quinta-feira, 30 de junho de 2016

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)

LINHA DO TEMPO: Dez anos, três meses e três dias de criação.

Leia nesta edição:

Editorial – Um passo à frente, dois para trás.

Coluna Ladeira de Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “O que e como e para quem”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica, “Como é a sua letra mesmo?”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto, “Âncora”.

Coluna Porta Aberta – César Veneziani, poema, “Crepúsculo”.

Coluna Porta Aberta – Conceição Pazzola, conto, “A fuga”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer – Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Um passo à frente, dois para trás


Caríssimos leitores, boa tarde.


“Progresso. O que devemos entender por essa palavra? Se a definirmos como bons gramáticos, diremos que é um acréscimo de bem ou de mal, na medida em que possamos discernir entre o bem e o mal; e estaremos assim representando o próprio avanço da humanidade. Mas se, como se faz nesta época em que o progresso é o movimento da humanidade que se aperfeiçoa sem cessar, estaremos dizendo uma coisa que não corresponde à realidade. Esse movimento não se observa na história, a qual só nos apresenta uma sucessão de catástrofes e de avanços, seguidos de retrocessos”.

Belíssimas palavras, não é mesmo? Claro que não são minhas, embora eu comungue dessa idéia. São de um gênio das letras. São de um dos meus escritores favoritos, cujos livros não me canso de reler, pelas verdades que encerram. São de Anatole France – pseudônimo de Jacques Anatole François Thibault – autor que se não excede, se iguala aos seus personagens, pelo talento, caráter e integridade.

Em vez de abordar o conceito de “progresso”, peço-lhes licença para falar deste gênio das letras. Há muito espero uma oportunidade para declarar minha admiração (e gratidão) por este escritor, que tem me influenciado bastante nesta árdua empreitada de tentar conquistar a mente e os corações de milhares, se possível milhões,de leitores.

Constato que Anatole France fez uma espécie de transição entre a forma de fazer literatura no século XIX e a do século XX. Foi, pois, uma espécie de “ponte literária”. Foi das tais pessoas que fazem as coisas com paixão, tudo, textos, livros, amizades, inimizades, ideologias etc. E, como não poderia deixar de ser, era apaixonado, sobretudo, pela escrita. Assim como nós.
Anatole France, porém, foi também um guerreiro, mas no sentido lato do termo. Tanto que, entre 1870 e 1871, participou da defesa de Paris, no momento nevrálgico da Guerra Franco-Prussiana, que redundou na inapelável derrota francesa. Integrou, na ocasião, como guarda nacional, a 1ª Companhia do 20° Batalhão do Sena.

Embora comunista convicto (sobretudo, nos seus últimos anos de vida, já que morreu em 1924 e pôde testemunhar, portanto, a vitória da Revolução Bolchevique de 1917 na Rússia e a posterior criação da União Soviética), fugiu da capital francesa no início da insurreição conhecida como Comuna de Paris, que resultou na morte de milhares de insurgentes. Afinal, era um sujeito corajoso, mas não temerário. E não vislumbrava a mínima chance de êxito no referido levante popular.

Foi bibliotecário do Senado, mas anos depois, chegou à Academia Francesa, eleito, aos 52 anos, para ocupar a cadeira de número 38, anteriormente ocupada por Ferdinand de Lesseps, o projetista e construtor do célebre Canal de Suez, no Egito.

Entre as inúmeras homenagens que recebeu, foi galardoado com a Legião de Honra. Anos depois, todavia, devolveu essa comenda, em solidariedade ao escritor Emile Zola, que a teve retirada, no auge de uma azeda polêmica que envolveu toda a França nos albores do século XX. Poucos tomariam essa atitude em apoio a um colega em situação tão vulnerável e que vinha sendo injustiçado por ser tão corajoso. Mas Anatole France era assim: inquieto, dinâmico, justo, íntegro e participativo. Nunca se omitia.

Como se sabe, Zola foi um dos primeiros (e únicos) intelectuais franceses a tomarem as dores do capitão Alfred Dreyfus. Esse militar foi injustamente acusado de espionagem em favor da Alemanha, expulso do exército com desonra e condenado à prisão na terrível Ilha do Diabo (seu nome já diz tudo), na Guiana Francesa.

Publicou, na ocasião, o célebre manifesto intitulado “Jaccuse”, denunciando uma armação no caso em que o réu foi condenado e perseguido apenas por ser judeu. Essa ousadia valeu a Zola momentos muito amargos e duros. Tornou-se alvo da ira dos militares e da então poderosa direita francesa.

Anatole France, mesmo sabendo dos riscos de se envolver na questão, não se omitiu. Pelo contrário, foi dos primeiros a aderir a essa nobre causa. Assinou, de imediato, a petição para a revisão do processo de Dreyfus. Como se vê, embora muitos o classificassem na ocasião (e alguns o classifiquem ainda hoje) de “encrenqueiro”, era homem de honra, de larga visão, muito além do seu tempo.

Agora vocês entendem por que gosto, não só da sua literatura, mas das suas atitudes? Pelas posições que assumiu, em favor da justiça e da igualdade, nem é de se estranhar sua participação decisiva na fundação da Liga dos Direitos Humanos.

Fosse apenas ativista político, Anatole France já teria reunido méritos mais do que suficientes para se habilitar a credor do nosso respeito e até da nossa reverência e admiração. Mas ele foi além. Foi dos mais criativos e talentosos escritores da virada do século XIX e do início do século XX. Qualquer um pode comprovar isso na leitura de livros como “O crime de Silvestre Bonnard”, “O manequim de vime”, “Thaís”, “O lírio vermelho”, “O poço de Santa Clara”, “A rebelião dos anjos” e tantos e tantos outros.

Essa obra consistente, genial e densa de conteúdo valeu a Anatole France o cobiçadíssimo Prêmio Nobel de Literatura de 1921. Outros dos seus livros que recomendo com entusiasmo (alguns, hoje, autênticas raridades bibliográficas) são: “História Contemporânea” (série de quatro romances), “O caso Crainquebille”, “A ilha dos pingüins”, “Os deuses têm sede”, “A casa de assados da Rainha Pédeuque”, “As opiniões de Jerônimo Coignard”, “O pequeno Pierre”, “A vida em flor” etc.etc.etc. Como se vê, este está habilitado a falar sobre o progresso e tudo o mais. E, nesse aspecto, a humanidade faz a caminhada do bêbado: dá um passo à frente, dois para trás...

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk



O que e como e para quem


* Por Pedro J. Bondaczuk


O escritor, no exercício da sua atividade, faz, a todo o momento, uma série de questionamentos, muito antes de iniciar a redação de algum texto. São perguntas subjetivas, automáticas, até inconscientes, que ele sequer se dá conta de que formula. Se você perguntar a algum deles se faz essas indagações, irá negar enfaticamente. “Eu? Não!!!”, dirá com certeza. E estará sendo sincero. Todavia, se questiona, e muito, e o tempo todo. E nem ao menos sabe disso.

Uma dessas perguntas subjetivas é: o que escrever? Redigirá um poema? Escreverá um romance? Se aterá a um conto ou a uma novela? Sim, o que escrever? Claro que é uma decisão fundamental, que antecede o ato de redigir. Assim que tomada, vem logo a questão seguinte: como escrever? Isso ele irá decidir de conformidade com a natureza do tema que irá desenvolver. Caso se trate de um drama, por exemplo, pode optar pelo romance, conto, novela ou peça teatral. Caso se trate de idéias, de natureza filosófica ou científica, por exemplo, o melhor caminho será um ensaio. E assim por diante. No meio do texto, provavelmente, caso opte por desenvolver o assunto em forma de ficção, premido pelo desenvolvimento do enredo, ou seja, pelas suas exigências lógicas, irá decidir se a história terá, ou não, final feliz. Geralmente todas têm (claro que há exceções).

Alguns escritores gostam de prender a atenção do leitor pelo suspense, ou pelo medo, ou por descrições tão cruas e realistas que o fazem sofrer, se não física, pelo menos psicologicamente. Nem todos, é certo, apreciam esse tipo de literatura. Eu não sou muito adepto dele. Mas há, também, os que o adoram e o procuram avidamente. Há gosto para tudo.

Um dos escritores que escreviam dessa forma, ou seja, cutucando a sensibilidade, mexendo em nossas feridas afetivas, explorando nossas vulnerabilidades psicológicas e nossos medos, e deliberadamente, de sorte a manter o leitor em permanente estado de tensão e sofrimento, foi o checo Franz Kafka. Certa feita, ele confessou isso, de maneira para lá de explícita, ao escrever: “Eu quero que a minha literatura doa, que faça as pessoas sofrerem. Ela deve funcionar como um machado, capaz de quebrar o mar congelado que existe em cada um de nós”.

Da minha parte, embora busque verossimilhança nos enredos que crio, e com o máximo de realismo que minha sensibilidade e meu poder de observação permitam, não tenho (pelo menos conscientemente) essa intenção deliberada de judiar do leitor. Mas, reitero: há quem goste, tanto de infligir, quanto de receber sofrimento. E por haver tamanha variedade de gostos, o escritor faz a si mesmo a terceira e importante pergunta: para quem escrever?

Alguns devem estar contestando minha afirmação, dizendo que quem escreve um texto o faz para que “todos”, absolutamente todos sem distinção, não importando seu gosto e nem sua cultura, o leiam. Esse, porém, é mais um questionamento subjetivo. Na própria escolha do gênero, do enredo e da linguagem adotada você já está, automática e subconscientemente, sendo seletivo, determinando o seu público. Se o livro que você escrever for extenso, por exemplo, quem não gosta de textos longos estará, liminarmente, excluído de ser seu leitor. Quem é otimista e positivo, também não o lerá, se o que você escrever for na linha de Kafka, ou seja, que cause sofrimento (posto que moral) a quem se aventurar a lê-lo. E vai por aí afora.        

Provavelmente, a pergunta que você mais vezes faz a si próprio (reitero) subconscientemente, é sobre a importância da atividade literária. A literatura é importante?  Por que? Para quem? São questões cujas respostas  não têm consenso. Cada qual tem a sua, com as respectivas justificativas. Consideremos, porém, que você responda a primeira pergunta positivamente. Ou seja, que a literatura é importante. É como eu respondo a mim mesmo sempre que a questão me vem à bailas. E, asseguro, sou sincero, pois estou convicto disso. Pois bem, se a literatura é importante na vida das pessoas (e, reitero, estou absolutamente seguro que é), qual é seu verdadeiro papel no estudo dos seres vivos (principalmente dos humanos)?

Para quê ela serve? Para divertir, ou para instruir, orientar, analisar e concluir? Alguém pode, a esta altura, perguntar: “mas não temos a ciência para isso?”. Temos. Mas somente ela não basta. A vida não se restringe a leis naturais e imutáveis e nenhum ser vivo reage de forma absolutamente igual. Ela é sutil e não comporta análises mecânicas e genéricas. Para sua compreensão, são necessários exemplos, das várias formas de comportamento das pessoas. A variedade é a tônica da vida.

Ainda assim, somos incapazes de compreender em profundidade esse maravilhoso mistério, esse privilégio, essa magnífica aventura que é viver. Já tratei aqui desse mesmo assunto e, possivelmente, com as mesmíssimas palavras, mas não tenho o menor pudor de repetir tudo isso, dada sua relevância e pertinência nestas reflexões. O escritor, sociólogo e filósofo francês, Roland Barthes, constatou a respeito: “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa”. E não é?

O escritor tem o hábito de tratar, não raro, do desconhecido ou do que julga que seus leitores desconheçam. Aí reside o segredo da sua criatividade. Isso causa impacto na mente de quem o lê. Mas o mesmo tema não pode ser repetido, sob pena de não causar mais nenhum efeito na segunda ou terceira repetição. Deixa de ser desconhecido.

O que a princípio nos atemoriza, por seu caráter insólito, tão logo é tratado pela primeira vez caso se repita, digamos na terceira vez, finda por tornar-se familiar e, por isso, inofensivo. Recorro, para exemplificar, novamente a Franz Kafka, que escreveu, em uma de suas novelas (não me recordo qual): “O leopardo invadiu o templo e interrompeu a cerimônia sagrada. Houve pânico. Voltou no dia seguinte e no outro. No quarto dia, passou a fazer parte do culto”. Ou seja, não só não causou mais pânico como, sequer, não despertou mais nem mesmo ligeiro sustinho. E não é o que acontece sempre? Estou seguro que sim.

O imprevisível, enquanto tal, nos atemoriza, mesmo que na sequência se revele benigno ou inofensivo. No fundo, no fundo, mesmo que neguemos enfaticamente, detestamos surpresas. Morris West nos lembra, no livro “O Verão do Lobo Vermelho”: “...É assim que as coisas mais importantes acontecem em nossas vidas. Seguimos através de raciocínios, fantasias, medos, frustrações, vastos e desolados hectares de tempo em que nada se faz. Então, um belo dia, o médico chega e diz que estamos morrendo ou a moça vem e diz que está grávida ou que a bolsa caiu de repente e estamos pobres ou um avião cai do céu e nós morremos e temos de comparecer a julgamento sem os nossos apontamentos”.

A imprevisibilidade, todavia, é a marca registrada da vida. Pouca coisa é rigorosamente previsível. Nós ér que não nos damos conta disso. O que não podemos e muito menos devemos é desanimar quando uma dessas tantas surpresas nos confrontarem com tragédias. Não podemos é nos entregar à indolência, achando que tudo esteja perdido e que não adianta fazer mais nada, quando não raro não está. Afinal, um sol novo nasce a cada dia... E a vida, recordo, é caracterizada pela imprevisibilidade. Mas... esta já é outra história, que fica para outra vez.


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk


Como é a sua letra mesmo?


* Por Marcelo Sguassábia


Ninguém sabe mais como é sua letra. Nem você. Por mais intelectualmente articulado que seja e por mais Pós-Doutorados que possua, se tiver que escrever alguma coisa você vai se pegar desenhando as palavras. De um jeito desengonçado, como se estivesse aprendendo a andar de bicicleta.

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O teclado da máquina de escrever, e depois o do computador, foram os primeiros culpados. Acabaram matando aos poucos o meio físico que ligava o que se quer dizer ao que saía escrito, ou seja, a caneta ou o lápis. Mas ainda havia algo entre a intenção e o resultado: o teclado. O frio e insípido teclado, essa coisa infestada de migalhas de bolacha entre as letras. Por questões de conforto nos textos de longo curso, ele ainda resistirá um pouquinho mais, embora tecnologicamente já esteja liquidado.

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Do toque ao touch na tela, diretamente no vidrinho sensível do tablet ou do celular. As teclas de pixels, espremidas. Esbarrões frequentes nas letras vizinhas resultaram no amaldiçoado corretor ortográfico, cybercausador de mal-entendidos, divórcios e demissões por justa causa. Dorretor mwtido a busta, và cuidar da sua fida!

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O número de mortes/ano por digitação em trânsito, dentro do carro ou atravessando a rua, dão sinal verde para o avassalador sucesso dos aplicativos de escrita por ditado. Por meio de reconhecimento de voz, transformam em texto o que se diz, liberando as mãos e a atenção do indivíduo. Fanhos, gagos e gente de língua presa devem tomar cuidado ao utilizá-los.

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A escalada tecnológica alcança níveis inimagináveis. Canetas, lápis, teclados, celulares, tablets e aplicativos que escrevem o que se fala também estão condenados à extinção. Em várias partes do mundo, testemunhas relatam ter visto gente falando diretamente com gente, sem intermediação de nenhum instrumento ou aparelho eletrônico. Conforme a pessoa vai falando, a outra já escuta, entende perfeitamente e responde na sequência. Um avanço sem precedentes na longa história da comunicação humana.


* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Âncora


* Por Gustavo do Carmo


Até despontar Fernando Inácio, Francisca Patrese era a melhor apresentadora do Jornal das Oito da TVNEWS. Era segura, tinha credibilidade, além de isenta e transparente.

Começou a trabalhar como repórter de rua. Em seis meses assumiu interinamente a bancada do Telejornal Local da Manhã. Com a mesma rapidez virou âncora titular da tal edição e a da Tarde. No ano seguinte, tornou-se uma das apresentadoras do Jornal das Oito. Dividia a bancada com o veterano jornalista Júlio Orestes.

Roubou a atenção do público com o seu talento. E o espaço do companheiro de bancada. Francisca Patrese assumiu a apresentação solitária do jornal, além do cargo de editora-chefe.

Com a chegada de Francisca à bancada, a audiência do Jornal das Oito duplicou. Triplicou quando ela assumiu o comando total. E caía quando ela era substituída nos finais de semana, feriados, faltas e férias. Isso começou a preocupar a emissora, que diminuiu a sua folga semanal, mas compensou sua nova estrela com um aumento de salário.

Foram testados dez substitutos. Entre estes, cinco foram contratados só para cobrir Francisca. O primeiro foi o seu antecessor e antigo companheiro de bancada, Júlio Orestes. Não tinha mais a mesma credibilidade do passado. Principalmente depois que foi descoberto recebendo propina de um deputado cassado por corrupção. Só durou uma semana. Desligou-se da emissora logo depois.

Vieram outros interinos. Homens e mulheres. Reeditaram a dupla de âncoras. Um casal. Dois homens. Duas mulheres. Tentaram de tudo. Nada adiantou. A volta de Francisca neste meio tempo era um alívio para a diretoria da emissora. A audiência voltava a subir.

E o estrelismo de Francisca subia também. Com o seu carisma conquistou o carinho dos fãs. Mas o sentimento não era muito recíproco. Ela raramente respondia aos e-mails dos telespectadores. Mandava a produção fazer isso. Na redação era antipática. Gritava com os câmeras, produtores e estagiários. Esnobava os colegas, que tinham ciúme do tratamento dado pela diretoria a ela. Os homens apostavam que ela subiu na emissora por causa do teste do sofá. As mulheres destilavam inveja. Seus únicos amigos eram, exatamente, os diretores do jornalismo e o dono da emissora.

Mesmo assim, Francisca continuava como o trunfo do canal. Até chegar o jovem repórter Fernando Inácio. Depois de dois anos atuando como repórter de praça, ganhou a chance de substituir a famosa âncora por uma semana quando ela precisou faltar para cuidar da mãe doente.

Francisca não teria com o que se preocupar. Afinal, ela era a estrela da emissora e sua presença representava mais audiência e mais patrocinadores. O que a TVNEWS não imaginava era que Fernando mantivesse a audiência do Jornal das Oito. No dia seguinte, o índice duplicou. Só voltou ao normal quando Francisca reassumiu a apresentação.

Exatamente por ter registrado um novo recorde de audiência para o jornal, Fernando foi efetivado como co-apresentador. Ao lado de Francisca na bancada. A estrela da emissora logicamente não gostou. Ficou nervosa no primeiro dia com o novo parceiro. Gaguejou, atravessou a locução do colega, chamou a matéria errada, suou frio. Nunca havia passado por essa experiência. Nem nos seus tempos de estagiária. Abandonou a bancada antes do fim do telejornal. A câmera estava fechada em Fernando. Mas foi possível ver o ruído de irritação e a famosa âncora fugindo transtornada. Virou hit na internet.

Francisca Patrese ganhou uma suspensão de uma semana (ou gancho, no jargão jornalístico). Desta vez, sua ausência não fez falta para os telespectadores. Fernando Inácio tornou-se o titular do Jornal das Oito. Quando voltou do castigo, ao saber que tinha perdido os postos de âncora principal e editora-chefe, além de ser obrigada a voltar para a reportagem externa, Francisca jurou vingança.

A primeira providência foi borrifar um forte perfume barato no cenário antes do jornal começar. Ela sabia que Fernando era alérgico e queria provocar um constrangimento ao vivo do rival.

Quase conseguiu. O novo âncora chegou a dar um espirro e alguns tossidos no ar. Estrategicamente o jornal foi interrompido com aquele tradicional selo informativo de problemas técnicos e entrou um intervalo comercial de três minutos enquanto Fernando tomava o seu remédio e a produção borrifava os seus olhos vermelhos com água e ajeitava a maquiagem. Voltou a apresentar normalmente, superando com a sua elegância habitual a adversidade de saúde pela qual acabara de passar. Só não conseguiu disfarçar a vermelhidão dos olhos.

Em sua casa, Francisca dava gargalhadas quando via Fernando tossir e espirrar na abertura do telejornal. Chamou a atenção do marido e dos filhos. Acreditava que ninguém descobriria. Ledo engano. No dia seguinte foi demitida por justa causa e pessoalmente pelo dono da emissora. O desespero e a sede de vingança por ter perdido a vaga de estrela do noticiário a fez esquecer que a redação era monitorada por câmeras de segurança. Um recurso tão óbvio que até as crianças sabem disso.

E-mails ameaçadores vindos do endereço eletrônico de Francisca começaram a entrar na caixa de mensagens de Fernando. Ele ignorou. Depois apareceram os torpedos. E também os telefonemas com voz feminina. O jovem jornalista não deu queixa. Até sua esposa grávida receber uma encomenda com duas aranhas venenosas.

Pelo remetente, a polícia prendeu Francisca Patrese, a ex-apresentadora do Jornal das Oito da TVNEWS. Ela foi indiciada por ameaça e tentativa de homicídio. Acusação da qual saiu absolvida.

Durante o processo, a polícia investigou e identificou que o verdadeiro autor das ameaças por telefone, e-mail, mensagens de celular, e os aracnídeos peçonhentos era o veterano âncora Júlio Orestes. Mesmo desligado da emissora tinha informantes lá dentro. Um deles ouviu o juramento de vingança feito por Francisca, de cabeça quente, quando do seu afastamento do telejornal. Orestes contratou um hacker para invadir o computador de Francisca e enviar os e-mails. O celular foi clonado. E as aranhas saíram de um instituto de pesquisas biológicas depois de um funcionário receber uma propina. Tudo que o aposentado jornalista queria era se vingar de Francisca por ter lhe tirado o seu posto de âncora que ocupava há trinta anos.

Júlio Orestes foi preso e condenado por corrupção ativa, ameaça e tentativa de homicídio. Francisca ganhou uma indenização com a qual abriu uma produtora e criou um programa feminino num horário local comprado para ser exibido no meio da madrugada de quarta-feira. Já Fernando perdoou Francisca pelo desodorante no estúdio, única culpa que a colega teve, e tornou-se o seu único e verdadeiro amigo. A primeira ajuda que ele pediu foi como recuperar o seu posto de âncora, perdido para uma bela e jovem repórter que o substituiu definitivamente por causa dos índices de audiência.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
 Bookess - http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe -http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu  blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores





Crepúsculo

* Por César Veneziani


O Sol se pondo é belo e triste e cor
E a nuvem mancha o manto azul que vai
Adormecer fechando o olho que cai
Tal qual quem presta a um deus algum favor.

E quando o Sol bem lento ao largo for
Cumprir sua sina e assim da cena sai,
Se instala o escuro, o breu, o horror! Ai, ai...
É a hora então que forte vem a dor.

E o medo salta grave e treme o senso,
Mas não da luz que falta e gera o escuro
E sim da solidão: pavor intenso.

E busco a força lá no fundo, eu juro!
E num esforço grande, enorme, imenso,
Meus toscos erros outra vez aturo.


* Poeta
A fuga


* Por Conceição Pazzola


Abriu a porta devagar e o vento da noite penetrou nos seus poros, quase o fazendo retroceder, voltar para a cama quentinha e esquecer tudo. Há dias martelava o juízo imaginando a hora da decisão. Não havia mais lugar para o arrependimento.

Estava cansado de discussões que não levavam a nada. Segurou a alça da mala já pronta aos seus pés, fechou a porta de mansinho e saiu pelo corredor. Àquela hora da madrugada, nem viv’alma. Chamou o elevador sem olhar para trás, quando chegou arrastou a mala e apertou o térreo.

Subitamente, o elevador parou entre um andar e outro. Que fazer? Os minutos passaram, transformaram-se em horas e nada aconteceu. Suando em bicas, apertou o alarme na esperança de que alguém com insônia ouvisse, mas nada aconteceu. Sem ter o que fazer, resignou-se; deitou no chão e ali adormeceu.

Não sabe quantas horas dormiu. De repente, a porta do elevador abriu e uma mulher entrou. Ao vê-lo estirado no chão, julgou que estivesse morto e se pôs a gritar. Em breve, acudiu gente de toda parte, e segurando a porta do elevador o suspenderam nos braços na intenção de socorrê-lo, sem lhe dar tempo de explicar-se o puseram num táxi e o levaram para o hospital mais próximo.

Cada vez mais irritado, viu os enfermeiros acudirem e o carregarem numa maca para o internamento. Gritou que estava bem, estivera apenas dormindo no elevador que se quebrara desde a madrugada. O médico que o atendeu balançou a cabeça e disse que haviam errado de endereço. Aquele homem, referindo-se a ele, precisava ser internado com urgência num manicômio.

Sem esperar que os bondosos vizinhos obedecessem ao médico, ele correu para a porta do hospital apavorado, atravessou a rua e desapareceu dentro do metrô.


* Poetisa e contista

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Literário: Um blog que pensa

(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)

LINHA DO TEMPO: Dez anos, três meses e dois dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – O pregador que não falava ao vento.

Coluna De Corpo e Alma – Mara Narciso, crônica, “Invasão da privacidade de Lampião, o Rei do Cangaço”.

Coluna Verde Vale – Urda Alice Klueger, crônica, “Ar polar”.

Coluna Em Verso e Prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, poema, “Vocação”.

Coluna Porta Aberta – Fabiana Bórgia, poema, “Overdose”.

Coluna Porta Aberta – João Luiz de Almeida Machado, artigo, “Aprender a observar”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com 
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



  
O pregador que não falava ao vento



O padre Antonio Vieira, um dos melhores, senão o melhor dos estilistas de língua portuguesa, estranhamente é pouco lido até por eruditos, por mestres de Literatura e por pessoas de reconhecido bom gosto literário. Atribuo este fato a uma série de fatores, como pouca divulgação, falta de informação adequada, mas, principalmente, ao preconceito. No entanto foi alguém que buscou atingir não só o intelecto das pessoas a quem pregava, mas ao seu âmago. Não por acaso afirmou, em certa ocasião: “Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras”. E estas ele elaborou em profusão!

Passei por algumas experiências que comprovam a minha impressão de preconceito em relação a Antonio Vieira. Sempre que posso, em palestras que profiro e em contato com jovens com pretensão a se tornarem escritores, recomendo a leitura dos “Sermões”. Justifico explicando que seu autor, entre outras tantas virtudes, é modelo a ser seguido da utilização de metáforas não apenas em poesia (que não era seu caso, pois não se tratava de um poeta), mas também em prosa. Alguns (poucos) atendem à recomendação e, invariavelmente, confessam-se entusiasmados com a escrita do emérito pregador. Outros tantos, todavia, resistem e fogem das preciosas lições – senão de moral e de fé, pelo menos do perito manejo do idioma – com desculpas sem pé e nem cabeça.

Arrolam uma série de pretextos – a meu ver inconsistentes e pueris – para justificar o motivo de se recusarem a ler esses textos que tanto proveito lhes trariam. A maioria argumenta que, por razões de opção religiosa, por não ser católica, ou por não ter nenhuma crença  e ser atéia (condição com a qual não concordo, mas respeito, por se tratar de questão de foro íntimo de cada um), não se interessa por “assuntos de religião”. Ocorre que os sermões de Vieira, embora destinados (óbvio) a fieis da Igreja a que servia, não tratam, apenas, de questões de fé. Trazem profundas mensagens filosóficas.

São lições de vida que cabem tanto a católicos quanto a evangélicos. Nada têm a ver com a crença de cristãos (com suas milhares de denominações), muçulmanos, budistas etc.etc.etc. . Transmitem, sobretudo, princípios universais de humanidade, que deveriam nortear os homens, não importa qual seja a sua crença. Ademais, salvo uma ou outra exceção em que determinado sermão é especificamente de dogma católico, a imensa maioria traz, em algum ponto, conceitos filosóficos, antropológicos, enfim humanos, úteis para todos. Separados, podem ser lidos como autênticos ensaios dessas disciplinas. E, o que é melhor, expostos numa linguagem clara, simples, objetiva, direta, sem jargões e nem citações cansativas e inúteis e rigorosamente corretos do ponto de vista lingüístico.

Ainda assim, há quem os considere “retóricos e discursivos”. Tinham, porém, que ser assim. Os sermões de Vieira não foram escritos para “leitores”, mas para “ouvintes”. Originalmente, foram concebidos como roteiros para organizar a fala de um orador, ou pregador, como queiram. Tinham que primar pela clareza e simplicidade, pois destinavam-se a pessoas que não sabiam ler, numa época em que a maioria da população mundial era analfabeta. Vieira tinha que recorrer a metáforas para o pleno entendimento dos fieis das mensagens que passava. Estas, todavia, não podiam ser complexas e nem surreais. Precisavam ser simples, sem serem simplórias. E ele utilizou-as com uma perícia quase inigualável.

Exemplo? Raios, relâmpagos e trovões, como neste trecho do “Sermão da Sexagésima”: “A nuvem tem relâmpago, tem trovão e tem raio: relâmpago para os olhos, trovão para os ouvidos, raio para o coração: com o relâmpago alumia, com o trovão assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relâmpago a muitos e o trovão a todos. Assim há de ser a voz do pregador: um trovão do céu, que assombre e faça tremer o mundo”. Querem outro? Palavras e ecos: “Tudo o que entra pelos ouvidos faz eco no coração, e conforme está disposto o coração, assim se formam os ecos”. Ou verdade e justiça: “A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena. A verdade não: a cada um dá o seu, como justiça”.

Tratou, ainda, da formosura e utilidade da luz: “Há coisa mais formosa, há coisa mais útil, há coisa mais necessária no mundo, que a luz? Pelo contrário, há coisa mais feia, há coisa mais horrenda, há coisa mais inútil, há coisa mais cheia de inconvenientes, que as trevas? Não são as trevas a capa dos latrocínios, terceiras dos adultérios, as cúmplices e consentidoras dos maiores insultos, das maiores enormidades que se cometem no mundo? Pois como é possível que homens com olhos e com entendimento, antepusessem as trevas à luz?” E vai por aí afora.

Citar Vieira, como se vê, é uma “profilaxia” da inteligência, uma iluminação da alma, um banquete de sabedoria. Seus sermões, desde que nos toquem, devolvem-nos a humildade e nos fazem refletir sobre o que de fato somos. E, principalmente, que tudo, absolutamente tudo passa. É o que nos lembra, neste trecho de um de seus tantos sermões: “Esta casa de que vos jactais ser senhor, por que é vossa? Porque a herdei de meu pai; e vosso pai de quem a houve? Do meu avô; e de quem a houve vosso avô? De meu bisavô; e vosso bisavô de quem? De meu trisavô. Já não tendes palavras com que prosseguir de quem mais foi, e a quem mais passou essa casa, que chamais vossa. Pois assim como ela passou, e vossos antepassados passaram por ela, assim ela e vós também haveis de passar. Por este modo sem firmeza, nem estabilidade alguma, estão sempre passando neste mundo as casas, as quintas, as herdades, os morgados: uns, porque os faz passar a morte, outros, porque os manda passar a justiça, outros, porque os convida a passar a riqueza dos que os compram, outros, porque os obriga a necessidade dos que os vendem, outros, porque a força e o poder os rouba e senhoreia por violência; em suma, que não há pedra, nem telha, nem planta, nem raiz, nem palmo de terra na terra, que não esteja sempre passando, porque tudo passa”.

Boa leitura.


O Editor.

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Invasão da privacidade de Lampião, o Rei do Cangaço

* Por Mara Narciso


A internet nos joga imagens que chegam de mau-jeito. No Facebook, pode-se deparar com um carro vermelho, parecendo esportivo, e olhando melhor, vê-se que é um carro sem capota, rasgado num desastre, com cinco passageiros decapitados. Mas boas coisas também chegam de forma inesperada. Achei uma relíquia, um filme de 1936/37, sem áudio, com duração de 14 minutos, gravado por Benjamin Abrahão, retratando Lampião, o Rei do Cangaço em carne e osso. Hoje é Cult, mas naquela época os cangaceiros barbarizaram por todo o nordeste, exceto Piauí e Maranhão. Ver a sua rotina, de há quase 80 anos, foi despir um mito.

Na caatinga nordestina, os cangaceiros, juntamente com suas mulheres, desfilam diante da câmera, um objeto raro. Aquela turma, que imaginamos selvagem, sai-se bem. O filme, sequestrado na época de Getúlio Vargas, reapareceu, sendo restaurado, sofrendo cortes e acréscimos. Qual seria a motivação daqueles homens e mulheres? Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, porque iluminava a noite com o clarão dos tiros, era chamado de “Capitão” pelos colegas. Começou, junto com dois irmãos, vingando seu pai, e entrou para a história. Os cangaceiros seria uma quadrilha de frios criminosos ou corajosos justiceiros? Invadiam cidades e fazendas, saqueando, matando, estuprando, torturando, mutilando, levando tudo. Caso quisessem se explicar, o que diriam? Justificariam seus crimes?

Na preciosa película, os cangaceiros se mostram nem tímidos, nem exibicionistas, mas, pela época, até desinibidos, pois nenhum deles mostrou-se apreensivo. Considerando-se os precários recursos, ainda que seguissem roteiro pré-estabelecido, o resultado envolve, seduz, encanta.

Homens e mulheres, brancos em sua maioria, de cabelos grandes, são jovens e seu labor é roubar. A paisagem tórrida, com suas escassas árvores e muito vento, poeira e cactos, ambientava gente rude, porém, com pitadas de civilização plantada no meio do mato. A ação começa com um roubo de gado, depois, o acampamento, onde os personagens, ora andando, ora sentados lado a lado, flertam com a câmera. Diante da seca, a rotina de pegar água do rio, em potes, é relevante, assim como a visão de um homem bebendo água em grandes goles, sem, no entanto, encostar a boca no cantil. O comportamento do grupo mostra hierarquia, e parece estar em constante alerta, como se tivesse de fugir a qualquer momento.

Ao todo não tem 50 pessoas, e mesmo em lugar quente, usam roupas pesadas para se proteger do sol e dos espinhos. As mulheres têm importância e são respeitadas. Aparecem de vestido ou de roupa de couro, como os homens, quando em traje de viagem. Uma delas recebe vários cordões, provavelmente de ouro, produto de roubo. Vai colocando-os no pescoço e por fim, orgulhosa, põe um chapéu. Cangaceiros cuidam da aparência, olham-se no espelho, penteiam-se, passam perfume, lavam roupas e o cachorro. Exibem-se para o futuro, como se, com o olhar, pudessem falar para a posteridade, antecipando a importância, que de fato adquiririam. Para isso, mostram-se lendo jornal ou livro, escrevendo, olhando em binóculo, contando dinheiro, observando um cartaz. São alegres, divertem-se comendo, dançando, rindo, bebendo cachaça, fumando, caçando, mostrando armas. Parecem brincar, mas impõem respeito pelo poder da força. Cuidam do espírito, ajoelhados rezam compungidos e se persignam. Trabalham descarnando boi, montando barraca, fazendo colchão com ramos, cozinhando. Quando passam em fila a pé ou a cavalo diante da câmera, olham para quem os filma.

Penetrar no passado autêntico, quase virgem, dos cangaceiros, é como espiar algo secreto, que não poderia ser visto. Ainda que estivessem posando, soa estranha esta súbita intimidade com Virgulino Ferreira da Silva (1898/1938), alfabetizado e usuário de óculos, ambos, incomuns naquelas bandas e a sua Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita. De repente, as cabeças degoladas, arrumadas numa escadaria, batem no espectador como pancada, porque em minutos os criminosos ganharam incauta testemunha que já lhes tem simpatia. É preciso aprender a ser isento, para melhor contar uma história.


*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



Ar polar


* Por Urda Alice Klueger


(Para Eduardo Venera dos Santos Filho)


Não há como, num dia como este, em que a manhã já vem pejada de sensações indescritíveis das coisas mais intensas já vividas desde as mais antigas lembranças, decerto tangidas pelos mistérios deste clima de outono em pleno começo de janeiro, não há como, repito, não sentar e escrever a respeito.

A massa de ar seco e adstringente decerto se desprendeu lá do Pólo Sul e tomou o rumo do verão inadvertidamente, e nesse seu rolar pelo entorno do planeta foi acendendo lembranças e sensações que estavam como que esquecidas, dormitando nas pessoas e nas coisas, e imagino quantos frutos, hoje, estão pensando que é tempo de começar a amadurecer, e quantas flores pensam que é o momento de formar as sementes que garantirão sua genética, e quantas aves não sentirão aquele primeiro tremor que as fará pensar que começa a chegar o tempo em que devem se preparar para a migração – as forças das estações são terrivelmente fortes, e esse prelúdio inesperado de outono traz no seu bojo, também, para humanos como eu, este caleidoscópio intenso da vida, e me deixa com esta vontade de chorar por toda a torrente de emoções recordadas inesperadamente, as maiores, as mais intensas.

É um dia para ver e sentir a plenitude da vida, não apenas a que já passou, mas decerto a que ainda virá, dia de girândola de ânsias, alegrias e sofrimentos, e fica até difícil escolher algum desses momentos ou imagens que perpassam por meu corpo e meu espírito e que me enchem de perturbação e de profundidade, como fica uma fruta cheia de sumo no auge do verão.

Penso: há quarenta anos atrás todos os dias eram assim, e então uma flecha  de dor atravessa o tempo e me atinge com todo o seu mistério e sua magia, e aqueles anos de 1972 e 1973 voltam com toda a força e me derreiam. Sempre falo que o amor é uma coisa que jamais passa e há pessoas que não me creem quando tal falo. O amor pode até ficar quieto, dormitando indefinidamente como as sementes dormem no inverno, mas como as sementes que gerarão outras e outras, ele sempre irá se reproduzir e somar – jamais morre. Se o amor morrer é porque amor não era, mas uma semente fanada, que não teria a graça da reprodução. E neste dia de vento terral fora de tempo, aquele tempo que parecia perdido, aquele tempo que já faz quarenta anos ressurge e me toma sem pedir licença e perdão, e lembro dos cheiros, das ternuras, de músicas do Roberto, de Caetano cantando “Como dois e dois” e Chico falando do seu ”Menino Jesus”, e há um gravador a pilha tocando fitas vídeo cassetes no cheiro bom de um fusca verdinho claro e a sombra de eucaliptos lá no morro da velha caixa d’água, e penso: por que sobrevivi quarenta anos desde então? Por que hoje penso viver até os 105, como Dona Canô e o Niemeyer? Há sentido em viver tanto depois que o sentido da vida parte?

Há quarenta anos todos os dias tinham a intensidade deste dia de hoje, e viver era tão embriagante que eu não acreditaria se me dissessem que toda a vida não seria assim, que haveria a profunda ruptura que houve e eu sobreviveria.

Então hoje amanhece este dia que deve estar mexendo com todas as formas de vida, as materiais e as imateriais, e o mundo está tão mágico que eu posso entender algumas coisas, como a de que há diversos sentidos para se viver, e quando são sentidos de amor, todos se somam. Então deve ser bom viver até os 105 – sempre haverá novos dias como este de hoje onde existirão as revivências das melhores coisas que se viveu, e ao redor de mim poderão flutuar no ar as velhas músicas do Roberto junto com aquela que fala ”… Comandante Che Guevara…” e as cantigas religiosas que a minha mãe cantava em manhãs assim e as imagens da Venezuela na data de ontem e um poema de Mário Benedetti que diz “… en la calle, codo a codo…”.

Esta massa de ar polar repercute em mim como o sino de uma catedral, e agradeço ao universo por poder ser assim.

Blumenau, 11 de janeiro de 2013.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).