-chuva, um embrulho e mais o vidrinho da urinazinha (como ele carinhosamente chamava o material recolhido pela mulher na véspera para o exame de laboratório...), foi aí que o Flaudemíglio se atrapalhou e deixou cair algo no chão.

O motorista, com aquela delicadeza peculiar à classe, já ia botando o carro em movimento, não dando tempo ao passageiro para apanhar o que caíra. Flaudemíglio só teve tempo de berrar para o amigo: — Zé, caiu minha carteira de identidade. Apanha e me entrega logo mais.

O 434 seguiu e Zé atravessou a rua, para apanhar a carteira do outro. Já estava chegando perto quando um cidadão magrela e antipático e, ainda por cima, com sorriso de Juraci Magalhães, apanhou a carteira de Flaudemíglio.
— Por favor, cavalheiro, esta carteira é de um amigo meu — disse o Zé estendendo a mão.

Mas o que tinha sorriso de Juraci não entregou. Examinou a carteira e depois perguntou: — Como é o nome do seu amigo?
— Flaudemíglio — respondeu o Zé.
— Flaudemíglio de quê? — insistiu o chato.

Mas o Zé deu-lhe um safanão e tomou-lhe a carteira, dizendo: — Ora, seu cretino, quem acerta Flaudemíglio não precisa acertar mais nada!

* Stanislaw Ponte Preta é o pseudônimo do jornalista, escritor, humorista e produtor Sérgio Porto








Ops, desculpa, foi engano!

* Por Elaine Tavares

Estas notícias, todas as noites, sempre me enchem de uma absurda perplexidade. Diz o repórter, em tom monocórdio: “Mais 45 mortes em Bagdá”. E isso acontece todos os dias, 45, 34, 27, 50, os números variam por aí. Já passaram cinco anos da ocupação estadunidense no Iraque. E isso é notícia noite após noite. Banalizou. Morrer, no Iraque, é coisa normal. Ninguém sequer pestaneja, segue comendo, ou varrendo, ou fazendo o que seja, enquanto ouve a terrível notícia. É que o Iraque está tão longe, quase ninguém tem algum parente lá, ou um conhecido. A dor dos iraquianos toca raras pessoas. Eu, por exemplo, me assombro a cada noite.

Outro dia, o locutor informou com voz impassível: 27 civis foram mortos por engano no Afeganistão. Putz! E ele nem pestaneja, e logo segue outra notícia, de preferência alegre, para que as pessoas não fiquem estarrecidas diante do fato de que, num outro país distante, também ocupado desde há nove longos anos, morrem civis todos os dias, vítima da violência da ocupação. E só volta e meia algum destes ataques a civis sai na imprensa. Como esse da semana passada. É que o Afeganistão “saiu da pauta”. Há outras desgraças a perscrutar.

Pois a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que é nome pomposo do braço armado estadunidense naquela região, divulgou que matou por engano os civis pensando que eram terroristas. Pois assim é a guerra “cirúrgica” promovida pelo exército mais poderoso da terra. Recrutam garotos sem oportunidades nos Estados Unidos, transformam os mesmos em máquinas de guerra, mas tiram deles a visão do horror. No geral, estão lá em cima, nos aviões, apontando para pontos escuros na terra, como se fosse um videogame. A guerra sem sangue, a “limpeza” clínica, cirúrgica, bem demarcada pelos radares.

Só que os radares são observados por humanos que erram, e tampouco podem dizer se os pontinhos no chão são terroristas ou gente simples, que tenta viver a vida naquela região conflagrada e ocupada há quase uma década. Bueno, para os estadunidenses isso parece coisa irrelevante, visto que basta ser afegão ou iraquiano para ser terrorista, é como um sinônimo. Então, vez ou outra, alguns soldados de outras bandeiras, ou mesmo algum estadunidense com consciência, percebem que essa versão de “terroristas” que eles têm cravada nas retinas não é tão verdadeira assim. Então se dão conta de que aqueles pontos lá embaixo são mulheres lavando, crianças brincando, velhos tomando sol, homens trabalhando. Então, ficam estupefatos. “São civis”! Aí uma boa alma admite o erro e pede desculpas.

“Foi um engano, desculpa”. Mas essas desculpas são para quem? Aos mortos? Estes já estão em outro plano, bem melhor, nos braços de Alá. Aos vivos? E para que? Para que os desculpem por antecipação, caso o radar ou os olhos falhem outra vez? O general McCrystal ainda tem a cara de pau de dizer que estão lá para proteger os afegãos. Proteger do quê, cara pálida?

Os Estados Unidos ocuparam o Afeganistão para, segundo seu governo, levar a democracia e a liberdade. Mas, quem, além da mídia cortesã, acredita nisso ainda? Lá estão para garantir as plantações de ópio, para manter bases militares capazes de incendiar a região a qualquer momento, para garantir seu poder de polícia do mundo. Pouco importa se para isso tenha que matar o povo inocente. A nós, aqui, cabe o assombro, a perplexidade diante do cinismo: “ops, desculpa, foi engano”. E assim segue a vida, na apatia de ver o ladrão entrando na casa do vizinho. Fecha-se a janela com vagar, para não ser visto. Até que um dia, o ladrão entra no nosso quintal

* Jornalista


Conversa de passarinhos

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral


No interior da mata, do alto de uma frondosa árvore, dois pássaros confabulam. O belo Galo-da-Serra com sua plumagem alaranjada e tão vistosa pensa em dar um trato na sua aparência, afinal está quase na época do acasalamento. O amigo Tuiuiú o acalma elogiando a sua beleza, com todo o respeito, é claro.

Os dias se passam e o festival de exibicionismo começa. O belo sacode as asas daqui, empina o peito dali, arrisca uns gorjeios e nada! São tantos os pretendentes que as fêmeas o ignoraram. Nem a sem graça da Seriema o olhou.

O Galo-da-Serra desceu e foi até a beira do lago para ver se havia algo de errado com a sua aparência. Espia daqui, confere dali e, num suspiro conformado, se achando o mais belo dos belos, certifica-se de que não há nada de errado com ele.

No dia seguinte, novo desfile, mas dessa vez ele fica lá de cima espreitando uma possível parceira até que a viu. Ela era diferente, as formas mais arredondadas, olhinhos espertos, um pitéu! Parecia meio perdida, se assustava com as investidas e aquele seu jeitinho de inocente ouriçava os machos de plantão.

Afinal,...de onde saiu aquela fêmea tão incomum? E aquele seu gingado que desarrumava? As fêmeas, preocupadas com a concorrente, começaram a dar mole para qualquer um. Galo-da-Serra foi logo tratando de dispensar a Seriema, que saiu ventando.

O amigo Tuiuiú, sabendo do alvoroço, voou até lá e se acercou das novidades. Vendo a empolgação do amigo, pediu que lhe mostrasse a tal beldade. O belo apontou na direção da sua musa entre suspiros.

Tuiuiú olhou, olhou e depois de muito ponderar, bateu nas costas do amigo desencorajando-o: “Sai dessa amigo, ela é uma galinha”.

* Poetisa e colaboradora do Literário


Tédio, você vê na tevê

* Por Cacá Mendes

O carnaval pela TV é mesmo um tédio, parece mais um filme mudo (literalmente) sem roteiro, sem dramaturgia, nem nada, se utilizando apenas das mais avançadas, das mais avançadas das tecnologias para desfiles de figurinos e cenários mirabolantes... Bom, mas isso gera emprego e renda o que já é um grande negócio, imagino. E cada vez mais conquistamos o mundo com nossa competência para o show business, ainda perdendo somente para os americanos, na Broadway ou em Hollywood.

Pena que toda quarta-feira de cinzas é a mesmíssima coisa, o que sobra da festa da carne aos pobres mortais, cá nesse lado do mundo, é tão somente as mesmas borras da farra, a mesma realidade modorrenta e pobre; tão devastada, culturalmente, quando antes.
Justiça seja feita aos milhares de blocos carnavalescos, organizados pelas pessoas do povo, que se espalham pelo país afora, e fazem um carnaval que você não vê na tevê. Ainda bem.

* Jornalista – blog: www.cronicaseg.blogspot.com

sábado, 27 de fevereiro de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – O artista e seu tempo

Coluna Direto do Arquivo – Leandro Barbieri, crônica “Executivo de fachada”.

Coluna Clássicos – Richard Rorty, ensaio “O futuro da utopia”.

Coluna Porta Aberta – Luiz Carlos Monteiro, crônica “O aprendizado de Nélida”

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica, “Sobejos de felicidade”.

Coluna Porta Aberta – Raul Fitipaldi, crônica “Turista do medo”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


O artista e seu tempo

Caríssimos leitores, boa tarde. Hoje, trago à sua apreciação textos mais reflexivos, posto que um tanto extensos. Chamo atenção especial para o instigante ensaio de Richard Rorty. Sei que muitos dos freqüentadores não gostam desse tipo de literatura e preferem postagens mais leves, mais curtas e que não exijam tanta (ou nenhuma) meditação. Estes serão contemplados em outros dias. Nosso espaço, além de democrático, prima pela variedade e, principalmente, pelo conteúdo. È o nosso diferencial em relação a outros tantos similares.
O tempo em que vive, com suas peculiares circunstâncias, determina a forma de expressão do artista, notadamente do escritor? Vivesse em outra época, que não esta, faria o tipo de arte que faz ou seguiria outros rumos? O quanto o ambiente em que transita influencia no que é e faz? Caso tivesse nascido no século XV ou, avançando no tempo, no XXIII, seria, pelo menos, artista?
Essas indagações foram suscitadas por um trecho do livro “A imortalidade”, de Milan Kundera, um dos melhores que já li nos últimos anos. Tanto que ele é uma de uma meia dúzia de obras-primas que considero fundamentais, tanto que separei da minha vasta e caótica biblioteca e mantenho ao lado do computador, para freqüentes e sucessivas consultas.
O escritor checo lança a seguinte questão: “Quando um homem é dotado para uma atividade para a qual o relógio soou a meia-noite (ou ainda não soou a primeira hora), o que aconteceu com seu talento? Vai se transformar? Vai se adaptar? Cristóvão Colombo se transformaria em diretor de uma sociedade transportadora? Shakespeare escreveria roteiros para Hollywood? Picasso produziria histórias em quadrinhos? Ou então todos esses grandes talentos se retirariam do mundo, partiriam, por assim dizer, para algum convento da História, cheios de decepção cósmica por terem nascido em má hora, fora da época para a qual estariam destinados, fora do mostrador que marcava a época deles? Abandonariam seu talento intempestivo como Rimbaud, que com dezenove anos abandonou a poesia?”.
E você, caro leitor, qual sua opinião a respeito? Claro que, em qualquer atividade, o “se”, o condicional, o que não aconteceu, mesmo podendo ter acontecido, não conta. Trata-se, apenas, de provocação para reflexão, sem nenhum sentido prático. Da minha parte, entendo que se os gênios citados por Kundera nascessem em épocas diferentes das que nasceram, não seriam, jamais, o que foram. Poderiam, claro, ser até melhores. Penso, contudo, que seriam piores.
A propósito de Arthur Rimbaud, sempre me intrigou o fato dele ter aberto mão do seu absurdamente imenso talento tão cedo, privando o mundo de sua poesia mágica e original. Se, parando de compor aos 19 anos, compôs tantos e fantásticos poemas, o que não poderia ter composto se o fizesse, digamos (para não exagerar) até os 40? Mas... Aqui entra, novamente, a questão do “se”. E o condicional não conta, nem na arte e nem na vida. Afinal, não aconteceu.
O próprio Kundera cita esta maravilha de versos de Rimbaud: “Nas noites azuis de verão/irei pelos caminhos/no meio do trigo,/pisando a relva tenra...//Não falarei nada,/não pensarei em nada.../e irei longe, muito longe,/como um cigano/no meio da natureza/feliz como se estivesse/com uma mulher”. Lindo! Lindíssimo! Mágico! E se Rimbaud vivesse nos nossos dias, escreveria esses versos? Faria coisa melhor? Sua obra seria pior? Seria, pelo menos, um poeta? Nunca iremos saber!
Acho curioso o gosto dos leitores (em muitos casos, mau-gosto). “A Imortalidade” não é, dos livros de Milan Kundera, o mais vendido, o mais comentado e o que foi melhor recebido pela crítica. É verdade que sua obra literária (felizmente) é vasta e variada. Outra coisa que não entendo é a razão dele jamais ter sido sequer indicado, e, portanto, nunca foi premiado, com o Nobel de Literatura. O cara é muito bom no que faz. Leiam-no com a devida atenção e, certamente, concordarão comigo.
O livro de Kundera mais conhecido (e badalado) é “A insustentável leveza do ser”, publicado em 1983. Trata-se, sem dúvida, de excelente romance. Não discuto, e nem poderia, sua qualidade. Longe disso. Mas se tivesse que fazer uma comparação, não passaria nem perto de “A Imortalidade”, publicado em 1990. Esse é seu romance mais cosmopolita, em que ele abandona a temática que vinha seguindo até então, de cunho político e social, e passa a dar conteúdo profundamente filosófico ao que escreve. Daí eu tê-lo até como material de consulta e não como mero romance para minha distração.
E Kundera, caso houvesse nascido, digamos, no século XIV, ou então no XXIV, seria o escritor que é? Escreveria livros melhores, piores ou iguais “A Imortalidade”? Teria o estilo gostoso que tem, fluente, coloquial, mas não raro irônico, crítico e provocativo? Seria, pelo menos, escritor? Da minha parte, entendo que não? E você, leitor, o que pensa a respeito?

Boa leitura.

O Editor.




Executivo de fachada

* Por Leandro Barbieri

Quais os predicados de um bom executivo? Competência, talento, disposição? Sim. São verdades. Mas não absolutas.

Na era da imagem não basta ser bom. Aliás, nem precisa. O que vale é a construção. O mito. O idealizado. Peguemos como exemplo Homero Segall, um administrador diplomado e reconhecido por seus colegas. Segall é fictício, claro, mas isso não o faz menos emblemático que muitos tidos como reais.

Segall ostenta uma linda sala nas dependências da empresa em que “trabalha”. Mantém a porta fechada e as janelas forradas por cortinas escuras. Não quer ser visto. Detesta ser bisbilhotado. Da janela para fora se comenta a importância das reuniões que acontecem da janela para dentro. É lá que nascem grandes idéias, brilhantes soluções. Segall é um gênio e, como tal, precisa de privacidade.

A principal ferramenta de Segall é o computador. É nele que estão instalados os programas mais essenciais para suas atividades diárias. O pessoal do diz-que-me-diz especula o teor das pastas do administrador.

Duas da tarde. Segall chega na empresa com uma camisa de linho impecável e um característico moletom sobreposto nas costas. Cumprimenta meia dúzia de funcionários com um sorriso contido, tira os óculos escuros e some sala adentro.

Porta trancada, computador ligado. Na tela um jogo de paciência. No telefone a secretária que dali a uma hora estará sobre a mesa só de calcinha. De dentro de um armário saem figuras de ação dos anos 80. Começa a guerra. Segall delira. Ah, a infância nunca acabada...

Nos documentos, anotações. Frases de gibis. Desenhos de mangá. Nada muito importante. Ele não saberia lidar com isso. As dificuldades deixa passar. Lidar com clientes é algo fora de questão. Complicado. Dali a alguns instantes chamará um funcionário e dará uns gritos. É assim que se mantém autoridade. No berro.

Alguns conhecem os bastidores da sala de Segall. Poucos. Discretos. Devidamente dissimulados. Divertem-se com o que entendem por psicopatia. Traços de uma criança não crescida? Talvez levasse umas chicotadas do pai.

Estão enganados. Homero Segall é mesmo um gênio. Verte sua incompetência em status usando roupas de grife e mármore de Carrara no chão. Não basta ser executivo. Tem que ser lenda.

*Roteirista, diretor e pesquisador de Telenovelas Brasileiras. Assina o roteiro de Umas & Outras, primeira novela interativa da internet. No espaço Literário do Comunique-se, resgata a estrutura do Folhetim Francês, embrião da telenovela de hoje.






O futuro da utopia

* Por Richard Rorty

Boa parte das discussões atuais em torno do futuro consiste em projeções das tendências tecnológicas atuais. Dizem-nos que teremos computadores mais inteligentes, mais velozes e mais baratos, novos tratamentos médicos (como a terapia genética) que poderão prolongar nossas vidas, mais aviões supersônicos, telas de TV mais nítidas e mis finas. Dar ouvidos a tais projeções significa limitar nosso campo de visão à fração da população mundial que já vive com conforto. Mas a maioria das pessoas que vai nascer no próximo século nunca vai chegar a usar um computador, receber tratamento médico num hospital ou viajar de avião. Essas pessoas terão sorte se aprenderem a usar lápis e papel e mais sorte ainda se forem tratadas com algum medicamento mais caro do que uma aspirina.


O mais assustador do futuro humano é que não existem projeções convincentes de aumento geral no nível da igualdade humana. Ninguém até agora escreveu um roteiro plausível no qual, no ano 2100, uma criança nascida na Bahia ou em Kinshasa (Congo) terá as mesmas oportunidades na vida que uma criança nascida em Munique ou San Francisco. Ninguém prevê um dia que todas essas crianças terão igual acesso a computadores na escola. Ninguém, também, imagina que alguém que vive na zona rural do Zimbabwe e tem Aids vá ter acesso ao mesmo tratamento médico de um engenheiro de Helsinque (Finlândia) acometido da mesma doença.
Os únicos cenários socioeconômicos otimistas existentes no mercado são aqueles que se limitam a levar em conta as partes mais confortáveis do mundo, aquelas que já se beneficiam de mais sorte. O melhor que qualquer pessoa pode prever para o próximo século é um nível um pouco mais alto de igualdade no interior dos países industrializados individuais. Talvez, por exemplo, o contraste entre as expectativas de vida e as oportunidades de vida das crianças nascidas nos subúrbios de classe média e nos guetos dos EUA ou, na China, o contraste entre as expectativas do filho de um burocrata de Pequim e as do filho de um camponês que vive na fronteira da Mongólia não sejam tão chocantes quanto são hoje.

Quando o assunto é o progresso – o avanço na realização dos sonhos utópicos de um mundo igualitário, sem classes sociais e sem castas, no qual todas as crianças tenham as mesmas oportunidades – o melhor que podemos esperar do próximo século, com algum nível de expectativa de que se realize, é que esses sonhos continuem a existir. O máximo que podemos esperar é que esses sonhos motivem nossos bisnetos a buscar algum tipo de ação política, tanto quanto motivam a nós, hoje. O pior futuro que eu consigo imaginar para a raça humana é um futuro destituído de tais sonhos. Excluindo a extinção total, nada pior do que isso poderia nos acontecer. Isso porque, deixando de lado a idéia de que o sofrimento humano faz parte do “plano divino”, esses sonhos são a única coisa capaz de tornar suportáveis os horrores do século que se passou e os horrores previsíveis do próximo século.

Comparadas à morte desses sonhos utópicos, as catástrofes mais concretas que podem muito bem estar no programa das próximas décadas exerceriam efeitos apenas transitórios. Entre elas figuram a aniquilação recíproca de Israel e do Iraque ou da Coréia do Norte e da Coréia do Sul; genocídios no Cáucaso ou no Congo; a incineração nuclear de cidades selecionadas da Europa e América do Norte, por ordem de algum possível sucessor lunático do general Lebed; a devastação progressiva das populações da África Central e do Sudeste Asiático, graças à Aids pandêmica, e o derretimento das calotas de gelo polares, provocado pelo aquecimento global e resultando em inundações de Londres e Hamburgo, Nova York e Sydney, Xangai e Durban.
A raça humana recuperou-se da peste negra e da Guerra dos Cem Anos, de Átila e Napoleão, do nazismo e dos bolcheviques. Comparados ao progresso inconstante, porém real, em direção à liberdade, igualdade e fraternidade ao qual estamos assistindo desde a Revolução Francesa, esses horrores não têm importância histórica mundial.

Assim como a Europa recuperou-se da Segunda Guerra Mundial graças às esperanças que os vencedores compartilharam com os derrotados, a raça humana pode recuperar-se de qualquer desastre como esse, desde que conserve intactas suas esperanças. Essa esperança é inseparável da fé na capacidade dos seres humanos de cooperarem para determinar seu próprio futuro, em lugar de permanecerem na condição de joguetes do destino ou de vítimas dos “planos divinos”.
Conservar essa autoconfiança significa preservar a transformação mais importante que já teve lugaar na história humana: a gradativa disseminação da convicção de que não existem obstáculos à fraternidade humana, exceto nossa própria falta de disposição em fazer o que é preciso para conquista-la. Essa fé vem progredindo constantemente ao longo dos dois últimos séculos. É sua adoção que torna possível a esperança social utópica – a esperança de que vai chegar um tempo em que cada um de nossos descendentes será um cidadão orgulhoso e feliz de uma comunidade global e cooperativa de nações, na qual nenhuma criança será fadada a sentir inveja impotente da comida, das roupas ou do ensino aos quais outra criança tem acesso. É a versão secularizada d esperança cristã de que todos os homens podem viver como irmãos: de que nossa comunidade moral – as pessoas para quem nos dispomos a fazer sacrifícios – se torne coextensiva à nossa espécie biológica.

Uma sucessão de catástrofes do tipo que mencionei acima poderia nos fazer retroceder para onde estávamos antes do século XVIII: em um mundo no qual todos, menos alguns poucos excêntricos, acreditam que sempre haverá pobres, que a miséria e a infelicidade humana só terminam com a morte e que a única esperança à qual tem direito a maioria dos humanos é a vida após a morte. Ela nos faria retroceder para um mundo no qual a maioria das pessoas concorda com a visão budista: a de que este mundo – o mundo do amor e da esperança, do planejamento e da política – é um mundo de que precisamos fugir, um mundo ao qual o nada é preferível.

No atual momento, os habitantes do Primeiro Mundo estão divididos mais ou menos igualmente entre aqueles que pensam que este mundo nunca chegará a ser muito melhor do que é hoje e aqueles que compartilham a esperança utópica que descrevi acima. No Terceiro Mundo a proporção provavelmente chega mais perto de nove para um. Nessas partes do mundo é muito mais fácil imaginar uma vida após a morte que seja melhor do que a vida atual do que imaginar que as transformações socioeconômicas que tornarão suportável a vida na terra irão realmente acontecer.

Se procurarmos, entre os escritores do último século, os exponentes mais eficazes e mais lidos dessa esperança utópica, os encontraremos entre a primeira geração de escritores de ficção científica. Esse gênero atingiu a maturidade nas décadas de 30 e 40 e, para muitas pessoas no Ocidente, cumpriu a função que as projeções marxistas de um futuro comunista havia cumprido em outros momentos. Esses escritores proporcionaram à minha geração uma visão de um futuro no qual haviam sido alcançadas tanto a justiça social quanto a paz mundial – um mundo no qual o racismo ficou para trás e no qual, como as regiões de cada planeta, os planetas da galáxia estão unidos em uma série de repúblicas federais.

Foi a época de ouro da ficção científica. Nas últimas décadas, porém, os escritores de ficção científica passaram a especializar-se naquilo que Kingsley Amis qualifica como “novos mapas do inferno”. Inventaram distopias cada vez mais cruéis e horríveis – tiranias duradouras, invulneráveis devido ao monopólio tecnológico desfrutado por seus governos. Atualmente, o exemplo mais familiar que temos de distopia em ficção científica é o “império” dos filmes da série “Guerra nas Estrelas”, e o exemplo mais familiar que temos de utopia é a igualitária federação galáctica que Luke Skywalker e seus amigos vão estabelecer e governar, quando alcançarem essa vitória.

É possível que a esperança social tenha atingido seu ápice no Ocidente no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Para os americanos que, como eu, alcançaram a consciência política naquela época e passaram boa parte de sua adolescência lendo autores como Joseph Campbell, Isaac Asimov, Arthur Clarcke, Robert Heinlein e A E. van Vogt, parecia ser inteiramente plausível que o mundo utópico visualizado por esses escritores se tornasse realidade até o ano 2000. A todos nós parecia evidente que tudo que era preciso para acabar com as guerras e o genocídio para sempre era a transformação da ONU numa Federação Mundial real, que detivesse o monopólio das armas nucleares e fosse dotada de uma força policial sobrenatural, capaz de “intervir nos assuntos internos” dos países de modo a cortar lunáticos como Hitler e Stálin pela raiz. Supúnhamos que, quando o século chegasse ao fim, teríamos um mundo no qual tiranos cruéis, polícias secretas e guerras agressivas já teriam deixado de existir.
Também dávamos como certo que os governos de todos os países não tardariam a se dar conta de que era preciso fazer o que alguns poucos países (em sua maioria pequenos e escandinavos) já tinham começado a fazer: estender a proteção do Estado aos subinstruídos, subempregados, subalimentados e vítimas de preconceitos. Eles igualizariam as oportunidades de vida das crianças. Resumindo: partíamos da premissa de que a liberdade, a igualdade e a fraternidade já estavam à vista. Nos comprazíamos especialmente com o fato de que, em todas as melhores utopias criadas pela ficção científica, tanto o presidente mundial quanto o primeiro almirante da frota de guerra galáctica eram mulheres asiáticas ou européias, em lugar de homens europeus. Os escritores de ficção científica nos apresentavam as instituições de uma sociedade verdadeiramente justa de maneira tão vívida e plausível que nos parecia impossível que elas pudessem ser adiadas por muito tempo.

Se algum dia conseguirmos concretizar uma utopia desse tipo, a ficção científica da metade do século XX será vista como leitura profética. As histórias de Campbell, Asimov e outros como eles serão vistas pelos futuros historiadores intelectuais como os escritos que ajudaram a consolidar uma transformação histórica mundial na percepção que a humanidade tinha de suas próprias possibilidades. É possível, porém, que os mesmos historiadores fiquem perplexos diante de um outro conjunto de documentos legados pelo século XX: os escritos de intelectuais que compartilham o desprezo de Nietzsche pelos “últimos homens”. Pois, nas últimas décadas do século, muitos intelectuais estiveram ocupados em explicar que as esperanças utópicas de Mill, Marx e Dewey estão obsoletas. Segundo eles, já ingressamos na etapa “pós-moderna” do desenvolvimento da humanidade.

O desprezo de Nietzsche pelas visões utópicas de John Stuart Mill era intenso, assim como o era o de Strauss, Heidegger, Schmitt e muitos outros que se deixaram persuadir pela sugestão feita por Nietzsche, segundo a qual “O Utilitarismo” e “A Liberdade”, de Mill, são, como a mensagem cristã de fraternidade humana que esses ensaios representam em termos seculares, exemplos de uma conspiração tecida pelos sacerdotes ascéticos contra aqueles que podem dar à luz estrelas dançantes. Minha sugestão é que enxerguemos os próprios Strauss, Heidegger e Schmitt como integrantes de um clero ascético de intelectuais esnobes, movidos pelo mesmo ressentimento do qual Nietzsche desejou em vão se libertar.

Muitos intelectuais contemporâneos pensam na política social democrata à moda antiga, o tipo de política para a qual os ensaios de John Stuart Mill constituem textos sagrados, como algo que já se tornou obsoleto. Alguns acham que ela se tornou obsoleta por causa de Auschwitz. Outros pensam que não se pode ter esse tipo de política depois de compreender que Descartes se enganou com respeito à subjetividade, Kant, em relação aa racionalidade, e os filósofos gregos, em relação a sua crença na metafísica da presença. Mas essas são péssimas razões para acreditar que a liberdade, igualdade e fraternidade estejam superadas.

Em relação à possibilidade ou impossibilidade de uma utopia social-democrata, Auschwitz não prova nada além do que provaram os séculos de escravidão negra indizivelmente cruel. A filosofia pós-darwiniana realmente tornou obsoletos o “espiritualismo” platônico, o dualismo cartesiano e o transcendentalismo kantiano. Mas esse fato não possui qualquer relevância para a política. Os sonhos de igualdade humana não exigem fundamentação de filósofos e podem sobreviver sem qualquer modificação concebível na opinião relativa a tópicos metafísicos ou epistemológicos.

A razão oferecida pelos intelectuais contemporâneos para considerar superados esses sonhos carece a tal ponto de fundamento que me vejo indagando qual será a verdadeira origem da atração exercida pela desesperança sobre esses sacerdotes ascéticos. A única resposta que me vem à mente é que eles compartilham a convicção de Nietzsche de que o tédio é a pior coisa que pode nos acontecer. Eles percebem, corretamente, que todos os futuros felizes, assim como todas as utopias felizes dos primeiros escritores de ficção científica, são mais ou menos iguais, enquanto cada distopia é infernal de maneira interessantemente diferente.

Mas, como fez Nietzsche, eles confundem as exigências da arte com as da política. Se a arte for enfadonha, ela morre, para que possa sobreviver, ela precisa ser inovadora e, ocasionalmente, grandiosa. A política social-democrata não precisa de nenhuma dessas duas qualidades. Hoje temos, na esfera intelectual, um análogo da “estetização da política” promovida pelos nazistas: a estetização da teoria política e social. A popularidade alcançada em círculos intelectuais pelos profetas da desesperança, como Foucault e Lacan, é análoga à popularidade que desfrutam entre os cinéfilos os relatos cada vez mais aterradores de o que nos aguarda no espaço sideral.
Só posso esperar que, cedo ou tarde, esses intelectuais comecem a ler menos Nietzsche e mais Mill – que eles parem de imaginar versões cada vez mais sofisticadas de desesperança e comecem a reivindicar as reformas políticas enfadonhas, antiquadas, banais e já nossas velhas conhecidas, que seriam capazes de nos aproximar um pouco mais da utopia. Os futurólogos tecnologicamente orientados e os neonietzscheanos são igualmente irrelevantes para o único projeto que realmente importa: manter viva a esperança de que, cedo ou tarde, todas as crianças humanas venham a ter as mesmas oportunidades na vida.

* Filósofo norte-americano, autor, entre outros, de “A Filosofia e o Espelho da Natureza” e “Escritos Filosóficos” (Relume-Dsumará). Ensaio, traduzido por Clara Allain, publicado no caderno Mais! Do jornal Folha de S. Paulo em 4 de abril de 1999.












O aprendizado de Nélida

* Por Luiz Carlos Monteiro

A construção de um testemunho intelectual com entradas no foro existencial sempre seduziu poetas e ficcionistas. As referências e exemplos são numerosos no tempo histórico-literário, começando com as civilizações greco-romanas, passando pelo medievo, até chegar à contemporaneidade. Esse testemunho pode manifestar-se em diários, cartas, poemas, memórias, discursos, diálogos, textos de autocrítica e ensaios autobiográficos. No caso brasileiro, de Machado de Assis a Carlos Drummond de Andrade, aparece de modo direto ou implícito na prosa de ficção memorialística ou autobiográfica ou na poesia que não esconde o eu subjetivo porém descarnado e centrado no referencial histórico do autor.

Com a publicação de Aprendiz de Homero, Nélida Piñon disponibiliza ao público o seu próprio testemunho intelectual que envolve ensaios sobre carreira, preferências literárias, concepções de assuntos polêmicos como magistério, religião, família ou a condição da mulher. Obviamente que em sua obra, configurada por uma competência que referenda a extensão, ela vem se descobrindo e descobrindo as faces ignoradas de seus leitores e personagens, além de mapear um país que assumiu como seu, quando se pensa nas suas origens galegas. A estreante de 1961 com Guia mapa de Gabriel Arcanjo, que teve recepção favorável da parte do crítico Fausto Cunha, não mais parou de escrever e vem se afirmando como autora de romances antológicos e reconhecidos de público, a exemplo de A casa da paixão, A força do destino e A República dos sonhos. Estes trabalhos abordam respectivamente, entre outras coisas, um erotismo sem concessões mas não pornográfico, a paródia bem humorada de uma ópera de Verdi e a imigração espanhola para o Brasil, mais especificamente de um grupo de pessoas que veio da Galícia. O reconhecimento internacional alcançado por Nélida Piñon comporta uma extensa listagem de prêmios, homenagens, traduções ampliadas de seus livros, passagens por universidades, além de títulos de doutorado honoris causa.

A mulher ocupa um lugar destacado nos ensaios de Aprendiz de Homero. Começa com Sara a conspirar contra Abraão e a rir de Deus por querer o divino romper a sua esterilidade depois de velha. A memória de Sara é a memória da submissão de todas as mulheres ao patriarcalismo de Abraão e à unilateralidade religiosa de Jeová, embora ela esconda segredos que ouviu dos diálogos entre ambos, a que nem o próprio Abraão conseguiu ter acesso. Em “Dulcinea – a agonia do feminino”, retorna até o texto cervantino, a inquirir sobre o visionarismo de Maritornes, mulher mundana e empregada da estalagem onde o Quixote e Sancho se hospedaram, e que não aceita o fato de o Cavaleiro ter idealizado uma dama tão impossível de existência quanto Dulcinea.
Todo um tratado sobre a ilusão é feito em “O espetáculo da ilusão”, que talvez seja um dos textos de mais difícil realização, pois analisa por dentro o livro A doce canção de Caetana, da própria Nélida. Uma leitura dentro da leitura, onde ela fornece as motivações para a escrita do romance, informa sobre a evolução da personagem Caetana, que tem como objetivo transformar-se em Maria Callas, numa apresentação teatralizada no lugarejo Trindade. A romancista não esquece de aludir à performance e ao sacrifício de artistas que impulsionam o teatro mambembe: “Caetana, contudo, na condição de atriz pobre, integra-se às expectativas geradas pelo espetáculo teatral que se anuncia no cine Íris. Sua natureza exigente requer da grei de artistas ativa participação. E, graças à ilusão que vai semeando em torno, sentem-se todos condenados à aliança imposta pela arte”.

As grandes amizades refletem-se nos textos sobre Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, estendendo-se a suas mulheres. Mas, o vetor analítico de Nélida não deixa ofuscar a sua crítica da obra de ambos, sobre a narrativa que engendraram. De Vargas Llosa em “O escriba Mario” ela faz o percurso crítico aprofundado do seu livro El hablador, onde Mario é personagem e autor ao mesmo tempo, narrador onisciente e sujeito participante junto aos índios machiguengues do Peru. Segundo ela, Vargas Llosa “infiltra o texto com artimanhas e artifícios. Impõe-nos, como consequência, o convívio com um autor que, de seu mirante de observador, fortalece-se por meio da perícia com que situa o imbróglio narrativo sobre o tablado livresco”.

Em Aprendiz de Homero, Nélida Piñon perfaz um roteiro crítico-interpretativo que alia uma marca subjetiva visível em toda a sua prosa, ao expressionismo de afirmações seguras e pensadas racionalmente sobre a obra de numerosos autores, canônicos ou não. Por isso seu estilo pode, em certos instantes, oscilar e bipartir-se explicitamente entre o real e o onírico, entre a cidade e o campo, entre o antigo e a modernidade. E é neste ponto que ela faz a defesa da inserção do clássico no contemporâneo, e vice-versa. Disserta sobre o deslocamento das massas rurais para os alojamentos urbanos precários e compartimentados, descarnando certa aculturação proveniente do êxodo rural para as grandes capitais, da substituição da natureza e da vida simples pela luta desigual pela sobrevivência, que só permite de passagem e fugazmente a consecução do tempo e do lugar para o sonho.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com





Sobejos de felicidade

* Por Urda Alice Klueger

Neste mundo cinzento onde estou a navegar na direção do ocaso, de repente, apesar de tão raramente, acontecem, como lampejos inesperados, alguns instantes de alegria que faíscam no plúmbeo desta minha vida como setas de luz e de beleza, e que, apesar da rapidez de faíscas, me enchem de calor e me deixam trêmula de felicidade.

Hoje, no inesperado deste cinza que me envolve, de repente aquele momento aconteceu, tão rápido quanto um relâmpago e tão inesperado quanto um terremoto, e o abalo de alegria que senti foi equivalente a muitos graus na escala Richter, e até agora, horas depois, ainda sinto meu coração trêmulo como se fosse de gelatina recém desenformada, tamanha a bênção que recebi.

Conto: era meia hora antes do meio-dia, e o trânsito já começava a se congestionar quando, fulgurante dentro da minha névoa opaca, o barquinho colorido da felicidade por um momento resplandeceu à beira da rua apinhada, na calçada irregular e meio desprezada desta minha cidade que se acha perfeita, e a seta da alegria se fincou em mim num abalo, e o meu cinzento se encheu de luz e de felicidade – mas como se vogasse para alto mar a imagem do barquinho desvaneceu-se em instantes, e só ficou dentro de mim aquela fugidia visão de um Passarinho de azul, branco e prata, um pouco inclinado como se a vida lhe pesasse, o rosto cheio de seriedade e concentração, como se carregasse uma tristeza, quiçá uma preocupação, que sei eu?

Da mesa dos deuses só me cabem sobejos de felicidade, como sobejos recebem os cães pacientes – a vida não me permite nem o vislumbre do que acontece nos banquetes sagrados, sequer no papel de escrava que porta um abano refrescante, como a gente vê nas antigas pinturas egípcias. Há que aceitar e vestir minha fantasia de cão, e embarcar no ocaso cinzento, para sempre, para sempre... e tremer de alegria quando, lá uma vez ou outra, receber sobejos de felicidade, como hoje...

E preciso de tão pouco para ser feliz.

* Escritora de Blumenau/SC..


Turista do medo

* Por Raul Fitipaldi


Meiembipe, Latitude 27, Santa Catarina, Brasil. Você conhece essa ilha com o tenebroso nome de Florianópolis, em homenagem à saga genocida de Floriano Peixoto. Moro aqui. E daqui viajo de palavra sempre, às vezes de áudio, por toda minha América Latina que tanto amo e pela qual pouco andei. Deste teclado em que agora escrevo, decolo a cada dia com um rumo mais estreitado, a lugares mais determinados. Sem dúvida, minha agência de viagens é imperial. Assim sendo, ela determinou que desde 28 de junho de 2009 passeasse pelas avenidas de Tegucigalpa, visitasse as ruas de San Pedro Sula, fosse até a fronteira com a Nicarágua, voltasse em caravana à Capital hondurenha.

Em não poucas dessas viagens me topei com corpos mutilados, pedaços de mulheres violadas, brigas de maras, esfaqueados nas montanhas, e até velei uma garota, Santa Wendy da Resistência, que me lembrou Cláudia Falcone de La Noche de los Lápices. Outra época, outra tortura, outra morte. Mas andei, até ver o David escorregar de uma corda, e fugir salvando o couro com Manuel e Ronny. Vi isso tudo como jornalista, como militante, como internauta, mudo, só, impotente, com lágrimas numa hora, com ironia em outras, com risos desvairados, porém, sem medo.

E depois dos milicos vencerem a primeira batalha, e antes do Zelaya aceitar o convite de Leonel Fernández, tudo mudou com o terremoto. A ditadura do fuzil deu lugar ao genocídio da “natureza?”. E o medo chegou, porque a quilômetros dos estertores teutônicos se me rasgou o coração em mil valas de pranto. De um segundo para outro, minha truculenta agência me comprou passagem para Santo Domingo, República Dominicana. Sou vizinho da morte e do espetáculo espantoso da impiedade, da cobiça, da invasão, da miséria mais atroz e planejada no corpo da minha Pátria Mãe.

Reflito, reconheço e assumo: é diferente a possibilidade de arrebentar um terremoto quando um ser querido, o mais querido por caso, pode sofrer as conseqüências fatais dessa monstruosidade e num país longínquo, e também muito pobre, por vezes algoz fronteiriço dos haitianos. Lá vou eu, com meu coração amarrado, meus olhos fixos, olhando o chão, as rusgas entre os homens e a terra, as rugas entre os paralelepípedos, as construções coloniais, e me paro, em frente a La Bolita del Mundo, ouvindo a respiração do vento, o vôo dos pássaros, os charcos de lágrimas. Lá vou eu, viajando de teclado, rastejando o ser querido sobre os escombros de outro terremoto.

* Jornalista de Florianópolis/SC

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Citação ou plágio

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica, “Conversa com um tradutor”.

Coluna Visões do cotidiano – Silvana Alves, crônica “Não sou regra, nem exceção”.

Coluna Planeta Manjaterra – Renato Manjaterra, crônica “Plantando arroz”

Coluna No sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto “Insegurança”

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire – conto, “A entrevista”

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Cítação ou plágio

Caríssimos leitores, boa tarde.
Uma notícia bombástica, divulgada recentemente, vem agitando os meios literários, e jurídicos, do mundo todo e promete dar muito pano para manga, e por um bom par de anos. Explico. Os herdeiros do escritor britânico Adrian Jacobs, autor de contos infantis pouco conhecidos até em seu próprio país, a Grã-Bretanha, que morreu em 1997, entraram com uma ação, em um tribunal de Londres, contra a consagrada campeoníssima de vendas J. K. Rowling. Sim, ela mesma, a criadora do personagem Harry Potter, que já rendeu tantas histórias e vendeu bilhões (sem nenhum exagero, bilhões mesmo) de livros, além de gerar um punhado de filmes.
Acusação? Das mais graves para qualquer escritor. Os autores da ação asseguram que o hipercelebrado bruxo, ídolo da gurizada praticamente em todas as partes do mundo (e de uma infinidade de marmanjos, diga-se de passagem), seria plágio da obra “Willy, o bruxo”.
A acusada, claro, nega e já mobilizou um batalhão de advogados encarregados de provar, por “a + b”, que a acusação é estapafúrdia e sem fundamento. Mas o caso promete, já que envolve não somente uma das mais consagradas escritoras da atualidade, mas, sobretudo, dinheiro, muito dinheiro, rios de dinheiro, algo orçado em alguns bilhões de dólares em direitos autorais. São cifras tão elevadas, que até deixam tontos a nós, mortais comuns, que nunca vimos de perto quantias tão mirabolantes e só podemos imaginá-las.
O suposto plágio teria ocorrido no livro “Harry Potter e o cálice de fogo”, de J. K. Rowling, publicado em 2000. “Willy, o bruxo” é anterior a ele em três anos, é de 1997, ou seja, o ano da morte de Adrian Jacobs.
E agora? Quem está certo? Quem está errado? É um tremendo abacaxi para os juízes descascarem, mas que fará, certamente, a alegria (e a fama) de um séqüito de advogados, das duas partes em litígio, que farão fortuna com a ação judicial. Afinal, “Harry Potter e o cálice de fogo” , o quarto da vitoriosa série, transformou-se em uma mina de ouro. Vendeu (pasmem) 400 milhões de cópias no mundo todo.
Mísero um por cento dessa tiragem (a “bagatela” de 4 milhões de exemplares) faria qualquer escritor, notadamente tupiniquim, se tornar milionário e nunca mais precisar pensar em dinheiro enquanto vivesse. Isso sem contar que o livro é hoje rentabilíssima franquia de cinema. São, como se vê, cifras mirabolantes em jogo.
O despacho da agência de notícias espanhola EFE, através do qual tomei conhecimento do processo, ressalta que “Willy, o bruxo” não passa de um livreto magrinho, de apenas 36 páginas, e que não vendeu o suficiente sequer para cobrir os custos de publicação. Ou seja, o autor, com essa obra, não fez o suficiente nem para pagar um “cafezinho”, como se diz popularmente (ou para uma dose de uísque, já que se trata de um britânico).
Adrian Jacobs, aliás, deu-se muito mal com literatura (como ocorre com a imensa maioria dos escritores). Tanto, que morreu pobre (o superlativo paupérrimo caberia, aqui, a caráter), em um asilo qualquer de Londres. Não deixou, pois, um tostão furado para os herdeiros (que nem cuidaram dele, convenhamos).
Muitos podem, a esta altura, estar perguntando: “O que diferencia plágio de mera citação de determinada obra, ou trecho dela?” A diferença está na apropriação indébita daquilo que outro escreveu. Se você reproduzir algum texto alheio, e nem precisa ser cópia literal, sem mencionar seu verdadeiro autor, dando a entender aos editores (e aos leitores principalmente), que foi você que o imaginou e redigiu, estará caracterizado o plágio.
Todavia, se tiver o cuidado de mencionar a fonte e, principalmente a verdadeira autoria, seu ato será perfeitamente lícito. Aliás, caracterizará, até mesmo, válida homenagem a quem concebeu a idéia, e que você certamente admira (caso contrário, não o citaria), forma até nobre de divulgar determinada obra e de render tributo a algum escritor que o mereça.
A expressão “publicação”, usada em relação a livros ou outros textos esparsos, significa, de fato, o que sugere. Ou seja, que aquilo tudo passou para o domínio público. Quem adquiri-los poderá fazer tudo o que quiser com eles. “Tudo”, aliás, vírgula. Tudo menos “roubar-lhe” o direito de autoria. Este existirá enquanto o mundo existir. É inalienável.
Não se pode sair por aí copiando o que lhe der na veneta, a três por dois, o que outros escreveram, garantindo que são obras suas. Isso é crime! É roubo! É apropriação indébita, ou qualquer coisa do tipo que o valha.
Esclareço que não estou afirmando (e muito menos negando) que a acusação contra Rowling procede ou deixe de proceder. Limito-me, no caso, a meramente repassar a informação que recebi, sem fazer qualquer juízo a respeito. Eu, heim!!! Sou macaco velho! Não ponho a mão em cumbuca. Além do que, não sou maluco! Os tribunais londrinos, com todo o ritual, aparato e solenidade que os caracteriza, que digiram como puderem esse indigesto pepino.

Boa leitura.

O Editor.





Conversa com um tradutor

* Por Urariano Mota

Por email, há poucos meses, tive uma conversa fecunda com um tradutor profissional, homem de cultura e sensibilidade literária. Foi uma conversa tão rica, que considero um crime guardá-la somente para mim. Como não lhe pedi licença para publicação, retiro de nossa correspondência os dados identificadores.

Tudo começou com um texto que apresentei a ele, morrendo de medo, sobre uma crítica que fiz a duas traduções de Machado de Assis para o espanhol. Ao que ele me respondeu:

“Aquele tradutor ideal de que você fala é, de fato, o norte a orientar, ou que deveria orientar, todo tradutor real, de carne e osso. A identificação com o ambiente do Autor é um dos problemas maiores: não só conhecer a língua a contento, mas também o ambiente, os usos, o peso específico das palavras ou expressões... Como vivi um bom tempo na França, frequentando franceses de todas as classes, adquiri um razoável conhecimento desse peso das expressões. Há casos em que uma expressão francesa é das que se encontram, por assim dizer, com naturalidade na boca de um taxista, enquanto a mesmíssima expressão aqui soaria de um pedantismo elitista de doer: jamais um taxista falaria assim. Temos de achar um equivalente. Mas nem sempre o tradutor pode ter essa vivência. É um mal para o qual não tem grande remédio. Afinal, não se pode exigir de todo tradutor que faça como uma conhecida minha, mulher de banqueiro, que traduziu os Papéis de Aspern: acompanhou o texto de todos os lugares em que se desenrolava: hospedou-se em Veneza em frente à casa onde estava o personagem, etc. Com o que ganharia pela tradução não pagaria nem o bilhete de avião, que dirá a hospedagem.

Traduzir enfrenta muitos problemas. O tradutor nem sempre viveu ou morou nos lugares onde corre uma narração. Em muitos países da América Latina, nem os espanhóis captam todo o sentido e nuances. Por um desses acasos, encontrei uma pessoa que foi amiga de um autor que traduzi. Sem ela, não sei como teria podido traduzir uma montanha de regionalismos. Se não tivesse tido essa sorte, teria de ter posto em português na base da intuição, do faro.

Enfim, a tradução é sempre uma aproximação, que traz as lacunas linguísticas e culturais do tradutor, seus entendimentos falhos, às vezes mesmo sua não identificação com o autor: não gostar muito de um romance, você não sabe como atrapalha a tradução. E no entanto a gente tem de traduzir gostando ou não!

Fiquei devendo o meu palpite sobre a questão do espanhol. Sobre o ler, não sei te dizer. Chutaria que deve haver um empate nas dificuldades e facilidades de ambos os lados. Sobre o falar, não. Ganhamos.

Não encontrei na estante o livro do prof. Alfred Tomatis, que li na década de 70, “L'oreille et le langage”. Devo ter emprestado para alguém que não devolveu. Tomatis era um médico da área fono. Estudou as questões da audição e, com base em suas descobertas, bolou um método de ensino de línguas, que o deixou rico. Vou ter de chutar os dados técnicos, já que não acho o livro. Mas a teoria dele é mais ou menos assim. Falar é reproduzir o que v. ouve. O ouvido é treinado pelo seu ambiente linguístico. A experiência empírica mostrava a ele que certos povos (= gente de certas línguas) tinham maior facilidade para aprender línguas que outros. Dois deles em particular: um, os russos. O outro, adivinhe? Pois é, nós, brasileiros!
Foi estudar a coisa e descobriu o seguinte. Cada língua tem um determinado espectro sonoro. Quanto mais amplo o espectro, maior a facilidade. Em Hz (ou microherz, sei lá), o espectro sonoro das línguas ocidentais ia de – chuto de cabeça – 100 a 6.500. Nesse espectro, o inglês vai, digamos, de 200 a 700. O francês, sempre chutando, de 600 a 1200. Daí por que os ingleses têm dificuldade de falar francês e vice-versa: a faixa de sons comuns é muito pequena. Os espanhóis, sempre chutando, têm um espectro entre 500 a 1000. Nós, brasileiros, vamos de algo como 300 a uns 5.000. Os russos, vão de 100 e poucos ou 200 a uns 6.000: quase todo o espectro! Daí porque temos maior facilidade para falar espanhol do que os hispânicos a nossa língua: cobrimos todo o espectro deles (ou quase todo, se me engano nos números), mas eles só uma parte do nosso. O português de Portugal também tem um espectro pequeno, se bem me lembro parecido com o do espanhol.

Se procurar por Alfred Tomatis no Google, tem vários links sobre ele, seu método e suas escolas”.

Ao que eu respondi:
“Os seus comentários, vindos da própria experiência, são muito bons, e pertinentes. Digo mais: você deveria ‘socializá-los’, transformá-los em mensagem coletiva. Para ter um ‘gancho’ (essa coisa estúpida de imprensa), você poderia partir da sua experiência com o autor em que você é especialista, porque é um nome que está na onda e na crista da onda agora.

Não sei se você conhece um livro de Paulo Rónai sobre tradução (Tradução Vivida, se não me engano – estou com preguiça de ir no Google, mas eu tenho o livro em casa). Recomendo. Paulo Rónai, você sabe, era húngaro e veio para o Brasil na época da 2a. Guerra (o Brasil, durante a Guerra, se beneficiou da presença de muitos intelectuais nesse tempo – Otto Maria foi um deles). E Rónai fez a magnífica tradução da Comédia Humana, edição da Globo. Pois bem, tem um momento do livro que ‘bate’ na medida certa com tuas observações. Paulo lia romances brasileiros em Budapeste e nunca entendeu como era que no morro existiam miseráveis. Inexplicável isso, para a realidade europeia. Na Europa, os castelos, as melhores casas ficavam no alto. Como era possível que miseráveis habitassem em lugar de castelos? Pois bem, foi só com a chegada dele ao Rio que ele pôde compreender: só então Paulo Rónai viu e sentiu as favelas lá no alto do morro.

Essa conversa não tem fim. Melhor continuá-la quando você vier ao Recife.

Mais uma. Olhe por favor uma afoiteza, uma insensatez absoluta que fiz, ao criticar uma tradução clássica de Dom Quixote para o português. Está aqui http://www.lainsignia.org/2005/junio/cul_015.htm

Fui. Espero os seus ensinamentos sobre essa loucura que cometi”.

Ao que o amigo tradutor, modesto e generoso, respondeu:

“Coitado do colega, rolou mais que o Quixote e o Rocinante! Você o desmantelou. Fico imaginando o que vai sobrar das minhas modestas traduções se passassem por seu crivo. Ainda bem que o meu autor não é o Quixote!

Aliás, se minha memória não me trai, o colega tradutor, na cena do moinho, baseou-se também na gravura do Doré, que apresenta o fidalgo pendurado com corcel e tudo na ponta de sua lança espetada na pá ou asa do moinho. Na gravura, a asa tanto pode ter sido flagrada dando um tapa no cavaleiro, como pode parecer, dependendo do olho (e da leitura do texto!), estar girando e erguendo ginete e montaria pelos ares. Vá saber, de resto, o que o tradutor francês pôs no texto que o Doré ilustrou.

Mas me diverti um bocado com as suas críticas, todas muito bem fundadas. Por espírito de classe, entretanto, é bom acrescentar que os revisores – e na época da tradução que você critica, os linotipistas – às vezes dão preciosas ajudas ao tradutor. Vou te contar uma, que ocorreu comigo. Menos mal que era um livro sem importância. Um desses psicanalistas ou algo assim (não me lembro do autor, um francês), falando da relação de erotismo com religião, escreveu longamente sobre o êxtase, uma forma de orgasmo, segundo ele. Aliás, Santa Teresa comprova isso irrefutavelmente. Bem, no texto havia muita gente em êxtase, logo, eXtática. O revisor não teve dúvida: trocou todos os xis por esses! Nem preciso dizer que pego o livro na editora, um dos meus primeiros trabalhos, faz quase 40 anos, abro uma página ao acaso, e me salta um santo eStático diante dos olhos. Quase tive um treco! Naquela trapalhada inicial da narración
que vira má ração, ou algo assim, parece ter havido uma entusiasmada intervenção do tipógrafo e do montador dos chumbos: um alterou as palavras, o outro empastelou o texto.

Continuando sobre a pontuação.

Você tem razão no que aponta, principalmente quanto ao corte do ritmo. Mas em outros casos não há como não intervir, pois seu uso, da pontuação, varia com a língua. E varia também com o tempo: a pontuação de um texto simbolista, p.ex., para não falar em textos mais antigos, difere bastante da que hoje usamos.

É um problema bem complicado, não há uma regra precisa para resolvê-lo: a que ponto se deve seguir à risca essas características originais do texto, a que ponto adequá-las aos nossos dias. Creio que depende do papel que o sinal de pontuação exerce na frase, da respiração do texto nas duas línguas.

O problema, aliás, transcende a tradução. Coordeno para uma editora uma coleção de contos e crônicas ‘clássicos’. A preocupação é partir sempre das edições prínceps. Publicamos todos os livros de conto de um clássico brasileiro a partir delas, de modo a oferecer o texto mais próximo possível do que compôs o mestre. Só foram feitas atualizações ortográficas... E de pontuação. Defendi que se mantivesse a pontuação tal qual, sem alterar uma vírgula: apareceria então, p. ex., que ele utilizava com grande frequência vírgula separando o sujeito do predicado, o que é considerado crime hediondo pelos gramáticos hodiernos! A vírgula muitas vezes servia nele para marcar uma pausa de leitura. P.ex. (invento): "e o Paulo chorou", sem pausa, é uma coisa; "e o Paulo, chorou", tem outro sentido = e o Paulo, [suspense] chorou. Uma constata uma quase banalidade. A outra tem forte carga emotiva. Fui voto vencido: os organizadores dos volumes afirmaram que a convenção consagrada era, nesse caso e em alguns outros, atualizar a pontuação. Quem sou eu para reverter a convenção dos donos dos clássicos! Conseguimos entretanto salvar várias peculiaridades pontuadoras do meu ex-vizinho (a casa dele ficava na esquina da rua onde nasci). Modéstia à parte, é uma das melhores edições disponíveis de seus contos.

Boas noites!...

Estava aqui batucando no teclado mais uma página do autor que traduzo, quando me ocorreu acrescentar o seguinte. Há que se levar em consideração uma coisa, também. Melhor dizendo, eu levo. Nem todos os textos são iguais. O Quixote é uma coisa; o que traduzo, outra. O primeiro é um monumento da literatura; o segundo um bom autor contemporâneo. O segundo traduzo com a editora me pagando por página, isto é, trabalho al destajo, por produção, à la pièce, de olho no meu saldo bancário. O Quixote não dá para traduzir assim. Digo, eu jamais traduziria assim: tendo de fazer ‘x’ páginas por dia para poder pagar minhas contas. É um trabalho de longo prazo, uma espécie de missão, não um ganha-pão. Já recusei algumas traduções por achar que não daria para fazer um trabalho à altura, no sistema corrente de remuneração. Um deles, para mim um dos maiores romances do séc. XX, escrito por um canalha consumado: Céline. Calculei que, para fazer uma tradução decente do livro, necessitaria um ano de trabalho, no mínimo. O que me pagariam seria o equivalente a uns 3 ou 4 meses de trabalho normal. Como não tenho outra fonte de renda, e a editora jamais me pagaria 3 ou 4 vezes o preço da lauda, não pude aceitar esse desafio que adoraria ter enfrentado. Deram para outra pessoa, que não necessitava de uns trocados como eu para sobreviver. E que, diz-se, fez um trabalho muito bom. Se não me engano o livro ganhou recentemente uma nova tradução, creio que da..., tradutora de primeiríssima. Outro que recusei, por motivos parecidos: ‘A condição humana’, que acaba de ganhar também uma tradução primorosa de um mestre.

Certas obras eu só ousaria traduzir se ganhasse na loteria, e não precisasse da remuneração da editora. Como não jogo nunca... “

E aqui ficamos, para a minha infelicidade. Esse homem é um intelectual, um tradutor fino e raro que jamais ostenta o brilho. Ponte entre povos, eu o vejo como uma ponte de ouro que, de tão pisada, ninguém nota.

* Jornalista e escritor







Não sou regra, nem exceção

* Por Silvana Alves

Não sou regra, nem exceção. Fujo, porém, delas. Não quero nada que me prenda, nem que me largue. Quero completude, plenitude e intensidade. Sou frágil para as perdas, para os dissabores, choro fácil e confio no inconfiável.

Da mesma maneira que choro, sorrio largamente como uma criança. Confio no olhar, e quase sempre, erro. Desespero-me facilmente e logo as doenças psicossomáticas surgem. Tenho uma centralidade só minha, que causa irritação em outras pessoas.

Chego a ser doce como mel e ácida como o limão. Por vezes, indiferente. Por menos, incapaz de perceber certas atitudes que assustam. Medo do surpreendente e fugitiva daquilo que pode ser a felicidade.

Não procuro alguém, nem respostas. Procuro por simplicidade, pelo torto, pelo anormal, pelo difícil, talvez pelo excluído. Não quero regra, nem exceção.

Quero você, meu real e minha exceção.

* Jornalista formada pela FATEA (Faculdade Integrada Teresa D´Ávila). Duas palavras falam por mim: vida e poesia.




Plantando arroz

* Por Renato Manjatera

Eu queria arroz. E decidi ir atrás do meu objetivo. Comprei a melhor terra que tinha para plantar arroz, fiz análise do solo e preparei-o mais ainda para o plantio do arroz. Comprei também implementos para plantar e pra colher arroz, da última geração.

Até água boa para arroz eu comprei. Quando a lua entrou na fase boa para o cultivo do arroz, fui comprar as sementes. Não tinha semente de arroz, mas tinha de feijão. Eu comprei então sementes de feijão.

Não tinha semente de arroz, só por isso eu comprei sementes de feijão. Mas só as sementes eram de feijão. O restante, a terra, o adubo, o arado, a colhedeira, a água era tudo de arroz.

Aí eu plantei como se planta arroz, pois tudo era de arroz, exceto as sementes. As sementes, só mesmo as sementes, eram de feijão. Pois é. Dá para acreditar que nasceu feijão?!

* Jornalista e escritor, Autor do livro “Colinas, Pará” com prefácio do Senador Eduardo Suplicy, bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCAMP, blog http://manjaterra.blogspot.com






Insegurança

* Por Rodrigo Ramazzini

- Foi bom?

Depois de quatro meses separados, resolveram dar uma nova chance ao amor. Reataram. Namoraram durante seis anos até o rompimento, que fora motivado após mais uma briga originada pelo ciúme e insegurança de Rômulo. Ele prometeu mudar depois de muito insistir no retomada do namoro. Juliana resolveu lhe dar mais uma chance. “A última”, sentenciou. Ainda deitados na cama, entrelaçados e suados, após transaram, enquanto Juliana acendia um cigarro, Rômulo questionou:
- Foi bom pra ti? Como nos velhos tempos?
- Não vai começar...
- Não! Não é isso! Só queria saber se continuo em forma...
- Sei...
- Sério!
- Tá bom! Vou fingir que acredito...
- Neste período que tivemos afastados, só pensava em ti!
- Há! Há! Há! Eu vi... Eu vi aquele dia com a morena naquele bar na Cidade Baixa...
- Era só para te fazer ciúme! Foram apenas beijinhos. Não passou disso. Vai dizer que não ficaste com ninguém, não beijaste alguém nos últimos quatros meses?

Silêncio.
- Hã... Hã... Claro!
- Então, por que estás me cobrando?
- Não estou te cobrando, Rômulo. Estou apenas constatando...

Silêncio.
- Foram muitos?
- O que isso importa?
- Curiosidade, apenas.
- Sei lá! Não contei.
- Sei...
- O importante é que estou aqui contigo. Não achas?
- É... É... Alguém conhecido?
- Vai começar?
- Não! Não! Só achava interessante saber.
- Por quê?
- Porque... Porque sei lá! Tipo: vai que estou no mesmo lugar que o cara. Ele é nosso amigo, talvez. Não sei! Daí, pelo menos, não vai ficar todo mundo me olhando e eu com “aquela cara” de último a saber...
- E fazer uma enorme cena de ciúmes?
- Claro que não! Não prometi mudar?
- Prometeu.
- Então...

Silencio.
- Então, tem alguém conhecido?
- Não começa, Rômulo!
- Não quer falar, não fala... Tudo bem!

Silêncio.
- Tu não ficaste com o Maurinho, né?
- Hã... Hã... E se fiquei?
- Putz! Eu não acredito, Juliana!
- Viu? Por isso que eu não queria falar nada...
- Que mau gosto! Meu Deus!
- Por quê?
- Por que sim!
- Ele era teu amigo?
- Era... Era... Disse bem! Por isso que ele estava estranho comigo... Distante... Agora, entendi!
- Pode ser...
- Onde foi?
- Mês passado. No show da Banda “Do You Like?”
- Sei... Não fui... O pessoal estava todo lá?
- Estava...
- Sei... Sei... Representou alguma coisa pra ti?
- Claro que não! Agora chega! Chega... Não quero mais falar neste assunto. Aliás, tu prometeste que não teria mais essas crises de ciúmes...

Silêncio.
- Tá certo! Não vamos mais falar no assunto...

Silêncio.
- Uma última pergunta: não passou de uns beijinhos, né?
- Não... Mas e se tivesse passado disso? Qual o problema?

Silêncio. Maurinho, então, pensa:
- Ufa! Ainda bem... Assim não corro o risco... Risco?!... Será... Será que ele é melhor que eu na cama?

* Jornalista






A entrevista

* Por Eduardo Oliveira Freire

Quando enviaram por e-mail, pela primeira vez, algumas perguntas sobre sua vida, ficou sem saber o que dizer. Começou a pesquisar pela internet alguns discursos, a cortar e colar algumas palavras chaves. A partir das palavras alheias, construiu um personagem para si mesmo. Depois de responder as perguntas, enviou-as. Entretanto, sentiu-se vazio...

“ Sou algo em mutação. Há muito tempo, surgi como uma ideia de duas pessoas; depois, tornei-me um ovo fecundado. Quando fui parido, era uma bolinha de carne e um receptáculo para um caldo ancestral de cultura. Numa idade, que não sei definir direito, iniciei os meus primeiros pensamentos, marcando assim meu terceiro nascimento. Aliás, não nasci, estou nascendo. Sou um indivíduo que escreve para extravasar sentimentos, materializar imagens e histórias que povoam tanto meu consciente quanto meu inconsciente.

Nasci no Rio de Janeiro, mas me sinto estrangeiro, pois sou muito diferente do imaginário construído sobre o carioca. Às vezes, sinto-me a-histórico, pois me relaciono com os fatos de uma maneira particular. Quando vejo uma estátua, eu a agrego aos meus sonhos e imaginação, não procuro saber o valor histórico e oficial que ela representa.

As ruas e as esquinas da cidade possuem significados muito individuais para mim. Alienação! Será? ou uma forma de ver as coisas? A minha biografia não tem histórias interessantes, sou uma mistura de impressões. Vejo-me como uma coisa sem forma que degusta tudo que vê pela frente... Quer saber de uma coisa, chega de pensar bobagens. Estou sem inspiração para escrever; recorto e colo trechos de textos que escrevi há muito tempo. Vou tomar banho de mangueira, não tenho dinheiro para ir à praia”.

* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural e aspirante a escritor.