domingo, 31 de julho de 2016

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)

LINHA DO TEMPO: Dez anos, quatro meses e quatro dias de existência.


Leia nesta edição:

Editorial – Vida supera a ficção.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “’Homem superior”.

Coluna Direto do Arquivo – Sayonara Lino, crônica, “Grama do vizinho”.

Coluna Clássicos – Rodrigo Octávio, ensaio, “Machado e a Academia”.

Coluna Porta Aberta – José Ribamar Bessa Freire, artigo, “A Amazônia que os portugueses rebelaram”.

Coluna Porta Aberta – José Geraldo Neres, poema, “Uma semente”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.




Vida supera a ficção


A vida de determinados escritores, não raro, supera, e em muito – em termos de interesse – a sua própria obra, por mais criativa, inteligente e oportuna que esta seja. Alguns dão exemplos magníficos de garra, determinação e coragem e vão muito além dos próprios limites, encarando os obstáculos e dificuldades que têm que enfrentar com otimismo e com bom-humor.

Outros, têm trajetórias trágicas e nada exemplares. Estes, via de regra (nem sempre, é claro) recorrem ao álcool e/ou às drogas, na tentativa (vã) de calar seus “demônios interiores”. Há casos e mais casos que oscilam entre estes dois extremos, com várias graduações, positivas ou negativas. Inclusive existem os que se mostram, sobretudo, coerentes, e cuja vida e obra rivalizam entre si, quando não se igualam em interesse e grandeza.

Classifico nesta categoria um escritor que sempre me fascinou (e que, invariavelmente cito, quando o assunto vem à baila) tanto pelos livros que escreveu, quanto, e principalmente, pela forma que encarou suas dificuldades e fraquezas e as venceu ou, pelo menos, as minimizou. Refiro-me ao escocês, natural da cidade de Edimburgo, Robert Louis Stevenson, nascido em 13 de novembro de 1850.

É dele uma citação que anotei, pedi para um artista gráfico reproduzir em letras góticas e mandei enquadrar, mantendo esse quadro na parede bem em frente à minha escrivaninha, para me inspirar no cotidiano, especialmente naqueles dias em que nada parece dar certo e que ameaçam ficar perdidos. De tanto ler e repetir suas palavras, como uma espécie de mantra, até já as decorei. São estas: “Qualquer um pode carregar o seu fardo, embora pesado, até anoitecer. Qualquer um pode fazer seu trabalho, embora árduo, por um dia. Qualquer um pode viver mansamente, pacientemente, amistosamente, até que o sol se ponha. E é isso o que a vida realmente requer”.

Robert Louis Stevenson viveu às voltas, desde a tenra infância, com  uma renitente tuberculose, da qual jamais se curou. A doença, porém, não o impediu de viajar por várias partes do mundo, registrando, meticulosamente, as impressões dessas viagens – as pessoas que conheceu, os lugares pitorescos que viu, os costumes e tradições exóticos com os quais entrou em contato etc. – deixando esses preciosos registros como legado para a posteridade.

A figura que se tornou marcante na vida do escritor, que determinou sua personalidade e até sua carreira, e que ele guardou para sempre na memória, foi a de uma jovem enfermeira que seus pais contrataram para tomar conta daquele menino enfermiço, chamada Cummy. Denominou-a de “meu anjo da minha vida de criança”. Durante as freqüentes crises de tuberculose que o acometiam, para acalmá-lo, ela lhe contava histórias e mais histórias de piratas, além de contos folclóricos da Escócia. Deu no que deu.

Seus pais exigiram que cursasse Direito, o que o moço fez em Londres. Todavia, jamais advogou. Não era esse seu destino e muito menos sua vocação. Tudo em Stevenson foi precoce, inclusive o talento de escrever. Tinha que viver com pressa, afinal, a morte não cessava de o rondar. Passou a dedicar-se à literatura a partir de 1871, com 21 anos de idade. Escreveu de tudo: contos, novelas, poemas, ensaios, impressões de viagens, estudos de estética e, claro, romances (o gênero que o consagrou).

É dele um dos clássicos da literatura juvenil, “A ilha do tesouro”, que escreveu para um sobrinho de 13 anos, que havia, há pouco, ficado órfão. Em 1880, surpreendeu todo o mundo e casou-se com uma norte-americana divorciada, mãe de dois filhos, muito mais velha do que ele, chamada Fanny Osborne, e se mudou para os Estados Unidos, onde, aliás, não ficou por muito tempo. Era uma espécie de cigano. A despeito da doença, não parava em lugar algum.

A verdadeira consagração, a notoriedade artística de Robert Louis Stevenson veio em 1886, aos 36 anos, quando escreveu “The stranger case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde” (em português, “O médico e o monstro”), um dos livros mais adaptados para teatro cinema e televisão de todo o mundo e que inspirou até dezenas de histórias em quadrinhos, além de várias centenas de ensaios. O escritor revelou, em entrevista publicada no jornal “The New York Herald”, em 8 de setembro de 1887, que o argumento do romance lhe veio num sonho. Hoje, essa obra, é considerada uma das precursoras da ficção científica. No livro, Stevenson retoma o velho mito do duplo, resgatado pelo romantismo alemão do “Doppelgänger”.

Além da “Ilha do tesouro” e do “Médico e o monstro”, publicou vários outros best-sellers, entre os quais “A Flecha Negra”, “As aventuras de David Balfour”,  “O morgado de Ballantrae” e “Nos mares do Sul”, escrito nas Ilhas Samoa, onde viveu os seis últimos anos de sua vida e onde morreu – não vítima de tuberculose, como seria de se esperar, mas de hemorragia cerebral – em 3 de dezembro de 1894, 20 dias após haver completado 44 anos.

Na Oceania, Stevenson era chamado pelos nativos de “Tusitala”, que significa “o contador de histórias”. Apesar de ser considerado pelos críticos literários, basicamente, autor de literatura juvenil, e acusado, por muitos, de escritor afetado (do que sempre discordei), foi considerado por Graham Greene, Ítalo Calvino e Jorge Luiz Borges, como um “mestre” da literatura.

Eu iria bem mais longe. Classificaria esse talentoso lutador como mestre na arte de viver. Afinal, foi coerente com tudo o que escreveu. Carregou, por 44 anos, seu fardo (e que fardo!) dia após dia, até o anoitecer. Fez seu trabalho diariamente, com a diligência de uma formiguinha. Viveu, mansa, paciente e amistosamente, todo o tempo que lhe foi concedido, até que o sol se pusesse, sem saber se estaria vivo no dia seguinte. Ou seja, cumpriu todos os requisitos que a vida exige de cada um de nós. Foi, portanto, na minha modesta avaliação, um vencedor na mais completa acepção da palavra e em qualquer aspecto que se olhe.

              
Boa leitura!



O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Homem superior

  
Por Pedro J. Bondaczuk



O dramaturgo inglês William Shakespeare, um dos "imortais" em sua arte e integrante daquela elite humana que é responsável pela evolução da civilização, escreveu, em uma de suas peças: "Que grande obra é o homem! Como é nobre em razão! Como é infinito em faculdade! Em forma e movimento como é expressivo e admirável! Em ação como lembra um anjo! Em percepção, como lembra um deus!"

Tenho ouvido muitas críticas a respeito deste trecho. Há quem diga que se Shakespeare vivesse nos dias de hoje, se tivesse conhecimento das duas guerras mundiais travadas no mundo, do Holocausto, dos vários conflitos armados que ocorreram e que estão em andamento, das taras, das baixezas, das corrupções, do terrorismo, da exploração sexual de mulheres e crianças e de violências de toda a sorte, contemporâneas, jamais teria posto na boca de um de seus personagens estas palavras.

Bobagens. Em seu tempo, as coisas não eram melhores, em termos de relacionamento entre pessoas e povos, do que são hoje. Nunca foram na verdade. Mas achar que todos os seres humanos são iguais em suas atitudes destrutivas, afirmar que o homem não passa de fera, a única que mata um membro da própria espécie sem ser por necessidade na luta pela sobrevivência, supor que nenhum ato positivo é praticado sem que haja um interesse pessoal por trás dele, é uma estupidez fantástica. É uma generalização extremamente burra. Houve, há  e haverá  indivíduos, ao longo da história, para os quais as palavras de Shakespeare são exageradamente modestas, pelo muito que fizeram pela humanidade. Exemplo? O francês Louis Pasteur, cujo centenário de morte completou-se em 28 de setembro de 1995.

Sem a existência, o trabalho, a persistência e o espírito de sacrifício desse homem, a vida na Terra seria muito pior hoje. Foi um iluminado, um incansável, um clarividente, um sábio, um ser especial que "em percepção lembra um deus". Descobriu, por exemplo, o "papel enorme dos infinitamente pequenos", ou seja, os micróbios. Com essa descoberta, revolucionou as ciências e a indústria. Pasteur, que nasceu em Dole, em 27 de dezembro de 1822, dedicou 50 anos de sua vida não a amealhar riquezas, a "furar" os olhos dos semelhantes ou a exercitar uma falsa esperteza, comportamento bastante comum do homem ao longo dos tempos, a ponto de hoje ser tido até como "normal" ou pelo menos tolerável. Utilizou esse meio século para buscar a cura para várias doenças, humanas, de animais e de plantas.

Era químico, não médico. Foi o pai da Microbiologia, da Estereoquímica (química no espaço de três dimensões) e da Imunologia. O processo que inventou para esterilizar alimentos (a pasteurização), impede que epidemias se espalhem, através da comida e bebida, e dizimem o homem da face da Terra. Foi o primeiro a estabelecer regras de assepsia em cirurgia, fazendo com que as operações passassem, de fato, a salvar os doentes e não a matar, como ocorria até então, em decorrência das infecções. Suas descobertas revolucionaram a química, a agricultura, a indústria, a medicina e a higiene coletiva. A seu respeito, o inventor da penicilina, Alexander Fleming, afirmou: "Sem Pasteur, não seria nada".

O que me diz, agora, o leitor cético sobre as afirmações de Shakespeare? São ou não são exageradamente modestas para qualificar Pasteur? "Bem", dirá o sujeito amargo, alienado às avessas, que vislumbra o mal em tudo e todos (porque este, certamente, habita o seu coração), "esta é uma exceção". Seria mesmo? O que dizer, por exemplo, do gênio de um Leonardo da Vinci? E de um Jonas Salk? Ou de um Christian Barnard? Ou de Madre Tereza de Calcutá? Ou de milhões de tantos outros, através dos tempos, em várias partes do mundo?

Seria possível passar horas e horas falando de pessoas que, se não tivessem existido, aí sim saberíamos o que é de fato um inferno. E qual o lugar que destinamos a esses seres iluminados em nossa lembrança? Que gratidão lhes tributamos? Leiam as manchetes do dia 28 de setembro de 1995, ou do dia 28 de dezembro, ou dessas duas datas dos últimos anos, ou mesmo as notícias internas, ou quem sabe as notas de pé de página de jornais e de revistas. Leram?  Onde se falou de Pasteur?!

* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk




Grama do vizinho

* Por Sayonara Lino

Sempre me dei bem com as palavras, aprecio a escrita, independente do que os críticos considerem válido. Respeito o cânone literário, tudo certo. Mas o bom mesmo é ver que tem muita gente bacana surgindo, com coragem de expressar o que pensa e sente.

Adoro beber nas mais variadas fontes, não me prendo a coisa alguma, busco sempre algo novo. Muitos talentos ficam perdidos, muitos escritores em potencial deixam rascunhos na gaveta por puro receio da rejeição, da crítica negativa. Eu não me abalo. Nesse aspecto sou muitíssimo resolvida. Não quero chocar nem agredir, apenas deixo acontecer. Minha escrita é intuitiva, se eu elaborar demais, travo.

Algumas pessoas mandam e-mails quando se identificam e já enviaram textos para que eu desse uma olhada, uma opinião. Eu incentivo, se vejo que tem potencial digo para procurar alguém que publique, ainda existe quem abra espaço quando percebe que o trabalho é sério. A internet pode ser uma espécie de mãe acolhedora para isso.

Hoje a crônica é um agradecimento aos editores dos portais para os quais colaboro e uma mensagem para que as pessoas não se intimidem por parecer que X, Y e Z são maiores, melhores, premiados, badalados.

Parabéns a todos, mas não quer dizer que os não contemplados sejam invisíveis, que não possam ser admirados e expor seu trabalho com dignidade. Chega de babar na grama do vizinho, vamos cuidar da nossa que já está ficando alta, precisando de reparos.

* Jornalista, com especialização em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atualmente finaliza nova especialização em Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela mesma instituição. Diretora de Jornalismo e redatora da Revista Mista, que é distribuída em Governador Valadares, Ipatinga e Juiz de Fora, MG e colunista do portal www.ubaweb.com/revista.




Machado e a Academia


* Por Rodrigo Octávio


Certa vez, em uma destas idas até o ponto do bonde, ocorreu um pequeno episódio que dá a medida do interesse de Machado pela respeitabilidade da Academia, a que ele, presidindo desde o seu nascimento e corporificando-a mesmo, emprestou toda a própria circunspecção e prestígio. Por essa forma, contribuiu certamente, e muito, para que ela atravessasse incólume o período indispensável para que se a acreditasse resolvida a viver, crescer e vencer.

Machado entendia, e não cessava de o dizer, que a Academia devia ser, também, uma casa de boa companhia; e o critério das boas maneiras, da absoluta respeitabilidade pessoal, não podia, para ele, ser abstraído dos requisitos essenciais para que ali se pudesse entrar. Por esse tempo, alguns de nossos colegas andavam procurando criar no ânimo de Machado uma ambiência favorável à aceitação da candidatura de certo Poeta, de notório talento, mas de temperamento desabusado e assinalado sucesso em rodas de boêmios... Nesse dia o nome do poeta veio à tona; a controvérsia fora acalorada. Machado não interveio nela; conservou-se calado; mas, quando o levávamos para o bonde, na Avenida, ao chegar ao canto da rua da Assembléia, ele nos convidou a que seguíssemos por essa rua, e, a dois passos, nos fez entrar em uma cervejaria, quase deserta nesse momento. Não sabendo de todo o que aquilo significava, nós o acompanhamos sem dizer palavra, e vimo-lo deter-se no meio da sala, entre mesinhas e cadeiras de ferro, e, também sem dizer palavra, estender o braço, mostrando, ao alto de uma parede, um quadro, em cores vivas, em que, meio retrato, meio caricatura, era representado em busto, quase do tamanho natural, grandes bigodes retorcidos, cabelo revolto na testa, carão vermelho e bochechudo, o Poeta, cuja entrada no seio da imortalidade se pleiteava, sugestivamente empunhando, qual novo Gambrinus, um formidável vaso de cerveja... A cena causou em todos profunda impressão e, tal era o respeito havido por Machado, que, em vida dele, não se falou mais na candidatura de Emílio de Meneses...

 ***

Pode-se afirmar que o prestígio e o sucesso da Academia Brasileira eram a grande preocupação do Mestre.

Machado não era um homem sociável, era mesmo de difícil familiaridade. Finamente polido, atencioso para com toda a gente, tinha ele, entretanto, um muito limitado círculo de relações de visita, e essas mesmas, confinadas no seu bairro, dentro de um pequeno raio da casa em que, por tantos anos, viveu.

 Era natural que, a homem dotado de tal temperamento, não fosse fácil incorporar-se a grêmios, participar de sociedades, procurar fazer vida comum e conjunta. A Academia, entretanto, o conquistou. Machado se entregou de corpo e alma ao novo instituto que foi para ele a preocupação permanente, consoladora e luminosa de seu derradeiro decênio.

Do interesse, da atenção constante de Machado pela Academia, interesse e atenção sempre manifestados, podem dar testemunho todos os que com ele entretiveram correspondência literária. De tal asserto é demonstração eloquente o belo livro de Graça Aranha sobre a correspondência de Machado e Nabuco. Não há linha nessas cartas, de um e de outro, que não houvesse sido animada pelo amor dessa Casa, e, vindo esse alto e contínuo interesse de homens de tão superior espírito, é esse, sem dúvida, justificado motivo de desvanecimento e orgulho para egrégia Companhia. E deve valer qualquer cousa, deve ter alguma significação um instituto que, de modo tão vivo e diuturno, preocupou espíritos que pairavam em tão alevantado nível.

Por esse tempo quase não havia entre nós convivência literária, excluídos os encontros de amigos e de companheiros nas salas dos jornais e mesas de confeitaria. Entretanto, alguns jornais houve que, pelo acentuado feitio literário e pela individualidade atraente de seu núcleo de redatores, se constituíram, em diversas épocas, assinalados pontos de convívio de poetas e escritores. Assim, a Gazetinha; depois A Semana, como mais tarde a Revista Brasileira, de cuja excelsa roda era Machado a figura primacial. Servia-se às 5 horas um modesto chá com torradas. Foi nessa pequena sala da Travessa do Ouvidor que, em 1896, se concertou a criação da Academia Brasileira de Letras e se a fundou realmente.

Desaparecida a Revista Brasileira, a Casa Garnier, que pouco depois instalava seu novo e magnífico edifício, deu abrigo aos náufragos. Foi aí que os dispersados companheiros se foram habituando a encontrar-se de novo, à tarde. Não foi preciso mais do que dobrar a esquina da Rua Nova do Ouvidor.

Machado, na extraordinária atração de sua pessoa, aliás modesta e esquiva, era a alma daquelas reuniões e tanto que, morto ele, o grupo automaticamente se desagregou. A ausência de Machado era tão sensível que, não volvemos mais, à hora habitual, ao Garnier, sabendo que já o não encontrávamos ali, e as agradáveis reuniões daquela clara e alegre casa de livros cessaram, como por encanto, de um dia para outro, sem prévia combinação. Aliás, Machado era, no fim de sua vida, tido como um deus tutelar da casa que se beneficiava do prestígio de suas obras por ela editadas. No dia da inauguração do novo edifício, o presente que receberam os convidados, para memória do acontecimento, foi um volume de Machado de Assis com a assinatura autógrafa do mestre e a data - 19 de janeiro de 1901. A mim coube um exemplar da 3ª edição do Brás Cubas, que conservo.

Já estava, a esse tempo, fundada a Academia de Letras. Empreendimento que se iniciou prestigiado por grandes nomes, por alguns de nossos maiores nomes, trouxe desde o nascedouro prognósticos de estabilidade e circunspecção.

Machado não recusou coisa alguma do que se lhe pediu para o novo instituto; tomou parte efetiva e eficiente nas reuniões preparatórias; contribuiu para a elaboração dos estatutos e do regimento interno; aceitou de boa mente a presidência que se lhe assinalou. Nessa primeira diretoria, coube a Joaquim Nabuco o posto de Secretário-Geral e de mim, tão-somente pelo que a Academia contava esperar de minha jovem operosidade, se fez o Primeiro-Secretário.

Não foi de folga e segurança o primeiro período de vida da Academia, carecedora de tudo, sem patrimônio de espécie alguma, sem casa que desse abrigo à sua existência meramente espiritual.

E Machado não arrefeceu em sua confiança; não teve um movimento de desânimo; acompanhou-a na sua pobreza franciscana, na sua peregrinação em busca de um pouso... E partiu da vida sem que houvesse tido a satisfação de ver a Academia enriquecida pela generosa doação do livreiro Francisco Alves.

 (Minhas memórias dos outros, 1935.)


* Advogado, professor, magistrado, contista, cronista, poeta e memorialista, nascido em Campinas, membro da Academia Brasileira de Letras.
A Amazônia que os portugueses rebelaram


* Por José Ribamar Bessa Freire


Uma foto e um livro. A foto recente de uma paulista de Sorocaba, de 15 anos, com uma criança indígena no colo diante de uma casa de palha em Manaus, gerou enorme polêmica e mais de mil comentários nas redes sociais com xingamentos, insultos e vitupérios. O livro é do historiador amazonense Arthur Reis. Ambos foram mencionados nesta quinta-feira (28), na palestra sobre os Direitos dos Povos Indígenas que ministrei na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ) a convite do desembargador Sérgio Verani, presidente do Forum de Direitos Humanos.

A foto

De passagem por Manaus, Vitória Caroline, a jovem paulista, se deixou fotografar, sorridente com a criança indígena. As duas são lindas. Mas centenas de internautas manauaras se sentiram ofendidos e ultrajados. Dispararam preconceitos. "Nasci em Manaus e nunca vi um índio. Aqui não tem mato nem índio, como pensam os paulistas" - alguém postou. "Ninguém é índio. Nós somos civilizados" - escreveu outro. Um tal de Wendell Linno - um nome genuinamente amazônico encharcado de pororoca - exibiu fotos do Teatro Amazonas dizendo: "Isso sim, é Manaus".  A banca de tacacá na praça não aparece.

No festival de boçalidade e desinformação, a paulista foi verbalmente agredida, chamada de "doida" e de "mentirosa". Felizmente houve quem discordasse, foram poucos, mas o suficiente para mostrar que existem índios e vida inteligente em Manaus. Lembraram que o Censo do IBGE de 2000 encontrou em Manaus 7.894 pessoas que se autodeclararam índios, número que em 2010 caiu para 3.776, embora o CIMI e a COIAB estimem em mais de 20.000.

Além disso, a Amazônia está indelevelmente marcada pelas culturas indígenas, o que deve ser motivo de júbilo, da mesma forma que a contribuição de africanos, portugueses, sirios, libaneses. Se é assim, se cada amazonense esconde um índio no seu jeitão de ser e de falar, por que a presença de indígenas na cidade ofende tantos manauaras, inclusive aqueles que mergulham nas cuias de tacacá cuja origem desconhecem?  É aqui que entra o livro, a escola, a mídia.

O maior historiador da Amazônia, Arthur Reis (1906-1993), ex-governador na ditadura militar e que conhecia bem a documentação nos arquivos, escreveu entre outros "A Amazônia que os portugueses revelaram". Ali, construiu uma imagem que permite explicar as razões de amazonenses se sentirem ofendidos com a menção aos índios como matriz formadora da identidade regional. É que ele elogia os colonizadores e atribui ao "gênio geopolítico militar" a construção na região de fortalezas destinadas a escravizar e a exterminar os índios que simplesmente são apagados da nossa história.

A portugalização da Amazônia, que não foi concluída no período colonial, é exaltada nesse e em outros livros. E isto porque os historiadores tradicionais da Amazônia não enxergam o índio no seu horizonte e invisibilizaram os índios para as atuais gerações. Olham a região com olhar do ocupante luso. Arthur Reis, quando se refere à disputa entre espanhóis e portugueses no Solimões (1709-1710), escreve:

- "No primeiro choque, os espanhóis foram derrotados. Na segunda fase, perdemos a partida".

Perdemos quem, cara pálida? A partida que o historiador considera perdida na primeira pessoa do plural - se os portugueses perderam ontem, fomos nós que perdemos hoje - foi a derrota dos portugueses em 1710. Mas quando são os índios que perdem, é "a vitória da civilização". Em vez de se preocupar com a Amazônia indígena que os portugueses rebelaram, Reis faz uma apologia acrítica do colonizador, silencia sobre a resistência e as lutas indígenas e sugere uma confraternização de raças.

Na versão do ex-governador, A Amazônia que os portugueses revelaram não contempla a Amazônia rebelada. Centenas de rebeliões indígenas registradas na tese de doutorado de David Sweet, defendida em 1974 na Universidade de Wisconsin-Madison, desaparecem da obra de Reis, como a banca de tacacá em frente ao Teatro Amazonas. Mais de duzentos índios, cada um com seu nome, que lideraram a resistência no período de 1616 a 1750, não figuram nos livros didáticos, não têm monumento nas praças, não aparecem na mídia, não são nome de rua, com exceção de Ajuricaba,que foi folclorizado pelo Poder.

Uma casa portuguesa, com certeza?

Um dos exemplos mais caricaturescos da tese da confraternização de raças é o discípulo de A. Reis, Leandro Tocantins (1919-2004), para quem a prova de que os portugueses não discriminavam os índios foi "o intercurso sexual entre o português e a índia amazônica, em que o instinto femeeiro do branco, o seu sadismo, unidos ao masoquismo por assim dizer da mulher indígena, concorreram para o progresso da mescla".

Num desrespeito aos povos indígenas, à mulher indígena e aos próprios documentos, Leandro Tocantins afirma que "todos os cronistas observaram a índia doida por um corpo de homem branco para se esfregar, preferência a que, em geral, os sociólogos emprestam motivos priápicos". Ele fala em "todos os cronistas", mas não indica nenhum, cita apenas seu outro mestre Gilberto Freyre para testemunhar sobre a "excessiva sexualidade dos portugueses como atrativo para as mulheres indígenas".

O historiador Ruggiero Romano, já falecido, liquidou esta corrente com um golpe mortal. Para Romano, esta história de confraternização de raças esconde o fato de que os colonos vinham quase sempre sem suas mulheres e transformaram o estupro de índias numa prática corriqueira. "Fornicação generalizada sim - diz Romano - mas quanto ao resto formação de uma sociedade fortemente fechada na qual os preconceitos raciais criam discriminações de ordem social e econômica".

Com relação a Leandro Tocantins, José Honório Rodrigues questiona a seriedade de seu trabalho e o critica de forma enfática, mostrando como está cego pelo compromisso com o colonizador. A falta de rigor e a subserviência da historiografia tradicional coloca aos pesquisadores de História da Amazônia a necessidade de proceder revisão total de tudo o que foi escrito até hoje para ir arquitetando e construindo uma história mais objetiva da Amazônia, seguindo caminho sugerido por Severiano Porto em seu artigo "As artes visuais na Amazônia: Arquitetura de morar".

Lá, o arquiteto registra a sabedoria dos índios na arte de construir e propõe "sacudir tudo o que aprendemos e nos condicionamos a utilizar, para ver se conseguimos atirar longe conceitos de construção, soluções e espaços inadequados, substituindo-se com criatividade, segurança e coragem por outros adequados à nossa região para benefício das pessoas que aqui vivem e moram nas casas que aqui se fazem". É preciso fazer com a construção da história o que Severiano Porto fez com a construção de moradas para assim vivermos melhor, enriquecidos pela diversidade e pela diferença.

"Os portugueses vieram, viram, mas não venceram" - comenta Joaquim Nabuco, referindo-se aos resultados do colonialismo na Amazônia, a região menos lusa do Brasil e, talvez por isso mesmo, a mais lusa de todas na versão histórica oficial, o que em certa medida ajuda a explicar a ignorância dos manauaras ofendidos com a foto da paulista com uma índia.

P.S. - O curso da EMERJ, inaugurado pelo ex-reitor da UnB, José Geraldo de Souza Junior, prosseguiu com outros palestrantes entre os quais Sérgio Verani, Miguel Baldez e Maria Guadalupe, abordando ainda outros temas como o direito insurgente, o direito à terra, à moradia, à saúde, concluindo com os direitos dos povos indígenas.

* Jornalista, professor e historiador.



Uma semente


* Por José Geraldo Neres


corpo de lábios líricos
a se enterrar na carne do meu canto
a criar a sede do abismo
& a queda desenfreada
a linguagem despe a morte
silêncio a se mover num cardume de sonhos
a se abrir num par de olhos
caminho a ser nomeado
a mergulhar os relógios nos lábios das horas noturnas
o outro
lâmina a respirar meus passos
& a morder a cauda da madrugada
& sentir nesses lábios as vozes das cores
a língua do horizonte um grito assassino
enterra-se na carne do meu canto


(José Geraldo Neres, do livro "Outros silêncios" - Escrituras, 2009).

•      Poeta e curador da Quinta Poética de São Paulo, blog “Outros Silêncios” -  HTTP://neres-outrossilencios.blogspot.com


sábado, 30 de julho de 2016

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)

LINHA DO TEMPO: dez anos, quatro meses e três dias de existência.


Leia nesta edição:

Editorial – Recordação do futuro.

Coluna Direto do Arquivo – Ruth Barros, crônica, “A estratégia da hiena”.

Coluna Clássicos – Rodrigo Otávio Filho, ensaio, “Álvaro Moreira”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica, “Malandramente”.

Coluna Porta Aberta – Flora Figueiredo, poema, “Perseverança”.

Coluna Porta Aberta – Pedro Du Bois, poema, “Povo”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Recordação do futuro



O título destas “mal-traçadas” linhas envolve, logo de cara, uma contradição, para dizer o mínimo. Afinal, podemos nos recordar de algo que não aconteceu e pode, jamais, acontecer? Objetivamente, não, embora haja quem acredite que sim, no caso, os profetas. Sei lá! Sou um tanto cético quanto a essa questão de “profecia”. Mas... não vou meter a mão nessa cumbuca, repleta de marimbondos, até para não me machucar. Quem sou eu para contestar crenças alheias?!! Vamos, todavia, ao caso.  

A memória, se bem-cultivada, tende a se transformar em uma fonte quase inesgotável de satisfações. Caso contrário, se não tivermos essa cautela, acaba por se tornar num feroz adversário, num implacável verdugo, num perverso carrasco, a nos esfregar, sem dó e nem piedade, no nariz, nossos momentos de dor, de aflição, de fracassos, de carência e solidão, que conviria esquecer.

Por exemplo, quando visitamos um lugar particularmente belo, em companhia de alguém que amamos, sua beleza parece multiplicar-se por mil e as lembranças que suscita, principalmente se neles vivemos momentos de encantamento e afeto, permanecem vivas enquanto vivermos. Se um dia voltarmos a esses lugares, junto com essa mesma pessoa que nos fascina e cativa, sempre descobriremos novas belezas, como se houvessem mudado para melhor, mesmo que tenham se tornado decadentes.

Melhor ainda será quando se tratar de reencontro com a amada, após eventual separação. Será um delírio, magia, um prazer indescritível! O poeta finlandês, Risto Rasa, escreve, nestes versos do poema minimalista intitulado “Espero que voltes”, como entende que seja essa experiência:

“Vamos andar por todos os lugares
que conhecemos tão bem
e eles vão parecer-me quase novos
outra vez”.

Só o amor tem essa faculdade de renovação. É inútil, porém, qualquer tentativa para se regressar ao passado. Ainda não inventaram a máquina do tempo que nos leve para frente ou para trás nos anos, meses ou dias (e sequer em míseros segundos) e nos permita reviver, fisicamente, o que não soubemos valorizar quando aconteceu.

Só podemos fazer esse regresso, assim mesmo de maneira truncada, através da memória (frágil e seletiva). Daí a necessidade de vivermos, sempre, intensamente. E em vez de termos que nos contentar com alegrias do passado, o mais sábio é criar, a cada dia, novas e profundas satisfações. Bebamos do cálice da vida até a derradeira gota. Mas sempre com prazer e felicidade.

Temos a tendência natural de devotar desprezo a tudo o que não compreendemos. O tempo é uma dessas coisas incompreensíveis. A atitude correta, porém, seria a busca incansável da compreensão, que é o caminho da verdadeira sabedoria. Agimos, via de regra, como a raposa em relação às uvas, da famosa fábula de La Fontaine. Ou seja, tentamos, tentamos e tentamos alcançar os frutos e, quando não conseguimos, em vez de continuarmos tentando, até que tenhamos  êxito, quase sempre olhamos para trás e dizemos, com desprezo, entredentes: “estão verdes”. Na verdade, não estão.

Temos possibilidade de chegar ao entendimento de qualquer coisa, idéia ou princípio, por mais complexos e nebulosos que sejam, se nos empenharmos de verdade para isso.  O que devemos ter é respeito pelo incompreensível. E, claro, o máximo empenho na busca da compreensão.

Jean Cocteau afirmou, certa feita, em entrevista: “O poeta recorda-se do futuro”. Claro que se trata, apenas, de bela metáfora. Afinal – e nem seria necessário ressaltar – é impossível recordar o que ainda sequer aconteceu, como enfatizei no início destas considerações. Essa “recordação”, na verdade, seria o que os poetas intuem, com base em experiências (pessoais e/ou alheias) do que é provável, ou pelo menos possível,  de nos ocorrer, face a determinadas circunstâncias.

E qual a autoridade de Jean Cocteau para tão peremptória afirmação? Para quem não sabe, informo que, além de consagrado diretor de cinema – qual cinéfilo não conhece os vários filmes que ele dirigiu, ou produziu, ou escreveu roteiros, ou participou de alguma forma, como “O testamento de Orfeu”, “A águia de duas cabeças, “A bela e o monstro”, “Orfeu” e “Lês parents terribles”, entre outros? – foi, também, um vitorioso escritor, mais especificamente, poeta. Tanto que foi eleito, em 1955, para a seletíssima Academia Francesa de Letras. Destacou-se, com George Auric, Louis Durey, Arthur Honneger, Darius Milhaud e Francis Poulenc, do famoso “Grupo dos Seis”.    

Convenhamos, não são apenas os poetas que se preocupam com o futuro. Não há quem não se ocupe, de uma forma ou de outra, dele. Essa preocupação, desde que moderada, é saudável e desejável. Principalmente se formos poetas e se soubermos avaliar seu potencial de desgaste e decadência, sem nos desesperarmos. Nunca duvide: ele nos desgasta e, um dia, até nos mata!

Contudo, é preciso ter em mente que o futuro não passa de abstração, de mero vir-a-ser. Pode se concretizar rapidamente, transformando-se, em infinitésimos de segundo, no presente, como pode nunca acontecer, em decorrência da nossa mortalidade. É, como se vê, uma perspectiva aterradora, posto que real.

Sua matéria-prima, portanto, são os sonhos, as esperanças, as intuições, as projeções da mente e da imaginação. A realidade é o momento presente, tão curtíssimo, mais rápido do que um piscar de olhos, e o passado, caudaloso e extenso. Morris West destaca, no romance “O Navegante”: “Vive-se um minuto depois do outro, vive-se uma hora, vive-se um dia. O futuro é o que se sonha. A realidade é o momento presente apenas, cada batida do coração”.

Sonhemos, intensa e profusamente, sem limites ou restrições. Mas nos preparemos para quando, ou se, o futuro se fizer presente, com suas surpresas (boas e/ou más) e possibilidades. E, quem sabe, em um desses golpes inesperados do acaso, consigamos “antever” um ou outro acontecimento, com todos os detalhes, sem faltar nenhum. Impossível? Não sei!!! Provavelmente, sim. Caso acertemos na mosca, todavia, será a única maneira de recordarmos o que ainda não aconteceu. Ou seja, o futuro.


Boa leitura.



O Editor.,

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A estratégia da hiena


Por Ruth Barros


A fiel escriba ainda não viu, mas adorou, uma peça que está em São Paulo com a Zezé Polessa chamada Não Sou Feliz Mas Tenho Marido. Nesse mundo em que as casadas, grande parte infelizmente mal casada, se dão por feliz com qualquer marido, a impressão que tenho é que elas agem como hienas, esperando a carniça. Uma de minhas chegadas caiu na rede de uma dessas hienas. Rezo ao Deus dos homens e animais para que a linda se livre. O que acontece é que a fofa está enrolada com um cara que acabou de se separar, ou melhor, que está tentando desesperadamente se separar. No princípio, ao saber que o marido queria dar linha, a titular da pasta deu baixaria, chegou a telefonar para a linda que, garota esperta, desconversou.

Pois a jararaca oficial mudou de atitude, está posta em sossego, fingindo que concorda com tudo, sem pôr um limite ao falecido, que entra e sai para ver os filhos quando bem entende, ganha um prato de comida de quebra e ainda roupa lavada.

- Ela está usando a estratégia da hiena – reconhece minha amiga. –. Como se contenta com qualquer coisa, é aquele tipo que parece não se afetar com traições, relação ruim ou mentiras, desde que mantenha a posse, está fingindo de morta, de boa, para não espantar a presa. A vida deles caiu de podre, é inviável, mas a fulana parece ser fã de carniça, tanto que as vezes que tentou sair de casa ele acabou voltando e ela aceitando, mesmo que fosse para cumprir tabela.

Assustador? É, mas é bem mais comum do que parece à primeira vista. Senão grande maioria, boa parte das mulheres se contenta com qualquer coisa, “um homem pra chamar de meu”, mesmo que a relação tenha apodrecido há tempos. Ao invés de irem em busca de carne fresca, preferem o conforto (eca) da carniça.

Depois desse lero todo fui espiar na Internet e descobri que fui injusta – com as hienas. Até elas têm capacidade de reverter esse quadro, vejam só: “Na verdade, as hienas não riem. À noite, elas costumam soltar o seu uivo esquisito, que parece uma gargalhada. Os antigos diziam que a hiena era a encarnação de espíritos de feiticeiros. A hiena é desengonçada, peluda, com maxilares grandes e a traseira caída. Ela se alimenta principalmente de cadáveres, devorando todos os corpos que encontra pelo caminho. Mas, se precisar, ela também é eficiente caçadora. A hiena é encontrada na África e na Ásia Meridional”.

Anabel Serranegra também quer saber de onde vem o dinheiro da compra do dossiê


* Maria Ruth de Moraes e Barros, formada em Jornalismo pela UFMG, começou carreira em Paris, em 1983, como correspondente do Estado de Minas, enquanto estudava Literatura Francesa. De volta ao Brasil trabalhou em São Paulo na Folha, no Estado, TV Globo, TV Bandeirantes e Jornal da Tarde. Foi assessora de imprensa do Teatro Municipal e autora da coluna Diário da Perua, publicada pelo Estado de Minas e pela revista Flash, com o pseudônimo de Anabel Serranegra.



Álvaro Moreira

* Por Rodrigo Otávio Filho


Álvaro Moreira nunca mudou. Foi sempre o mesmo homem, o mesmo escritor, o mesmo poeta. Inteligência e coração, ironia sem maldade, seriedade e bom humor. Desde a Legenda da luz e da vida (1911), até As amargas, não... (1954), oferece ao leitor a mesma sensibilidade, a mesma filosofia. Mais do que excelente poeta, Álvaro Moreira é um excepcional artista, considerando-se o termo na sua significação mais alta. Em Álvaro tudo é estesia. Dá relevo estético às palavras que pronuncia, às coisas que explica, aos sentimentos que revela. Sempre fez da alegria e da dor uma obra de arte. Desde pequeno guarda a saudade no coração: “Esqueci o berço. Não esqueci o colo”, escreveu ele. E de longe também lhe vem o sentido da felicidade: “A felicidade não morre toda. A gente é sempre um pouco feliz da felicidade que teve.” Ou ainda: “O tempo feliz é sempre o tempo que passou. Embora, nesse tempo, se tivesse sido muito desgraçado...’

As ambições do poeta sempre foram diferentes, modestas: “Para fazer um céu basta uma estrela...” Sorrindo à ilusão chegou a escrever: “A ilusão, além do mais, nos torna melhores do que os outros homens...” Atura o silêncio porque “o silêncio é o sonho que não dorme...” E nunca se queixou da monotonia da vida: “Há certas paisagens sempre novas, aquelas por onde passamos todos os dias!...”

O autor de Um sorriso para tudo foi o amável filósofo dos poetas da sua geração, aquele que encarou a vida com mais otimismo: “Vamos sorrindo sempre, envelhecendo devagar... Um sorriso de êxtase para a beleza, um sorriso de esperança para o amor, um sorriso do encanto e de mofa para a vida... triste ou alegre, um sorriso para tudo...” E examinando-se a si mesmo, filosofou: “Cada homem tem em si mesmo, um mestre e um discípulo... O mestre aparece menos, é compassivo e triste; o discípulo aparece mais e é quase sempre um mau discípulo... Estas palavras são do meu mestre e do meu discípulo...”

Quem ler a obra de Álvaro Moreira, verificará ser toda ela epigramática. Ninguém melhor soube dizer em frases rápidas, claras e sintéticas o que quis. Em sua geração foi voz de comando. Pregou serenidade e sentido. Fez do paradoxo um jogo de palavras, base da sua arte. Comentou e criticou. No comentador está o homem em que a ironia se torna elemento de surpresa, espontâneo, inesperado. No crítico, surge o homem que sabe discernir.

Álvaro Moreira teve sempre bons olhos para ver as coisas boas e as coisas más da vida, e sentir, pelos homens, mais pena, mais piedade, do que admiração ou entusiasmo.

Viu a vida passar como um menino que vê as nuvens no céu movimentando-se, mudando de forma. É um homem feliz porque nunca anda só e saberá envelhecer:

“Todos nós na nossa vida, - escreveu - temos um poeta e um músico que nos acompanham. Felizes ou desgraçados nunca andamos sozinho. Eu tenho Verlaine e Schumann. Vão os dois comigo. Não preciso chamá-los. Vão agora como antigamente, quando eu tinha vinte anos. Faz uma noite muito branca. Vaga um perfume de primavera distante em torno da minha casa. Fico a pensar nas outras primaveras que chegaram, floriram e lá se foram. Como é bom envelhecer! Oh! minha vida! minha fita cinematográfica! Abro a porta que dá para a varanda. Em frente há um canteiro com um cipreste, umas rosas, umas magnólias. Os cenários mudam, os atores repetem sempre o eterno papel... Estou alegre? Estou triste? Não sei. Estou feliz. Tenho vontade de ligar o telefone para toda a gente...” Alô! Desculpe-me perturbar o seu sono. Mas a noite é linda e eu me sinto tão feliz, tão feliz... Desando a representar para mim mesmo... De repente, a memória acorda a Rêverie de Schumann... longe... E exalam-se depois da minha voz, uns versos trêmulos de Verlaine...”

Este trecho, tão característico da antiga prosa de Álvaro Moreira, que tanto é poeta escrevendo como vivendo, é padrão literário que mostra bem o escritor e o homem, o escritor emotivo e o homem isento de egoísmo.

Não será fácil encontrar em nossa literatura prosa mais musical do que a de Álvaro Moreira. Sempre diferente na interpretação, é o mesmo escritor harmonioso calmo e humano, poetizador de paisagens e sentimentos.

Páginas admiráveis são as introdutórias do livro O Brasil continua (1933); e terrivelmente verazes e maliciosas as caricaturas da parte do livro intitulado “Guarda-roupa” onde dá asas a sua ironia sem maldade.

O prosador Álvaro Moreira, bem como o teatrólogo, o poeta, o homem, não são diferentes. E ao longo da vida foram sempre os mesmos. Para bem conhecê-los basta ler as “lembranças” que reuniu em As amargas, não... Nelas, conta tudo. Não oculta nada. Transborda sinceridade. Confessa que sua educação sentimental veio toda do século XIX, daquele fim do século XIX, com Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo e, ainda, Romantismo.

Álvaro Moreira fez parte do grupo dos sete rio-grandenses que de Porto Alegre partiram para o Rio de Janeiro, onde se integraram na literatura brasileira na fase final do Simbolismo, sala de espera do Modernismo que vinha perto. Os sete do grupo foram fichados por Eduardo Guimaraens, em versos humorísticos, que objetivavam a faceta original e mais extravagante de cada um. A ficha de Álvaro Moreira termina assim:

...Vede-o: é o mais conhecido e atacado dos sete!
E para que da crítica o estilete
Definitivamente o sangre, o espete, o esmague,
Vai nos mostrar, por uma sexta-feira,
A claridade estética da Sombra.

Álvaro Moreira conta-nos que do colégio dos padres, em São Leopoldo, foi diretamente para o jornal em Porto Alegre. E desde então outra coisa não tem sido senão escritor. E confessa não saber a que escola literária pertence. “Ribeiro Couto fichou-me, por uns tempos, na escola penumbrista.” Em 1914, foi posto na escola futurista. “Em 1934, para Tristão de Ataíde, minha escola era a católica. Ora, eu não pedi matrícula em nenhuma dessas escolas.”

Definindo-se com certo pitoresco, não deixa de fazer um bom autorretrato, ou melhor, uma excelente caricatura, à qual falta, apenas, acrescentar uma dose de Romantismo: “Eu me pareço mesmo é com essas ampolas de injeção de bismuto. Tenho em mim as coisas necessárias. Mas preciso de ser sacudido, para que todas se misturem e, então, eu possa ser usado utilmente. A vida tem me sacudido bem...”

Apesar de escritor moderno, atualizado, Álvaro Moreira foi grande ledor de clássicos portugueses. Sobre Camões, escreveu: “Abandona-se Camões. Briga-se comos sonetos. E, um dia, de repente, é por um soneto que se volta a Camões.”

Por ter um sorriso para tudo, Álvaro é escritor e porta da mais alta sensibilidade, e que tem o seu lugar certo em nossa história literária. Em sua poesia existe sensibilidade e verdade. Em todos os seus versos uma infinita ternura:

Quero de ti a promessa:
quando vier o último sono,
hás de poisar-me a cabeça
em folhas mortas de outono...


para que sonhe (tão lindo!
o sonho dos sonhos vãos!)
que vou sereno dormindo
no amparo das tuas mãos...


Para encerrar, anote-se o epitáfio revelador:
Acreditei na Vida, e a Vida em mim. Depois,
Desandamos a rir de nós mesmos os dois.

(Simbolismo e Penumbrismo, 1970)


* Advogado, poeta, crítico literário, ensaísta e orador, membro da Academia Brasileira de Letras.