domingo, 31 de maio de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Encontro com os clássicos.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “O nosso dicionário”.

Coluna Clássicos – Blaise Pascal, ensaio “O homem perante a natureza”.

Coluna Por aí – Lançamentos e Dicas do Editor.

Coluna Estante – Livros mais vendidos

Obs.: Se você for jornalista, atuar em qualquer área de Comunicação, ou for estudante dessas disciplinas e queira participar deste espaço, encaminhe seus textos para o editor do Literário: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Encontro com os clássicos

Com a publicação de um trecho do magnífico ensaio de Blaise Pascal, “O homem perante a natureza”, o Literário dá seqüência, hoje, aos seus encontros dominicais com os clássicos da literatura mundial. Nas dez semanas anteriores, trouxemos para o leitor textos de Leon Tolstoi, Henry David Thoreau, Mário Quintana, Machado de Assis, Edgar Allan Poe, Sigmund Freud, Guy de Maupassant, Vinicius de Moraes, Raul Pompéia e Isaac Asimov. Muitos outros virão proximamente.
Notem que não utilizamos, aqui, a expressão “clássicos” no sentido usual do termo, o de escritores de um passado remoto que lançaram os fundamentos da Literatura. Para nós, essa expressão cabe a caráter aos homens de letra inclusive do nosso tempo, mas já consagrados no mundo literário e, sobretudo, acadêmico e que não têm que provar mais nada para ninguém, tidos e havidos como produtores de obras indispensáveis para quem queira ter razoável grau de cultura.
Há quem ache que esse tipo de publicação foge ao espírito da nossa revista eletrônica. Discordo. Na verdade, consolida-o, enfatiza-o e o valoriza. Ademais, a maioria dos textos publicados é rara, que pouca gente conhece, “descoberta” após demoradas pesquisas na caótica biblioteca do Editor. Certamente, eles haverão de inspirar nossos colunistas e, por que não, os aspirantes a escritor que nos visitam, na produção das suas próprias obras.
Outra finalidade destes encontros semanais com os clássicos é a de retribuir, de alguma forma, os vários abnegados que, arcando com os custos, imprimem, diariamente, nossas edições para distribuir aos colegas que não tenham computador. Trata-se de uma ação generosa e importantíssima na divulgação do Literário. Serão sempre bem-vindas ações desse tipo, que ampliem nosso círculo de leitura (o que aumenta, claro, a responsabilidade dos participantes deste espaço na produção, e do Editor, na seleção, de textos que de fato mereçam ser lidos).
Essas pessoas que nos ajudam tanto, e espontaneamente, são, em sua maioria, estudantes de Letras e de Jornalismo e, para elas, os clássicos são verdadeiros tesouros de sabedoria e luz (deveriam ser para todos os amantes e agentes da Literatura)..
Sem mais delongas, portanto, convido-o, precioso leitor, a se deliciar com as reflexões de Blaise Pascal, um dos mais respeitados, citados, argutos e refinados filósofos que o mundo já produziu.

Boa leitura.

O Editor.



O nosso dicionário

* Por Pedro J. Bondaczuk

“A vida é o nosso dicionário”, eu disse, um dia desses, a um jovem amigo, sem revelar, contudo, que essas palavras não eram minhas, mas do filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson, no seu livro “Ensaios”, para que ele não pensasse que eu queria me exibir, mostrando certa erudição (que, modéstia a parte, até que tenho). Minha intenção, asseguro, não era essa.

Meu intento não era o de impressionar o jovem admirador e nem deixá-lo constrangido. A citação veio a propósito da necessidade de recorrermos, com assiduidade, ao dicionário, para expandirmos nosso acervo de palavras e, sobretudo, para entendermos cada uma delas, utilizando-as no devido contexto e não sair por aí dizendo coisas que não compreendemos, apenas para exibir conhecimento que de fato não tenhamos.

O filósofo estava mais do que certo em sua afirmação. Aprendemos palavras (sem sequer nos darmos conta) de forma natural, através da vivência, das circunstâncias que surgem à nossa frente, dos relacionamentos de vários tipos (quer afetivos, quer profissionais, sociais etc.).

Essa é a melhor forma (depois da leitura de bons livros, claro) de adquirirmos vasto e rico vocabulário: correto, pertinente e adequado para qualquer situação. Ou seja, vivendo e, por conseqüência, adquirindo esse bem valioso, mas que muitos não sabem como utilizar, que é a experiência.

Emerson, além de dotado de peculiar capacidade de raciocínio (foi um gênio na sua especialidade), era um sujeito muito observador. Seu objeto de estudo foi o homem, com sua grandeza, fraquezas e fragilidades. Aprendeu a maior parte do que sabia não da leitura (embora fosse compulsivo leitor), mas da vivência. A vida foi a sua grande escola (e é a de todos nós, embora muitos teimem em não aprender as lições que ela tem a nos ensinar).

A propósito do tema referente a vocabulário, escreveu, num dos memoráveis textos do livro que citei: “Os anos foram bem gastos quando os demos aos trabalhos do campo, ou ao comércio, às manufaturas, às relações sinceras com grande número de homens e mulheres (...) isto com o único fim de aprender em todas suas realidades uma linguagem capaz de ilustrar e de encarnar as nossas percepções. A pobreza ou a riqueza do discurso de quem fala ensina-me imediatamente em que medida ele já viveu”.

Muitos levam vidas sombrias, tediosas, vazias e amargas, por medo de se expor. Evitam os relacionamentos, temendo se ferir. Omitem-se das grandes causas, deixando, invariavelmente, aos outros as tarefas que lhes compete executar. Mergulham de cabeça numa tediosa rotina, encaram o trabalho como castigo, quando não maldição, e marcam passo em empreguinhos medíocres, muito aquém do seu potencial, que não desenvolvem por carecerem de vontade.

Estes, passam a vida a se lamentar. Imaginam doenças, para chamar a atenção dos outros, mediante o humilhante sentimento da piedade que procuram, mesmo que inconscientemente, despertar. E de tanto imaginarem moléstias, acabam, de fato, adoecendo e se constituindo em pesos mortos para a família e para a sociedade.

Há muitas e muitas e muitas pessoas com essas características. Percebemo-las tão logo abrem a boca, pela pobreza do seu vocabulário. Ou então, pela utilização de palavras fora do devido contexto, o que indica que as leram em algum texto qualquer, mas passaram longe de entender o significado.

Estudos indicam que cerca de 65% das doenças que abarrotam hospitais e consultórios médicos são de fundo psicossomático. Ou seja – fugindo dos eufemismos e trocando em miúdos – são “imaginárias”. Estivessem, essas pessoas, empenhadas em atividades úteis e produtivas, não teriam tempo para essas elucubrações negativas.

Boa parte dos medicamentos que os médicos receitam para esses pacientes são placebos. Ou seja, são constituídos de substâncias neutras, que nem beneficiam e nem prejudicam o organismo. E faz sentido. Afinal, a origem dos seus males não está no corpo, mas em suas cabeças desorientadas. Estas, portanto, é que têm que ser tratadas.

Para sabermos muitas coisas, de fato, mas em profundidade e não apenas de forma superficial, temos que vivê-las. Não importa que o nosso trabalho seja considerado “menor”, desde que seja útil. Quem pode afirmar, por exemplo, que a função do lixeiro não é nobre? Deixe uma cidade sem ele para ver o que acontece!

Portanto, meu jovem amigo, siga os conselhos de Emerson, que sabia o que dizia. “Gaste” bem os seus anos, de forma proveitosa e coerente, para não se arrepender quando eles estiverem próximos de se esgotar. E faça da vida, desta mestra infalível e justa, o seu mais erudito e mais completo dicionário.

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com




O homem perante a natureza

* Por Blaise Pascal

A primeira coisa que se oferece ao homem ao contemplar-se a si próprio é seu corpo, isto é, certa parcela de matéria que lhe é peculiar. Mas, para compreender o que ela representa e fixá-la dentro de seus justos limites, precisa compará-la a tudo o que se encontra acima ou abaixo dela. Não se atenha, pois, a olhar para os objetos que o cercam, simplesmente, mas contemple a natureza inteira na sua alta e plena majestosidade. Considere esta brilhante luz colocada acima dele como uma lâmpada eterna para iluminar o universo, e que a Terra lhe apareça como um ponto na órbita ampla deste astro e maravilhe-se de ver que essa amplitude não passa de um ponto insignificante na rota dos outros astros que se espalham pelo firmamento. E se nossa vista aí se detém, que nossa imaginação não pare; mais rapidamente se cansará ela de conceber, que a natureza de revelar. Todo esse mundo visível é apenas um traço perceptível na amplidão da natureza, que nem sequer nos é dado a conhecer de um modo vago. Por mais que ampliemos as nossas concepções e as projetemos além de espaços imagináveis, concebemos tão somente átomos em comparação com a realidade das coisas.
Esta é uma esfera cujo centro se encontra em toda parte e cuja circunferência não se acha em alguma. E o fato de nossa imaginação perder-se neste pensamento constitui, em suma, a maior manifestação da onipotência de Deus.
Que o homem, voltado para si próprio, considere o que ele é diante do que existe; que se encare como um ser extraviado neste pequeno setor da natureza, e que da pequena cela onde se acha preso, do universo, aprenda a avaliar em seu valor exato a terra, os reinos, as cidades e ele próprio. Que é um homem diante do infinito?
Quero, porém, apresentar-lhe outro prodígio igualmente assombroso, colhido nas coisas mais delicadas que conhece. Eis uma lêndea, que na pequenez de seu corpo contém partes incomparavelmente menores, pernas com articulações, veias nessas pernas, sangue nessas veias, humores neste sangue, gotas nesses humores, vapores nestas gotas; dividindo-se essas últimas coisas esgotar-se-ão suas capacidades de concepção, do homem, e estaremos portanto ante o último objeto a que pode chegar nosso discurso. Talvez imagine, então, seja essa a menor coisa da natureza. Quero mostrar-lhe, porém, dentro dela um novo abismo. Quero pintar-lhe não somente o universo visível, mas também a imensidade concebível da natureza dentro desta parcela de átomo. Aí existe uma infinidade de universos, cada qual com o seu firmamento, seus planetas, sua terra em iguais proporções às do mundo visível; e nessa terra há animais e neles essas lêndeas onde voltará a encontrar o que nas primeiras observou. Deparará assim, por toda a parte, sem cessar, infindavelmente, com a mesma coisa, e perder-se-à nessas maravilhas tão assombrosas na sua pequenez quanto as outras na sua magnitude. Pois como não se admirar de que nosso corpo, antes imperceptível no universo, imperceptível no todo, se torne um colosso, um mundo, ou melhor, um todo em relação ao nada a que se pode chegar?
Quem assim raciocinar há de apavorar-se de si próprio e, considerando-se suspenso entre esses dois abismos do infinito e do nada, tremerá à vista de tantas maravilhas; e creio que, transformando sua curiosidade em admiração, preferirá contemplá-las em silêncio a investigá-las com presunção.
Afinal que é o homem dentro da natureza? Nada, em relação ao infinito; tudo, em relação ao nada; um ponto intermediário entre o tudo e o nada. Infinitamente incapaz de compreender os extremos. Tanto o fim das coisas quanto o seu princípio permanecem ocultos num segredo impenetrável, e é-lhe igualmente impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve.
Que poderá fazer, portanto, senão perceber alguma aparência das coisas num eterno desespero de não poder conhecer nem seu princípio nem seu fim? Todas as coisas saíram do nada e são levadas para o infinito – que haverá além desses assombrosos limites? O autor das maravilhas o sabe, ninguém mais.
Por não haver meditado sobre esses infinitos, puseram-se os homens temerariamente a investigar a natureza, como se tivessem alguma proporção com ela. E é estranho que tenham querido compreender os princípios das coisas, e assim chegar ao conhecimento do todo através de uma presunção tão infinita quanto o seu objeto. Pois não há dúvida de que é impossível conceber tal desígnio sem presunção ou sem a capacidade infinita da natureza.
Quando se estuda, compreende-se que tendo a natureza gravado sua imagem e a de seu autor em todas as coisas, todas participam de seu duplo infinito. Todas as ciências são infinitas na amplitude de suas investigações, pois quem duvidará, por exemplo, de que a geometria tenha uma infinidade de teoremas a serem expostos? São infinitas também na multidão e na delicadeza de seus princípios, pois quem não percebe que aqueles que se consideram últimos não se sustentam sozinhos, mas se apóiam em outros, os quais, tendo por sua vez outros por apoio, nunca são os últimos? Nós, porém, consideramos últimos aqueles princípios que a razão nos aponta como últimos, tal qual fazemos com as coisas materiais, em que, para nós, um ponto invisível é aquele que, por se achar mais longe de nossos sentidos, não pode ser percebido, embora continue divisível indefinidamente por sua própria natureza.
Desses dois infinitos da ciência, o infinitamente grande é o mais sensível; por isso nós o conhecemos imediatamente por inteiro. “Vou falar de tudo”, dizia Demócrito.
Porém, o infinitamente pequeno é muito pouco visível. A ele pretenderam chegar os filósofos, entretanto; e nisso é que tropeçaram todos. Isso é que deu azo a títulos tão freqüentes quanto estes: Do princípio das coisas, do princípio da filosofia e quejandos, tão pretensiosos e de efeito bem maior, embora não o pareça, do que esse outro que entra pelos olhos: De omni scibili.
Acreditamos muito naturalmente sermos mais capazes de alcançar o centro das coisas do que de abraçar-lhes a circunferência; a extensão visível do mundo ultrapassa-nos manifestamente; porém, como ultrapassamos as coisas pequenas, acreditamo-nos mais capazes de possuí-las; entretanto, não nos falta menos capacidade para chegar ao nada do que chegar ao todo; para um, como para outro, falta-nos uma capacidade infinita, e creio que quem tivesse compreendido os princípios últimos das coisas chegaria também a conhecer o infinito. Uma coisa depende da outra, e uma conduz à outra. Esses extremos se tocam, e se unem, à força de se afastarem, encontrando-se em Deus, e somente em Deus.
Conheçamos, pois, nossas forças; somos algo e não tudo; o que temos que ser priva-nos do conhecimento dos primeiros princípios que nascem do nada; e o pouco que somos nos impede a visão do infinito.
Nossa inteligência, entre as coisas inteligíveis, ocupa o mesmo lugar que o nosso corpo na magnitude da natureza.
Limitados em tudo, esse termo médio entre dois extremos encontra-se em todas as nossas forças. Nossos sentidos não percebem os extremos: um ruído demasiado forte nos ensurdece, demasiada luz nos deslumbra, demasiada distância ou demasiada proximidade impede-nos de ver, demasiada longitude ou demasiada concisão do discurso o obscurece, demasiada verdade nos assombra (sei de alguém que não pode compreender que quem de zero tira quatro fica zero); os primeiros princípios têm demasiada evidência para nós outros, demasiado prazer incomoda, demasiada consonância aborrece na música, e demasiado benefício irrita, pois queremos ter com que pagar a dívida: Beneficia eo usque laeta sunt dum videntur exsolvi posse; ubi multum ante venere, pro gratia odium redditur. (Os benefícios são agradáveis enquanto pensamos poder devolvê-los; além o reconhecimento se transforma em ódio - Tácito, citado por Montaigne, XXX, 8). Não sentimos nem o extremo calor nem o frio extremo; as qualidades excessivas são nossas inimigas, não as sentimos, sofremo-las. Demasiada juventude ou demasiada velhice tolhem o espírito; assim como demasiada ou insuficiente instrução. Em suma, as coisas extremas são para nós como se não existissem, não estamos dentro de suas proporções: escapam-nos ou lhes escapamos.
Eis o nosso estado verdadeiro; é o que nos torna incapazes de saber com segurança e de ignorar totalmente. Nadamos num meio termo vasto, sempre incertos e flutuantes, empurrados de um lado para o outro. Qualquer objeto a que pensemos apegar-nos vacila e nos abandona, e se o perseguirmos foge à perseguição. Escorrega-nos entre as mãos numa eterna fuga. Nada se detém por nós. É o estado que nos é natural e, no entanto, nenhum será mais contrário à nossa inclinação; ardemos de desejo por encontrar uma plataforma firme e uma base última e permanente para sobre ela edificar uma torre que se erga até o infinito; porém os alicerces ruem e a terra se abre até o abismo.
Não procuremos segurança e firmeza. Nossa razão é sempre iludida pela inconstância das aparências e nada pode fixar o finito entre os dois infinitos que o cercam e dele se afastam.
Creio que a concepção deste inevitável fará que o homem se conforme com o estado em que a natureza o colocou e o mantenha tranquilo. Esse termo médio que nos coube por destino, situa-se sempre entre os dois extremos, de modo que pouco nos importa tenha o homem maior ou menor inteligência das coisas. Se a tiver as verá apenas de um pouco mais alto. Mas não se achará sempre infinitamente afastado da meta, e a duração de nossa vida não o estará também, infinitamente, afastada da eternidade, embora dure dez anos mais?
Se tivermos em mente estes infinitos, todos os finitos serão iguais; e não vejo razão para assentar a imaginação em um deles e a preferência ao outro. A simples comparação entre nós e o infinito nos acabrunha.
Se o homem procurasse conhecer a si mesmo antes de mais nada, perceberia logo a que ponto é incapaz de alcançar outra coisa.
Como poderia uma parte conhecer o todo? Mas a parte pode ter, pelo menos, a ambição de conhecer as partes, as quais cabem dentro de suas próprias proporções. E como as partes do mundo têm sempre relações íntimas e intimamente se encadeiam, considero impossível compreender uma sem alcançar as outras, e sem penetrar o todo.
O homem, por exemplo, tem relações para durar, de movimento para viver, de elementos que o constituam, de alimentos e calor que o nutram, de ar para respirar; vê a luz, percebe os corpos; em suma, tudo se alia a ele próprio. Para conhecer o homem, portanto, mister se faz saber de onde vem, que precisa de ar para subsistir; e para conhecer o ar é necessário compreender donde provém essa sua relação com a vida do homem etc. A chama não subsiste sem o ar; o conhecimento de uma coisa, se liga, pois, ao conhecimento de outra. E como todas as coisas são causadoras e causadas, auxiliadoras e auxiliadas, mediatas e imediatas, e todas se acham presas por um vínculo natural e insensível que une as mais afastadas e diferentes, parece-me impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, bem como conhecer o todo sem entender particularmente as partes. (A eternidade das coisas, em si mesmas ou em Deus, deve assombrar a nossa ínfima duração. A imobilidade fixa e constante da natureza, em comparação com a transformação contínua que se verifica em nós, deve causar o mesmo efeito). E o que completa a nossa incapacidade de conhecer as coisas é o fato de serem simples em si enquanto nós somos complexos de natureza antagônicas e de gêneros diversos, alma e corpo. Pois é impossível que a parte raciocinante de nós mesmos não seja unicamente espiritual; e se pretenderem que somos tão somente corporais, mais afastarão ainda de nós o conhecimento das coisas, porquanto nada mais será inconcebível do que a matéria conhecer-se a si própria; não podemos conceber de que maneira se conheceria. Assim, se somos simplesmente materiais, nada podemos conhecer; e se somos compostos de espírito e matérias não podemos conhecer perfeitamente as coisas simples, espirituais ou corporais.
Donde a confusão generalizada entre os filósofos que misturam as idéias das coisas, falando espiritualmente das coisas corporais e corporalmente das coisas espirituais.
Dizem, ousadamente, que as coisas tendem a cair, que tendem para o centro, que fogem à sua destruição, que temem o vácuo, que têm inclinações, simpatias, antipatias, qualidades todas que somente ao espírito pertencem. E, referindo-se ao espírito, consideram-no como se estivesse em determinada espaço, e lhe atribuem a capacidade de movimentar-se, coisas que pertencem apenas aos corpos. Em vez de recebermos a idéia pura das coisas, tingimo-la com nossas qualidades e impregnamos de nosso ser composto todas as coisas simples que contemplamos.
Que não há de supor, ao ver-nos juntar as coisas do espírito e do corpo, que tal mescla nos é mui compreensível? No entanto, é essa a coisa que menos se compreendemos. O homem é, em si mesmo, o objeto mais prodigioso da natureza; pois não se pode conceber nem o que é corpo, nem, menos ainda, o que é espírito, e, ainda menos, de que modo um corpo pode se unir a um espírito. Essa a sua dificuldade máxima, e, não obstante, a sua própria essência: Modus quo corporibus adhaerent spiritus comprehendi ab hominibus non potest, et hoc tamem home est. (A maneira por que se acha o espírito unido ao corpo não pode ser compreendida pelo homem, e, não obstante, é o homem. Santo Agostinho, citado por Montaigne).
Mas, para concluir a prova de nossa fraqueza, terminarei com estas duas considerações.
Quando penso na pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade anterior, no pequeno espaço que ocupa, fundido na imensidade dos espaços que ignora e que me ignoram, aterro-me e me assombro de ver-me aqui e não alhures, pois não há razão alguma para que esteja aqui e não alhures, agora e não em outro qualquer momento. Quem me colocou nessas condições? Por ordem e obra e necessidade de quem me foram designados esse lugar e esse momento?Memoria hospitis unius diei praetereuntis. (A lembrança de hóspede de um dia que passa. Sabedoria, V, 15).
Ante a cegueira e a miséria do homem, diante do universo mudo, do homem sem luz, abandonado a si mesmo e como que perdido nesse rincão do universo, sem consciência de quem o colocou aí, nem do que veio fazer, nem do que lhe acontecerá depois da morte, ante o homem incapaz de qualquer conhecimento, invade-me o terror e sinto-me como alguém que levassem, durante o sono, para uma ilha deserta, e espantosa, e aí despertasse ignorante de seu paradeiro e impossibilitado de evadir-se. E maravilho-me de que não se desespere alguém ante tão miserável estado. Vejo outras pessoas ao meu lado, aparentemente iguais; pergunto-lhes se se acham mais instruídas que eu, e me respondem pela negativa; no entanto, esses miseráveis extraviados se apegam aos prazeres que encontram em torno de si. Quanto a mim, não consigo afeiçoar-me a tais objetos e, considerando que no que vejo há mais aparência do que outra coisa, procuro descobrir se Deus não deixou algum sinal próprio.
O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora.
Quantos reinos nos ignoram!
Por que são limitados meus conhecimento, minha estatura, a duração de minha vida a cem anos e não a mil? Que motivos levaram a natureza a fazer-me assim, a escolher esse número em lugar de outro qualquer, desde que na infinidade dos números não há razões para tal preferência, nem nada que seja preferível a nada?

(Extraído de “Pensadores Franceses” da coleção Clássicos Jackson, volume XII. Tradução de J. Brito Broca e Wilson Lousada. Trecho da parte dois do livro póstumo “Pensamentos”)



Lançamentos:


Título: Turma da Mônica Jovem.
Autor: Maurício de Sousa
Sinopse
: Durante a montagem de uma peça teatral no Colégio do Limoeiro, a chegada de um garoto desconhecido agita a galera e provoca brigas, intrigas e muito ciúme além de ameaçar abalar uma antiga amizade. Editora Panini Comics. Preço: R$ 6,90.

Título: Cartas entre amigos – Sobre medos contemporâneos
Autor: Gabriel Chalita e Fábio de Melo
Sinopse:
Um dos livros mais aguardados do ano, traz reflexões sobre temas contemporâneos de grande interesse. O medo da morte, da solidão, do fracasso, da inveja, do envelhecimento, das paixões, da falta de sentido da vida. No formato de cartas entre dois grandes amigos, tais temas são tratados com sensibilidade pelos jovens autores mais celebrados do momento, duas lideranças incontestáveis das novas gerações: Gabriel Chalita e Padre Fábio de Melo. O livro resgata os valores do humanismo ao mesmo tempo que celebra a amizade de duas personalidades apaixonadas por filosofia, literatura e poesia. Ediouro. Preço: R$ 34,90.

Título: O segredo
Autor: Rhonda Byrne
Sinopse:
Você tem nas mãos um grande segredo. Altamente cobiçado, ele foi transmitido ao longo dos tempos, ocultado, perdido, roubado e comprado por grandes somas de dinheiro. Este segredo secular foi compreendido por alguns dos maiores gênios da História: Platão, Galileu, Beethoven, Edison, Einstein, assim como outros inventores, teólogos, cientistas e grandes pensadores. Agora o segredo está sendo revelado ao mundo. Ediouro. Preço: R$ 34,90.


Título: Minutos de sabedoria (simples)
Autor: Carlos Torres Pastorino
Sinopse:
Este best-seller de auto-ajuda apresenta reflexões, pensamentos, conselhos curtos e penetrantes que auxiliam nas horas difíceis e, nos momentos leves, alegram e elevam a alma. Editora Vozes. Preço: R$ 9,90.

Título: Recomeços – 26 pessoas contam como lidaram com a mudança em suas vidas
Autor: Lina de Albuquerque
Sinopse:
Recomeçar é um dos mais corriqueiros e complexos atos humanos. Recomeça-se o dia, naturalmente, a cada despertar. Recomeça-se uma nova carreira quando a antiga profissão não mais satisfaz. Recomeça-se um novo relacionamento, depois que o anterior perdeu o sentido. Recomeça-se a viver, depois de um diagnóstico, uma fatalidade, um acidente, uma perda que abalou um mundo que não será como antes. Vinte e seis pessoas, entre homens e mulheres, famosos e anônimos, ricos e humildes, empreendedores e funcionários, artistas e religiosos, músicos e jornalistas , revelam como lidaram com a mudança em suas vidas. São depoimentos de uma franqueza desconcertante, sempre emocionantes. Editora Saraiva. Preço: R$ 29,00.

Título: Vidas secas
Autor: Graciliano Ramos
Sinopse:
Relançamento de um dos clássicos da Literatura Brasileira que tem como base a 2ª edição do romance, com as últimas correções feitas por Graciliano Ramos. Os originais estão no Fundo Graciliano Ramos, Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Este projeto de reedição das obras do consagrado escritor é supervisionado por Wander Melo Miranda, professor titular de Teoria da Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais. Editora Record. Preço: R$ 29,00.

Título: Antologia Poética
Autor: Vinicius de Moraes
Sinopse:
Livro que reúne as produções de um dos autores que mais influenciaram a cultura brasileira do século XX, tanto na Literatura, quanto na música popular. Relançamento exclusivo para o Vestibular 2010, baseado na edição organizada pelo próprio Vinícius em 1960. Editora Companhia das Letras. Preço: R$ 21,50.

Dicas do Editor

São as seguintes as dicas de leitura do Editor para esta semana:

1. Inocência – Visconde de Taunay - Romance.
2. Rosa, rosa de amor – Vicente de Carvalho - Poesia.
3. O escravocrata – Urbano Duarte – Peça teatral.
4. Uma tragédia no Amazonas – Raul Pompéia – Romance.
5. Mateus e Mateusa – Qorpo Santo – Peça teatral.
6. As maluquices do Imperador – Paulo Setúbal – Romance.
7. O movimento da independência – 1821-1822 – Oliveira Lima - História.
8. Bruzundangas – Lima Barreto - Romance.
9. A intrusa – Júlia Lopes de Almeida - Romance.
10. História da Literatura Brasileira – José Veríssimo - História.



Livros mais vendidos

(Semana de 27 de maio a 3 de junho de 2009)

Fonte: Revista Veja

FICÇÃO

1. A Cabana – William Young [ 1 38] SEXTANTE
2. Lua Nova – Stephenie Meyer [ 3 33] INTRÍNSECA
3. Crepúsculo – Stephenie Meyer [ 2 52#] INTRÍNSECA
4. Eclipse – Stephenie Meyer [ 4 19] INTRÍNSECA
5. Anjos e demônios – Dan Brown – [ 6 112#] - SEXTANTE
6. Leite Derramado – Chico Buarque [ 5 9] COMPANHIA DAS LETRAS
7. Os homens que não amavam as mulheres – Stieg Larsson – [ 0 3#] – COMPANHIA DAS LETRAS
8. O vendedor de sonhos e a revolução dos anônimos – Augusto Cury [ 8 6] ACADEMIA DA INTELIGÊNCIA
9. O vendedor de sonhos – Augusto Cury [ 7 46] ACADEMIA DA INTELIGÊNCIA
10. A cidade do sol – Khaled Hossein – [ 10 63#] – NOVA FRONTEIRA
11. O caçador de pipas – Khaled Hosseini [ 0 165#] – NOVA FRONTEIRA
12. Formaturas infernais – Várias autoras – GALERA RECORD
13. A menina que roubava livros – Markus Susak – INTRÍNSECA
14. A menina que brincava com fogo – Stieg Larsson – COMPANHIA DAS LETRAS
15. O pequeno príncipe – Antoine de Saint-Exupéry – AGIR
16. O menino de pijama listrado – John Boyne – COMPANHIA DAS LETRAS
17. O outro – Bernhard Schlink - RECORD
18. Divã – Martha Medeiros – OBJETIVA
19. Contos completos – Virgínia Woolf – COSAC NAIFY
20. Fortaleza digital – Dan Brown - SEXTANTE

NÃO- FICÇÃO

1. Comer, rezar, amar – Elizabeth Gilbert [ 2 60] OBJETIVA
2. Mentes perigosas – Ana Beatriz Barbosa Silva [ 1 27#] FONTANAR
3. Marley e eu – John Grogan [ 3 136#] PRESTÍGIO
4. Uma breve história do mundo – Geoffrey Blainey [ 4 70] - FUNDAMENTO
5. Uma breve história do século XX – Geoffrey Blainey [ 6 27] - FUNDAMENTO
6. 1808 – Laurentino Gomes [ 5 85] PLANETA
7. O crime do restaurante chinês – Boris Fausto [ 9 3#] – COMPANHIA DAS LETRAS
8. Gomorra – Roberto Saviano [ 8 21] BERTRAND BRASIL
9. Dewey – Vicki Myron e Bret Witter – [ 0 20#] – GLOBO
10. Maioridade penal – Rogério Ceni e André Pilhal [ 10 7] PANDA
11. 1001 filmes para ver antes de morrer – Steven Jay Schneider – SEXTANTE
12. Fazendo as malas – Danuza Leão – COMPANHIA DAS LETRAS
13. O castelo de vidro – Jeannette Walls – NOVA FRONTEIRA
14. Filha, mãe, avó e puta – Gabriela Leite - OBJETIVA
15. Fora de série – Malcolm Gladwell – SEXTANTE
16. O diário de Anne Frank – Anne Frank - RECORD
17. Marilyn e JFK – François Forestier - OBJETIVA
18. 1001 vinhos para beber antes de morrer – Neil Beckett - SEXTANTE
19. O tempo e o cão – Maria Rita Kehl - BOITEMPO
20. O livro perigoso para garotos – Conn Iggulden e Hal Iggulden – GALERA RECORD

AUTO-AJUDA E ESOTERISMO

1. Cartas entre amigos – Fábio de Melo e Gabriel Chalita – [ 1 3] - EDIOURO
2. Quem Me Roubou de Mim? – Fábio de Melo [ 2 27] CANÇÃO NOVA
3. O Código da Inteligência – Augusto Cury [ 3 28] THOMAS NELSON BRASIL
4. Vencendo o passado – Zibia Gasparetto [ 4 25] VIDA E CONSCIÊNCIA
5. Gêmeas - não se separa o que a vida juntou – Mônica de Castro – [ 7 3] - VIDA & CONSCIÊNCIA
6. O Monge e o Executivo – James Hunter [ 5 224] SEXTANTE
7. A cabeça de Steve Jobs – Leander Kahney [ 6 16#] AGIR
8. Casais inteligentes enriquecem juntos – Gustavo Cerbasi – [ 9 155# ] – GENTE
9. A Arte da Guerra – Sun Tzu – [ 0 61#] – VÁRIAS EDITORAS
10. O ciclo da auto-sabotagem – Stanley Rosner e Patrícia Hermes [ 10 6#] BEST SELLER
11. A lei da atração – Michael J. Losier – NOVA FRONTEIRA
12. O segredo – Rhonda Byrne – EDIOURO
13. Nunca desista de seus sonhos – Augusto Cury - SEXTANTE
14. Quando o sofrimento bater à sua porta – Fábio de Melo – CANÇÃO NOVA
15. Os segredos da mente milionária – T. Hary Eker - SEXTANTE
16. Ser como o rio que flui – Paulo Coelho - AGIR
17. Espíritos entre nós – James Van Praagh – SEXTANTE
18. Investimentos inteligentes – Gustavo Cerbasi – THOMAS NELSON BRASIL
19. Superdicas para se tornar um verdadeiro líder – Paulo Gaudêncio - SARAIVA
20. Os 7 hábitos das pessoas altamente eficazes – Stephen Covey – BEST SELLER

[AB#] – A] posição do livro na semana anterior
B] há quantas semanas o livro aparece na lista
#] semanas não consecutivas

Fontes: Balneário Camboriú: Livrarias Catarinense; Belém: Laselva; Belo Horizonte: Laselva, Leitura; Betim: Leitura; Blumenau: Livrarias Catarinense; Brasília: Cultura, Fnac, Laselva, Leitura, Nobel, Saraiva, Siciliano; Campinas: Cultura, Fnac, Laselva, Siciliano; Campo Grande: Leitura; Caxias do Sul: Siciliano; Curitiba: Fnac, Laselva, Livrarias Curitiba, Saraiva, Siciliano; Florianópolis: Laselva, Livrarias Catarinense, Siciliano; Fortaleza: Laselva, Siciliano; Foz do Iguaçu: Laselva; Goiânia: Leitura, Saraiva, Siciliano; Governador Valadares: Leitura; Ipatinga: Leitura; João Pessoa: Siciliano; Joinville: Livrarias Curitiba; Juiz de Fora: Leitura; Jundiaí: Siciliano; Londrina: Livrarias Porto; Maceió: Laselva; Mogi das Cruzes: Siciliano; Mossoró: Siciliano; Natal: Siciliano; Navegantes: Laselva; Niterói: Siciliano; Petrópolis: Nobel; Piracicaba: Nobel; Porto Alegre: Fnac, Cultura, Livrarias Porto, Saraiva, Siciliano; Recife: Cultura, Laselva, Saraiva; Ribeirão Preto: Paraler, Siciliano; Rio Claro: Siciliano; Rio de Janeiro: Argumento, Fnac, Laselva, Saraiva, Siciliano, Travessa; Salvador: Saraiva, Siciliano; Santa Bárbara d'Oeste: Nobel; Santo André: Siciliano; Santos: Siciliano; São José dos Campos: Siciliano; São Paulo: Cultura, Fnac, Laselva, Livrarias Curitiba, Livraria da Vila, Martins Fontes, Nobel, Saraiva, Siciliano; São Vicente: Siciliano; Sorocaba: Siciliano; Uberlândia: Siciliano; Vila Velha: Siciliano; Vitória: Laselva, Leitura, Siciliano; internet: Cultura, Fnac, Laselva, Leitura, Nobel, Saraiva, Siciliano

sábado, 30 de maio de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Distinção dos gêneros literários.

Coluna Jornalista do Sertão – Seu Pedro, crônica “Os barulhentos seres humanos”.

Coluna Porta Aberta – Emilson Pedro Zorzi, poema “Ansiedade”.

Coluna Porta Aberta – Vanessa C. Vaz, crônica “Café de que sabor?”.

Coluna Porta Aberta – Ivan Melz – conto, “Teoria Literária”.

Coluna Porta aberta – Luís Delcides R. Silva, crônica “Cenas de uma segunda-feira”.

Obs.: Se você for jornalista, atuar em qualquer área de Comunicação, ou for estudante dessas disciplinas e queira participar deste espaço, encaminhe seus textos para o editor do Literário: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Distinção de gêneros literários

A caracterização dos diversos gêneros literários não é tão fácil, direta e imediata como os leigos em literatura podem pensar. Há muito texto que confunde a cabeça do editor. Por exemplo, há contos que têm quase todas as características de crônicas (e vice-versa) e, no entanto, não podem ser caracterizados como tal. Há crônicas que soam como poemas de versos livres e poemas que ninguém estranharia se fossem definidos como crônicas. E assim por diante.
“E isso importa?”, perguntarão os leitores. Aos escritores, na maioria das vezes, não. O que lhes compete, é passarem determinadas mensagens, sem se importar de que maneira. Mas para o editor diligente e metódico, que tem necessidade de caracterizar o que edita, com rigor e precisão, isso tem muita importância.
O critério que adoto nesses casos (um tanto aleatório, é verdade) é o de definir, por exemplo, pequenas histórias “verídicas”, narradas pelo próprio protagonista, como crônica. Para mim, conto é ficção pura e fim de papo.
Outro gênero que causa confusão é o ensaio. Seus textos, via de regra, são livres e consistem de reflexões pessoais do autor, que tanto podem ser filosóficas, quanto literárias, comportamentais, psicológicas etc. Podem ser, até mesmo, religiosas. Mas quando quem escreve um ensaio passa a narrar fatos e circunstâncias da sua vida, tudo muda de figura. O texto deixa de ser desse gênero para se transformar em autobiografia.
O ensaio, quando bem-escrito, e quando o escritor tem vasta cultura, imensa experiência e sabe transmiti-las com clareza, precisão e inteligência, tende a ser dos mais úteis e proveitosos ao leitor. Pena que sempre tenhamos contado com tão poucos ensaístas, tanto no passado, quanto, e principalmente, no presente. Dá para contá-los praticamente nos dedos das duas mãos, tamanha é sua escassez.
Vários outros gêneros causam confusão na sua caracterização. A novela é um deles. Algumas você fica sem saber se devem, mesmo, ter esse “rótulo” ou serem consideradas um conto mais extenso ou um romance mais curto. Voltarei, com certeza, oportunamente ao assunto.

Boa leitura.

O Editor.



Os barulhentos seres humanos


* Seu Pedro

Ainda pequeno fui ensinado por um professor – isto no tempo em que havia professores dedicados a nos ensinar além do que havia no livro – que no meio-ambiente os sons são inevitáveis, até porque existem animais que se guiam pelos ruídos, até por barulhos criados por eles próprios. O homem também. Eu, dentro de uma densa floresta, saberei que estou próximo a uma bela cachoeira por ouvir o som das águas descendo pelas encostas, e “estourando” na queda livre sobre outras águas que caíram antes.

Estou dizendo de som e não de barulho. Há uma diferença, embora entrem pelo mesmo buraco do ouvido. Sobre o segundo, ainda tonto de sono, passadas as quatro horas de um dia domingo, dia de descansar, na madorna, sonhei que estava visitando o Rio de Janeiro e sendo recepcionado por alta música e uma troca de tiros entre policiais e bandidos! Apalpei meu corpo. E, além de não ter nele alojada nenhuma bala perdida, estava vestido com o pijama surrado do noite a noite.

Já acordado, percebi que os pipocos continuavam, e que vinham dos foguetes de um grupo que trazia consigo a banda tocando dobrados e amassados. No interior, banda de músicas é chamada de “furiosa”. Mas furioso estava eu. Talvez por isto eu tenha sonhado que estava sendo tão bem recebido na minha ex-Cidade Maravilhosa, que entrego à saudade. Ali vivi as maravilhosas adolescência e juventude.

Mas lá estava eu com cara de pinico amassado, esperando a banda passar e, pela janela, olhando uma dezena de outras caras sonolentas fazendo alvorada para a festa da santa, que só começaria à noite. Perecem-me que os foguetes são espocados nessas caminhadas da madruga para encobrir o som de trombone dos humanos que, vez ou outra, fazem “pruummm”. E eu só gostaria de, naquele momento, continuar dormindo. Mas com tanto barulho era impossível.

Que diferença um foguetório faz? A minha fé não aumenta e nem diminui. O que nos faz crescer no cristianismo é o respeito pelo próximo, inclusive de deixá-lo dormir. Mas assim como para certos animais é preciso que haja o barulho, que lhes dê a idéia do caminho certo, para certos homens não seria diferente. Eles precisam alvorecer com barulho, fazerem bastante gritaria nos leilões das festas, para que tenham a idéia de que acharam o caminho, para eles em um céu bem distante.

(*) Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi, Bahia.



Ansiedade

* Emilson Pedro Zorzi

Ansiedade crua
Vinda de longe
Rasteira
Em galope
heras
que havia esquecido

Prata de lei
Que vale quem tem
Despertador de ecos
E becos passados


* Poeta e pintor de Jundiaí/SP

Café de que sabor?

* Por Vanessa C. Vaz


Em um bar...
- Por favor, um café?
- Café de que sabor?
- Como assim de que sabor?
- Hortelã, baunilha ou canela?
- Moça, você não está me entendendo, eu quero apenas um café.
- Pois não. De que sabor?
- Eu quero um café sabor café.
- Desculpe, mas só temos sabor hortelã, baunilha e canela.
- Então, me vê um capuccino.
- Capuccino de que sabor?
- Ora, como de que sabor?
- Chocolate, canela ou baunilha?
- Eu quero um capuccino sabor capuccino. O tradicional.
- O tradicional acabou. Só temos o sabor chocolate, canela e baunilha. Então, vai querer?
- Olha, esquece o capuccino e me traz um leite, por favor.
- Pois não. Leite de que sabor?
- Ora essa, você está de gozação comigo?
- Não senhor.
- Então, porque pergunta "leite de que sabor?"
- Para saber qual o senhor vai querer. Se é o de morango, chocolate ou coco.
- Eu não acredito que estou escutando isso.
- Se quiser eu posso repetir: morango, choco...
- Não, por favor. Pare! Eu já escutei. "Morango, chocolate ou coco?" (tom irônico)
- Então, qual o senhor vai querer?
- Olha moça. Tudo que eu queria era tomar um café sabor café. Ou um capuccino sabor capuccino. Ou então um leite sabor leite. Será que não existe aqui uma bebida que não tenha sabor nenhum, só o gosto dela mesma?
- Sim. Temos água.
- Então me traz um copo da água, por favor.
- Com gás ou sem gás?
- Sem gás, claro.
- Desculpa, mas só temos com gás. Vai querer?
- Não. Deixa para lá.
- Mais alguma coisa, senhor?
- Sim. Uma informação. Onde fica o próximo bar?
Alguns minutos depois...
- Um café, por favor.
- Pois não. Café de que sabor?

* Jornalista

Teoria literária

* Por Ivan Melz


- Queria ter escrito um livro...
- Mas você escreveu vários!
- Não! Queria ter escrito um livro definitivo, um livro em que não houvesse uma só palavra fora do lugar, uma obra-prima.
- Mas você escreveu livros bons! Não deve se arrepender do que não fez. Orgulhe-se do que conseguiu construir ao longo da vida: uma sólida carreira literária.
- Bons livros?! Aquilo eram pastiches, coisas de pouco significado literário, mas com um certo valor comercial...
- Não fale assim, pois está sendo injusto consigo mesmo; além do mais, isso não tem mais importância.
- Como não? É sobre minha vida que estou falando! Tem importância, sim!
- Tá bom, tá bom! Sempre o mesmo ranzinza, até o fim! Chegou a pensar como seria essa história? Conseguiu começá-la.
- Sim, sim, várias vezes, mas nunca a concluí. Cheguei a escrever mais de 200 páginas, mas acabei emperrando num ponto da trama em que não pude sair.
- E sobre o que era?
- Sobre um homem, na verdade, um rapaz de 20 e poucos anos, inteligente, mas totalmente inábil, que não consegue progredir na vida por estar preso a uma série de problemas e circunstâncias que o impedem de realizar o seu sonho.
- Qual é o sonho dele?
- Ser escritor!
- Ah... ser escritor! Acho que conheci um rapaz assim uma vez; mas, que eu saiba, ele realizou seu sonho e se tornou um escritor!
- Talvez você esteja certa, em parte, mas este jovem, apesar de ter alcançado o que desejara, também pode ter se frustrado por ter ficado bem aquém do que imaginara inicialmente para si!
- É, pode ser.
- O que mais vi na vida foram homens frustrados, incompletos, por destruírem os seus sonhos ou serem destruídos por eles, por isso parei de sonhar antes dos 30.
- A quem está tentando enganar? Nunca deixou de sonhar e não foi nenhum desses homens...
- Fui, sim. Não existe uma terceira espécie de homens. Minto, existe sim: os que são pequenos demais em comparação aos sonhos que tiveram e nunca os alcançaram!
- Sei... mas e o contrário não é possível?
- Como assim o contrário?
- Homens grandiosos que, por opção ou falta de oportunidade, tiveram vidas medíocres, e se resignaram com mundos pequenos desprovidos de sonhos!
- Ainda não entendi.
- Não acha possível que homens de grande capacidade se contentaram com uma vida comum, sem sobressaltos, com pouco dinheiro e vivendo, quase sempre, mal por saberem que realizar seus projetos ou alcançar a glória em nada lhes ia diminuir o tormento de viver.
- Hum... me dê um exemplo?
- Sei lá... Fernando Pessoa, por exemplo! Lima Barreto, Kafka! E outros que não me lembro agora.
- Sim, em termos de literatura, talvez. Mas isso nunca me passou pela cabeça; você pode ter razão! Apesar deles serem reconhecidos postumamente tiveram vidas bem difíceis; aliás, pra eles, sobreviver ao que passaram já foi um grande feito! Não por acaso morreram relativamente jovens.
- Sem dúvida, mas a posteridade lhes fez justiça...
- Nunca havia pensado nisso antes. Obrigado por me trazer um pouco de luz neste momento, pena que não tenho tempo para reelaborar minha teoria sobre os homens e incluir nela mais uma espécie. Devíamos ter tido esta conversa antes, há uns 30 anos pelo menos...
- Sempre o mesmo engraçadinho! Mas fale mais sobre o livro que não chegou a terminar.
- Bem, a história é narrada em primeira pessoa, pelo jovem desajustado que lhe falei, e começa após a morte de seu melhor amigo...
- Por que você tem sempre que matar alguém em suas histórias?! Nunca entendi essa sua fixação mórbida!
- Ora, e por que não mataria? Os personagens existem para que façamos com eles o que não podemos fazer com as pessoas comuns...
- Que horror! Só você mesmo pra dizer uma coisa dessas nesta situação...
- Tá bom, vou tentar melhorar um pouco. Nunca acreditei em histórias que não terminassem tragicamente com a morte de um personagem ou que, ao longo dela, não tivessem pelo menos uma morte! Desde quando comecei a ler, as histórias sem morte me pareciam coisas infantis como os contos de fadas. Considero aquela coisa de “...e viveram felizes para sempre” abominável, o pior dos embustes, afinal, a vida não é assim!
- Então, em todas suas histórias, matou seus personagens para se sentir uma espécie de deus que lhes concedia a vida, mas também se dava ao direito de tirá-la quando bem entendesse!
- Credo! Agora a horrorosa foi você...
- Por que horrorosa?!
- Me sentir um deus para poder tirar a vida de meus personagens que idéia! Parece coisa de jornalista que leu a orelha de vários livros de um autor para depois entrevistá-lo...
- Tá bom, não precisa me ofender.
- Não queria lhe ofender. Só queria que percebesse o absurdo que disse. Se os escritores, digo os grandes, claro, escrevessem apenas com o objetivo de se sentirem deuses, para que pudessem matar os seus personagens quando lhes conviesse, deveriam estar todos presos num manicômio penitenciário ou figurarem numa galeria com os piores facínoras que se tem notícia na História!
- Que exagero...
- É sério! Digo isso porque nunca conheci um escritor ou literato, uma pessoa que vivesse intensamente a literatura, que não descobrisse num único dia de sua existência pelo menos um arquétipo literário.
- Meu Deus! E o que isso tem a ver com o que a gente está falando? Crimes, assassinatos...
- Ora, minha cara, faz todo sentido! Se imaginarmos, como você disse, que todo escritor escreve apenas para se sentir um deus – para ter direito sobre a vida e a morte de personagens de ficção – e que, por infelicidade, no mundo real, encontrasse alguém com os contornos psicológicos e físicos de um dos personagens mais pérfidos criados pela literatura, seria tentado a praticar justiça com as próprias mãos! Eu mesmo, se isto fosse possível, já poderia ter cometido pelo menos dois assassinatos: um contra um tipo intrigante como Iago, de Shakespeare, e outro, ainda mais canalha e manipulador, que lembrava muito Ivã Karamazov, de Dostoievski!
- Mas você mesmo me disse uma vez que personagens não têm psique! Como seriam capazes de saltar das páginas de um livro para a vida real?
- Pra você ver o quanto é absurda esta idéia de que os escritores escrevem para se sentirem deuses!
- Desisto, é impossível discutir com você! Esquece, vamos mudar de assunto! Como se sente?
- Estou ficando com sono, cansado!
- O remédio deve estar começando a fazer efeito!
- Sim, deve... Obrigado por ter feito isso por mim!
- Não precisa agradecer!
- Posso lhe pedir um favor?
- Claro!
- Descreva pra mim este quarto onde estamos?
- Bem, não sou muito boa nisso!
- Tente pelo menos...
- Bem, ele não é muito grande. É retangular, deve ter três metros por cinco, mas parece enorme. Nele só há a cama e o criado-mudo e, sobre este, há uma garrafa com água e três cartelas de remédios espalhadas.
- E a janela fica onde?
- Fica bem na sua frente, aos pés da cama!
- Não diga isso!
- Não dizer o quê?
- Pés da cama! Faz tão pouco tempo que perdi meus pés; sinto saudades deles assim como das minhas pernas...
- Desculpe...
- Não foi nada, continue a descrição, por favor!
- Falta só falar da cortina!
- Como ela é?
- Branca e de plástico e, de tempos em tempos, flutua quando a brisa entra pela janela!
- Que cena maravilhosa! E o dia como está?
- Faz um dia bonito e morno de primavera, mas vejo umas nuvens escuras se formando no horizonte. Deve chover no final da tarde como tem acontecido por estes dias!
- Me parece um dia perfeito para morrer! Posso lhe pedir outro favor?
- Sim...
- Seu marido está aí?
- Está me esperando lá fora!
- Ótimo!
- Por quê?
- Queria que você me beijasse!
- Não precisava pedir, já ia fazer isso, bobo.
- Gostei, mas não era um beijo na testa que eu queria.
- Ah, não?! Então onde era?
- Estou lembrando de quando nos conhecemos, se pudesse, queria que fosse na boca.
- ...
- Agora posso morrer feliz!
- Não fale assim! Você não é um personagem de romance de terceira categoria pra dizer essas besteiras!
- Estou cada vez mais cansado, quase não sinto o que sobrou do meu corpo...
- É o remédio que já está no sistema nervoso central, daqui a pouco estará terminado...
- Sabe de uma coisa?
- O quê?!
- Sei porque não concluí minha história. Faltava um final perfeito para o jovem que queria ser escritor.
- Deixe pra lá! Pensar nisto só vai lhe trazer ansiedade.
- É que acabo de imaginar o desfecho da história: termina com ele velho, cego, sem as pernas, corroído pela diabete, numa bela tarde de primavera, num leito de hospital, conversando com uma antiga namorada que o ajuda a morrer e não derrama uma lágrima como ele havia lhe pedido!
- Impossível!
- Impossível, o quê?!
- Este final! Você disse que escreveu a história em primeira pessoa; se ela terminar assim ficará inverossímil!
- Foi por isso que não consegui terminá-la! Deveria tê-la escrito em terceira pessoa!
- Posso fazer mais alguma coisa por você?
-Me dê mais uma dose do remédio; não quero estar vivo quando sair por aquela porta!

*Jornalista e escritor

Cenas de uma segunda-feira

*Por Luís Delcides R. Silva

Segunda-feira à tarde, um vendaval, chuva rápida e intensa e um cochilo. Depois do temporal, o céu se abriu e segui o meu caminho até a parada de ônibus da Avenida Sapopemba.

Vários ônibus passavam pela via. Uma mulher nordestina, falante, dava broncas no seu filho para que prestasse atenção se o ônibus estava chegando. .Logo, às 15h30 chega o coletivo que esperava: metrô Carrão.

Trânsito livre durante o trajeto, poucas paradas. Às 16h15 estava no terminal de ônibus da estação Carrão e segui até a plataforma do metrô. Ao embarcar no trem, foi bem rápido até a Barra Funda.

A estação final do lado oeste da linha vermelha é a mais movimentada. Os meus passos estavam apressados para chegar pontualmente à consulta marcada com a minha terapeuta, mas era gente que escorria pelas ladeiras e passarelas dos arredores da estação.

Após passar pelas belas ruas das Perdizes, chego bem no horário marcado, 16h55, para a consulta. Lá é o meu espaço, o lugar onde me alimento para encarar a minha vida tão ativa e intensa que levo.

Primeiro ato

18h00. A tardinha cai e a luz da aurora resplandece sobre as Perdizes. Andar a pé pela Rua Cardoso de Almeida é mais rápido do que os carros e ônibus que circulavam pela via. Uma passadinha na padaria, na esquina com a Candido Espinheira, para um lanchinho rápido e seguir até a faculdade.

Ao entrar na estação Barra Funda, vejo pessoas cansadas, outras correndo para chegar à faculdade, entrar, ver o que acontece e assinar a lista e ir embora. Eu seguia em direção ao Paraíso. As plataformas da estação estavam lotadas de pessoas, gente que escorria gente, que encostava pelas laterais das escadas e das paredes.

O trem chega. Entro junto com os outros passageiros e sigo até a Sé. Ao desembarcar na estação, que se encontra com a linha azul, sigo para a plataforma sentido Jabaquara. Ao embarcar sigo até a estação Vergueiro e ando por aquelas ruas escuras e estranhas da Aclimação em direção à faculdade.

Segundo ato

Volto para a Zona Leste, cansado. O sono vinha mais forte e a indisposição era grande. Restava apenas a vontade imensa de chegar logo ao lar e nada mais.

Ao entrar no ônibus nº 44170 do Consórcio Leste 4, encontro um "pai de primeira viagem", com seus três filhos. Todo atrapalhado, não sabia nem pegar as crianças no colo. Havia um menininho que, em toda parada que o coletivo fazia para o desembarque de passageiros, descia os degraus da saída.

O pai exclamava: "Fulano, não é agora!" e o menino, ansioso, falava: "Tô cansado, pai.". O ônibus seguia viagem até entrar na Avenida Mateo Bei e fazer a parada na altura do 1.100, em frente ao banco Itaú.

Quando o coletivo faz a parada e o condutor abre a porta O chefe de família desce primeiro, junto com os meninos pequenos. A irmãzinha mais velha descia no momento em que, repentinamente, a porta se fechou e ela começou a chorar. O pai bate na porta do veículo e o operador imediatamente abre a porta para que a garota faça o desembarque.

O motorista da cabine dizia o seguinte para a cobradora: "Que pai é esse, colega! Como é que pode ele sair na frente e largar os filhos por último? Eu vi tudo aqui do espelho!(sic)"

Depois do fato, o veículo seguiu viagem e desci na primeira parada da Avenida Sapopemba, após o Largo de São Mateus. Segui meu caminho, escuro, sombrio e com muitos ritos de passagem em direção à minha casa

* Microempresário, estudante de jornalismo, escreve para o blog Casos Urbanos (www.luisdelcidess.blogspot.com) e é editor do Pauliceia do Jazz (www.pauliceiadojazz.blogspot.com)

sexta-feira, 29 de maio de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Grande desafio.

Coluna Mares interiores – Solange Sólon Borges, poema “Labirintos íntimos”.

Coluna No sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto “Ciúmes...”.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica “Dom Helder Câmara: 100 anos”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire – texto, “Pílulas literárias (VI)”.

Coluna Porta Aberta – João Alexandre Sartorelli, poema “A tua alma”

Obs.: Se você for jornalista, atuar em qualquer área de Comunicação, ou for estudante dessas disciplinas e queira participar deste espaço, encaminhe seus textos para o editor do Literário: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Grande desafio

Muitos escritores consideram a redação de um romance como o grande desafio de suas vidas. Às vezes, têm, há anos, uma boa história na cabeça e não sabem como desenvolvê-la. Entendem que colocá-la em forma de conto, ou de novela, seria um desperdício. Há os que arregaçam as mangas e partem para a luta. Às vezes conseguem concluir o romance, publicá-lo e vê-lo se transformar em sucesso de vendas. Outras vezes, no entanto... desistem no meio do caminho, desanimados diante de tanto trabalho.
Salvo exceções, esse é um gênero que nos consome um tempo enorme. Dizem que Camilo Castelo Branco, premido por dívidas, para acalmar os credores, escreveu dois livros (e que livros!), “Amor de salvação” e “Amor de perdição” em irrisórias 48 horas. Se for verdade (e não há razões objetivas para colocar isso em dúvida), é um caso raro. Raríssimo.
Caso o escritor seja organizado e se dedique exclusivamente à literatura, o tempo médio para a redação de um romance é por volta de seis meses. Destaque-se que a parte mais árdua da tarefa não é a redação em si. É o processo que se segue a ela, ou seja, o da “des-redação” (perdoem o neologismo um tanto deselegante), do corte de tudo o que for supérfluo e desnecessário, da retirada da escória, da ganga bruta que impede o glorioso brilho do pequenino diamante. É bastante comum que as 600 páginas que você escreveu, em seu ímpeto criativo, se reduzam, ao cabo desse processo, a 200, se tanto. Quem já escreveu algum romance sabe do que estou falando.
Há métodos e métodos para contar uma boa história nos parâmetros desse gênero literário. Alguns, desenvolvem-na do começo ao fim, num só sopro, e só depois fazem as devidas correções, reparando as inevitáveis contradições, paradoxos e, sobretudo, absurdos. Não recomendo esse procedimento. É muito mais trabalhoso do que parece.
Da minha parte, prefiro agir como os bons arquitetos. Faço, antes, um “projeto” da história a ser narrada, ou seja, um bom resumo, como a planta de uma casa. Depois, vou desenvolvendo a construção, meticulosamente, parte por parte, do alicerce ao teto. Funciona.
Há quem se coloque na pele do principal personagem e faça toda a narrativa na primeira pessoa. Outros, porém, preferem assumir a postura quase que de uma divindade, que tudo vê (até os pensamentos e sentimentos alheios) e tudo sabe, e desenvolvem suas histórias dessa maneira.
Há quem faça a narrativa em linha reta, com começo, meio e fim. Por outro lado, há os que comecem as narrativas por onde deveria ser o final, retroagindo depois ao princípio, para desembocar exatamente onde começaram. Minha opção, com múltiplas variações, é pelo que alguns chamam de “ação em média ré”. Ou seja, a história começa com determinado acontecimento, volta ao princípio para explicá-lo, com a devida apresentação dos antecedentes e finda com as conseqüências.
Claro que um tema dessa natureza não se esgota em ligeiras considerações como estas. Exorto-o, todavia, escritor amigo, a aceitar o desafio que você, certamente, a cada dia, faz a si próprio e a pôr no papel aquela grande história que você tem, há anos, na cabeça. Mas não relute. Comece já, e boa sorte. Quem sabe você não será o best-seller da vez!!!

Boa leitura.

O Editor.



Dom Helder Câmara: 100 anos

* Urariano Mota

Nos 100 anos do nascimento de Dom Hélder Câmara, completados este ano, muitas homenagens surgiram. Pelo tom geral que vimos, quase fizeram dele uma nova Madre Teresa de Calcutá. Ainda que tenha nascido três antes da santa Madre Teresa, houve uma tendência de fazer de Dom Hélder uma ovelha, só mansidão e paz. Mas esta seria uma boa ocasião de rever os anos de ditadura no Brasil.

Quem foi jovem no Recife, no Brasil depois de 1964, sabe: Dom Hélder era o arcebispo vermelho, o perigoso comunista disfarçado em padre, um ilustre morto-vivo cujo nome e fotos não apareciam nos jornais, apesar de ter sido o brasileiro mais famoso no mundo, depois de Pelé. A sua prática sacerdotal, em um Recife que vinha da pedagogia de Paulo Freire, de governos socialistas, longe estava da simples pregação da caridade, ou de se mostrar superior ao povo miserável. Ao mesmo tempo, os comunistas jamais pensaram, sequer por hipótese, que o arcebispo fosse um dos seus. Havia encontros, havia diálogos entre suas políticas, com mais de um ponto de conflito.

Lembro de Dom Hélder Câmara em duas ocasiões. Na primeira delas, nos anos 70, a repressão política havia aprisionado vários auxiliares dele, poucos anos depois de haver assassinado o Padre Henrique, auxiliar direto do seu trabalho na Arquidiocese. Nessa ocasião, em que o vi pela primeira vez, pude notar um dom desse padre poucas vezes mencionado. Estávamos concentrados, reunidos em frente ao Palácio dos Manguinhos, para um protesto. Então Dom Hélder Câmara nos dirigiu uma fala. E vi, ouvi e notei: Dom Hélder era um orador, um excepcional orador. Franzino, baixinho, havia um cérebro de pensador na sua voz, um talento de ator que o fazia crescer com uma dicção a acentuar as palavras conforme o seu desejo. Ele fazia pausas no discurso, intervalos cujo único fim era imprimir o seu pensamento em nossos espíritos.

No discurso vivo de Dom Hélder havia uma chama calorosa, que os crentes e ele próprio diriam ser um fogo do Espírito Santo, que tomava conta do seu rosto, da sua expressão, de suas palavras. Com os olhos grados, sem gritar, ele comovia a todos, e para comover não recuava dos motivos mais piegas. Lembro que para falar do afeto que nos unia aos presos, da nossa comum preocupação, para ressaltar que éramos solidários, ele fez com que todos cantassem o “Como vai você?”, de Antonio Marcos, que era sucesso na voz de Roberto Carlos. Confesso que até eu cantei, com a voz embargada.

Da segunda vez, eu não o vi, mas pude ouvi-lo e percebê-lo, no rádio. Quem já leu suas crônicas, que em boa parte foram reunidas no livro “Um olhar sobre a cidade”, entenderá o que vou dizer. Para mim, ele escrevia textos modelares de crônica radiofônica. Nessas crônicas há um escritor que deveria fazer corar de vergonha muito imortal da Academia Brasileira de Letras. Nelas Dom Hélder pega um motivo, um tema de aparência distante, e traz para o seu texto, com observações poéticas e líricas, que se aplicam ao cotidiano de todos, intelectuais ou analfabetos, ateus ou cristãos. Para todos os públicos, valeria dizer. Leiam, melhor dizendo, ouçam “Flores murchas”. Vocês podem ouvir esse texto em http://www.domtotal.com/multimidia/audio_video_detalhes.php?mulId=29&mulArqId=78

Dom Helder pergunta: “O que fazer quando as flores murcham?”. E mais adiante, “Uma roseira já me perguntou se eu acredito que Deus ressuscitará também as flores...”, para concluir: “Os teólogos que me perdoem, se é teologicamente sem base o que vou dizer: eu não posso imaginar um céu sem flores”.

Todos nós, leitores ateus e ouvintes, nisso também acreditamos.

* Jornalista



Labirintos íntimos

* Por Solange Sólon Borges

O sol se pôs diante da tempestade iminente.
Lágrimas brotam da língua estrangeira da saudade que é fratura.
Palavras de ruptura alteram a biografia e criam grossas paredes
abrigando as catedrais vazias em meus dias exagerados.
O rio que desconhece agora as direções.
Música que cala, voz que não fala.
Amanheço infértil quando sementes morrem em seus vasos.

* Jornalista, dedica-se a diversos gêneros literários. Entre outras atividades, atua em alguns programas “O prefácio”, sobre livros e literatura. Um deles é o programa Comunique-se, levado ao ar pela TV interativa ALL TV (2003/2004). Apresentou, também, “Paisagem Feminina”, pela Rádio Gazeta AM (1999), além de crônicas diárias na Rádio Bandeirantes e na Rádio Gazeta — emissoras das quais foi redatora, repórter, locutora e editora.




Ciúmes

* Por Rodrigo Ramazzini

- Mas é bem capaz!
- O que foi?
- Tu ainda perguntas, Letícia?
- Lógico, Marcelo!
- Tu achas que eu vou sair contigo vestida deste jeito?
- E por que não?
- Tu só podes ter enlouquecido!
- Pára! Estou me achando tão linda...
- Linda até demais para o meu gosto!
- O decote desta minha blusa nova contornou certinho os meus seios. Ficaram lindos!
- Eles estão à venda?
- Por que está perguntando isso?
- Para estarem tão expostos assim, só podem estar à venda!
- Não começa, Marcelo!
- Mas é verdade!
- Como tu és bobo! Eu sou toda tua...
- Por isso mesmo que não precisa ficar se mostrando!
- O que é bonito é para se mostrar!
- Troca lá!
- Não vou trocar! Quer sair comigo é assim...
- Putz! Agora que eu vi...
- O que agora?
- Esqueceu a saia. Colocaste só o cinto.
- Meu Deus, Marcelo! Pára com isso...
- Não vou sair contigo assim... Pode trocar essa roupa!
- Era só o que me faltava! Vamos...
- Tu estás parecendo uma...
- Não completa a frase! Se não...
- Se não o quê?
- Vamos, Marcelo! Quer ir, vamos de uma vez...
- Contigo vestida deste jeito? Nem pensar!
- Eu vou sozinha nesta festa então!
- Tu tens noção que todos vão ficar te olhando vestida deste jeito?
- E daí?
- Meu Deus! E daí, tu ainda pergunta?
- Claro! Vamos de uma vez...
- Não quero mais ir.
- Vamos de uma vez! Deixa de bobagem. Sem cara de emburrado... Vamos!

Na festa

- Viu como tem gente vestida como eu, Marcelo? Olha aquela ali...
- Bah! Se vi...
- O que é isso?
- Isso o quê?
- Eu não acredito! Tu és muito cara de pau, hein?
- Ué! Por quê?
- Cuidando os peitos e as coxas daquela guria na minha frente. Eu não acredito!


- Eu não estava...
- Como não? Se eu vi...
- Olhei porque tu me mostraste... Só isso!
- Deixa de ser sem-vergonha, Marcelo! Tu já estavas cuidando ela...
- Deixa de ser boba!
- Vamos embora! Quero ir embora...
- Agora, não!
- Vamos embora!
- Não! Vamos ficar. Queria tanto vir... E “desemburra” essa cara!

* Jornalista e cronista




Pílulas Literárias - VI

* Eduardo Oliveira Freire


APARÊNCIA

A cortina almeja envolvê-lo, como o véu da noiva. Ela não sabe, mas ojovem tem mais experiência do que muito ancião por aí.

TRÁGICO

Coloca contra os seios a cabeça rachada do amado, enquanto ele observaa tudo de mãos dadas com a morte.

AMBROSIA

O amante a dissolveu.

* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural. Éaspirante a escritor.




A tua alma

* Por João Alexandre Sartorelli


A tua alma
Brilha:
A lua, a ilha.

A tua alma voa,
O teu riso
Ecoa.

* Analista de Sistemas por profissão e poeta por vocação

quinta-feira, 28 de maio de 2009


Leia nesta edição:

Editorial – Aposte no positivo.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica “Drops paternos”.

Coluna Do Fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Tarde demais - III”.

Coluna Lira de Sete Cordas – Talis Andrade, poema “Leviatã”.

Coluna Porta Aberta – Karina Monteiro – crônica, “Nada é por acaso”.

Coluna Porta Aberta – Paulo Sampaio, poema “Hoje o veneno”..

Obs.: Se você for jornalista, atuar em qualquer área de Comunicação, ou for estudante dessas disciplinas e queira participar deste espaço, encaminhe seus textos para o editor do Literário: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Aposte no positivo

A Literatura cismou, de uns tempos para cá, de querer competir com o jornalismo na descrição de taras, violências, desgraças e patifarias. Nesse quesito, porém, os escritores perdem, e de longe, para os jornalistas. A ficção é infinitamente menos fantástica do que a realidade.
Qual escritor, por exemplo – mesmo que se tratasse de um Edgar Alan Poe, “pai dos contos de terror e mistério” – conseguiria escrever histórias em que pais jogassem filhas de seis anos pela janela do sexto andar, por motivos banais? Ou em que filhas convencessem os namorados a trucidarem seus pais a pauladas quando estes estivessem dormindo? Ou em que mães jogassem seus bebês recém-nascidos, totalmente indefesos, em lagoas, para que morressem afogados, ou se descartassem deles em latas de lixo, como coisas imprestáveis? Nenhum!
Deixem, pois, esse desfile diário de aberrações, desgraças, violências, taras e patifarias de toda a sorte para os jornalistas, que têm nesses desvios comportamentais a sua matéria-prima. O desafio para os escritores é o de apostar no positivo. É valorizar a esperança, a fé, a alegria, o bom-humor, a felicidade e o amor. “Ah, mas temas como estes não vendem livros”, argumentarão alguns. “Ademais, ao abordá-los, é fácil de se resvalar para a pieguice”, acrescentarão, à guisa de explicação.
É verdade. Por isso, esse tipo de assunto é o desafio que o escritor realmente talentoso tem que aceitar. Escrever o que qualquer imbecil é capaz não é mérito algum. Mas conseguir abordar temas construtivos e nobres, sem resvalar para a alienação ou a pieguice, não é tarefa para qualquer amador. Só os que têm genuína vocação para a literatura conseguem.
Outro dia, ao ler uma excelente antologia poética, observei que por volta de 90% dos poemas falavam sobre morte, perdas, tristeza e desolação. É verdade que as metáforas eram belíssimas e as palavras adequadas. Mas eram textos tristes, desoladores, pungentes e desesperados. Por que esses poetas não apostam na vida, na esperança, na felicidade e no amor, em vez da decomposição, aflição e dor?
A morte é, possivelmente, a única (ou se não for, é uma das únicas) certeza que temos. Não há, pois, mérito algum em escrever sobre ela. Ademais, em vez de fazermos apologia dela, porque não valorizarmos o seu oposto, ou seja, a vida,.fenômeno provavelmente raríssimo na vastidão do universo (até aqui, parece existir apenas neste minúsculo planetazinha azul)? Pense nisso, amigo escritor. Não queira competir com os jornalistas em seara na qual eles levam nítida vantagem. Aposte no positivo. Exalte a vida! E faça sucesso!

Boa leitura.

O Editor.



Drops paternos

* Por Marcelo Seguassábia


Me corrija se estiver errado, mas tenho sentido você um tanto desiludido, mais cabisbaixo e indolente que o costume. Filho, não se deixe abater, você não tem motivos justificáveis para entregar a rapadura. Lembre-se daquele antiquíssimo ditado hindu, que o passar do tempo só reforça sua sabedoria e validade: “O espelho da vida é a sombra do infinito”. Nos momentos de desânimo e depressão, devemos nos agarrar ao bálsamo reconfortante destas palavras, que o seu padrinho, o palhaço Estripulia, repete religiosamente antes de subir ao palco. Sabe, me sinto muito mais à vontade em falar assim com você, por bilhetes. Como alguém que não se furta em dar o ar da graça, mas tem horror de parecer inconveniente ou arriscar um cafuné em hora imprópria. Você compreende, é meu estilo. Seu avô, o príncipe dos malabares, também era assim.



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Ainda tem um pouco de mingau de maizena na geladeira, dá uma esquentada no microondas quando chegar. Domadores de leões como você não costumam prescindir desta iguaria, tão rica em complexo B. Meu garoto, não tente achar tanto sentido nas coisas que te disse ontem, quando conversamos a sós no picadeiro. É só a minha visão pessoal, que pode ou não ser considerada, dependendo do conceito que você tenha de mim enquanto pai. Ser pai é fácil, basta um momento de inconsequência ou de esquecimento na hora do bem-bom. Quero que a minha autoridade sobre você seja aceita pelo que digo e faço, não pelo que represento na hierarquia familiar. O fato de ser mais velho não significa que seja mais sábio que você ou que tenha me tornado menos louco com o passar do tempo. É mais do que notória a minha fama de zureta, e é impossível que tanta gente esteja errada ao meu respeito. Portanto, siga meus conselhos, mas com uma certa reserva.



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Esfrie a cabeça, literalmente: caia n’água, pegue uma piscina. Já tive lampejos mirabolantes entre uma braçada e outra, vale tentar. Estar desorientado em questões vocacionais é normal em sua idade, comigo não foi diferente. Antes de optar de vez pelo trapézio, fui corretor de ações da malfadada Fazendas Reunidas Boi Gordo, me embrenhei alucinadamente na venda de jazigos para cães e até uma fabriqueta de troféus e medalhas já passou por minhas mãos. Em todas estas investidas admito ter quebrado a cara – o que, contrariando todas as óbvias expectativas, jamais aconteceu comigo sob a lona de um circo. É, meu filho, a vida tem dessas coisas. O que parece seguro esconde grandes ciladas, e vice-versa.



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Pelo menos nos quinze ou vinte primeiros encontros, uma mulher só se sentirá segura em seus braços se seus braços não forem além do que ela julgue razoável. Entende o que quero dizer? Seja tolerante, extravase os hormônios solitariamente por enquanto. Uma garota que aceita carícias naquelas partes logo de cara não serve para ser mãe dos meus netos. Ainda mais em se tratando da filha da engolidora de fogo, aquelazinha de índole duvidosa. Vou lhe fazer uma confissão: só desembrulhei completamente a senhora sua mãe na noite de núpcias, e ainda assim depois de certificar-me que seus instrumentos de trabalho não estavam ao alcance da mão. Você sabe, ela era atiradora de facas no Stankowich, onde trabalhávamos na época. Bem, chega por hoje. Nos vemos amanhã, após o espetáculo.

* Redator publicitário há mais de 20 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”



Leviatã

* Por Talis Andrade


A musa foi engravidada
nas quatorze arcadas de um soneto
Nove meses o fruto esteve sazonando
Nove meses se passaram
para que a criança se modelasse
as luas de prata
com frios raios nela tocassem

Desde o útero a salvação
ou a maldição de viver
na miséria na exclusão
E quem nasceu predestinado
para sofrer as dores do mundo
vai para as trincheiras do ódio
com mil granadas na mão

(Do livro “Romance do Emparedado”, Editora Livro Rápido – Olinda/PE).

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).



Tarde demais (III)

* Por Gustavo do Carmo


Toca o telefone. Depois de muita espera é atendido por uma voz jovem.
— Alô?
— Alô, boa tarde? Eu queria falar com a Neyla Beatriz?
— É ela mesma.
— Oi, Neyla. Aqui é Norma Maia, do Teatro Municipal. Estou ligando para te dar uma boa notícia. Você foi aprovada no nosso teste para integrar o nosso corpo de baile e excursionar pela Europa. Foi uma seleção muito difícil. Tivemos mais de quinhentas finalistas. Por isso, houve essa demora de seis meses para escolher o elenco. Você foi escolhida para viajar conosco para Paris. Pode comparecer aqui amanhã para assinarmos o contrato e começarmos a tratar da viagem?
— (...)
— Alô? Neyla?
Um longo silêncio é percebido na linha. É interrompido apenas por uma série de soluços. — Neyla? Você está chorando? É de emoção, não é? Mas pode comemorar! Você foi escolhida e vai fazer parte do balé mais importante do Brasil!
— EU NÃO POSSO MAIS DANÇAR! Grita Neyla
— Mas por quê?! Você foi a melhor bailarina do teste. Ouça bem: você foi aprovada! Não tem mais nenhuma etapa pela frente! Você já está contratada! CON-TRA-TA-DA! Ouviu? Não pode desistir agora que já foi escolhida.
— Eu não posso mais dançar... (interrompe entre soluços e prantos)... porque eu sofri um acidente há dois meses e... eu perdi uma perna.
— Oh! Meu Deus! Mas que pena! Como foi isso?
— Eu estava viajando na garupa da moto com o meu namorado quando ele se chocou com um caminhão. Ele havia me dado o seu capacete. Eu perdi a perna e ele não resistiu! — Olha! Eu sinto muito pelo que aconteceu! Infelizmente, você realmente não vai poder participar do elenco. Mas quero que você viaje conosco para Paris como nossa convidada na platéia da primeira apresentação da turnê e do novo grupo. Não se abale! Veremos se podemos te convidar para um espetáculo com cadeirantes em breve. Neyla perdeu o contrato para ser a bailarina do Teatro Municipal, mas ganhou uma viagem com tudo pago e hospedagem em hotel cinco estrelas na cidade-luz, além do melhor lugar na platéia do Ópera Garnier. Viu-se no palco dançando. Não resistiu. A equipe paramédica foi acionada pela segurança do teatro.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.



Nada é por acaso ...

* Por Karina Monteiro

Uma noite, uma conversa, uma conclusão: nada é por acaso. Lembro-me como se fosse hoje da primeira vez em que nos encontramos. Ele estava sentado ao meu lado e me observava com um olhar profundo, assim como a noite de lua cheia que nos vigiava calmamente. Esta cena já estava escrita no roteiro de nossas vidas ...

Seus olhos diziam mais do que suas palavras, enquanto que meus olhos, tímidos, algumas vezes fugiam deste encontro. Seu olhar estava radiante, seu corpo estava inquieto, tudo isso em razão de sua curiosidade. Ele queria saber cada vez mais quem era aquela que estava à sua frente, afinal, eu já habitava sua imaginação há algumas semanas. Antes daquele dia, ele apenas me conhecia virtualmente ...

Enquanto ele me hipnotizava com seus expressivos olhos, eu o hipnotizava com meus encantos e mistérios. A sensibilidade de menina em contraste com o corpo de mulher instigava sua imaginação. Cada vez sua sede de me conhecer aumentava e eu só poderia matá-la revelando a cada palavra quem era eu. Tal sede cresceria dias depois em busca de beijos ...

Naquela noite nada aconteceu, nem sequer um primeiro beijo. Apesar disso, sentimos um prazer muito além do físico, um bem-estar interior. Nos tocamos apenas com palavras, mas o que são as palavras? São irradiações de sentimentos ...

Parecia que o tempo havia parado tais eram as afinidades que descobrimos naquela primeira e reveladora conversa. É até difícil de explicar as sensações únicas que pudemos vivenciar. Até perdi o horário de outro compromisso que teria ainda naquela noite.

A partir daquele momento nada mais foi igual. Além de um encontro de ideias, também houve uma troca de energias entre duas almas. Dois seres agitados, sonhadores e cheios de brilho nos olhos puderam transmitir vibrações um ao outro, além de ensinarem novas lições numa partilha de experiências.

Então, começamos a falar sobre os casos e acasos da vida. Ambos dissemos com convicção que acreditávamos que nada acontecia simplesmente por acontecer. Hoje, eu me recordo e afirmo que aquela noite não ocorreu à toa. Na verdade, representou um verdadeiro presente num momento em que ambos precisávamos daquela dádiva.

Outros encontros aconteceram após aquele surpreendente episódio. Passeios, longos papos, revelações, risos, beijos, carinhos e ótimas histórias são algumas das lembranças que ficarão gravadas conosco.

Hoje, após mudanças no trajeto de nossas vidas, alguns mistérios ainda permanecem no ar. Muitos momentos não chegaram a ser vividos e narrativas deixaram de ser contadas. Tínhamos o papel e a caneta em nossas mãos, mas deixamos o enredo de lado ... Talvez, um dia, essa história volte a ser escrita, tal fato depende unicamente de seus autores ...

Há pessoas que simplesmente passam em nossas vidas, outras deixam sua marca. Fico imensamente feliz por termos escrito juntos esta passagem tão especial. Quanto ao que virá pela frente, deixo que o maravilhoso ritmo da vida nos mostre a melhor direção a seguir.

A vida é mágica porque não sabemos o que irá ocorrer nos próximos capítulos. Independente do final da história, o que realmente interessa é que nada aconteceu por acaso. Você tem alguma dúvida disso?

* Poetisa e jornalista