segunda-feira, 31 de maio de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – O anjo da perna torta

Coluna Pessoas e histórias – Eduardo Murta, conto “Bola oito, caçapa do canto”.

Coluna Sensibilidade e sutilezas – Aliene Coutinho, poema “Sou assim”.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araújo Nonato do Amaral, Reflexões “Curtas e grossas”.

Coluna Planeta Manjaterra – Renato Manjaterra, crônica “Na Ubiban não gostam de mulher!”.

Coluna Porta Aberta – J. R. de Almeida Pinto, retificação de editorial “Agradecimento e retificação sobre Cassiano Nunes em “Poesia de Brasília – duas tendências”..

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

O anjo da perna torta

Caros leitores, boa tarde.
O futebol, por suas características peculiares, é um dos esportes que mais se prestam à Literatura. Nos pouco mais de noventa minutos em que se desenvolve uma disputa, ocorrem dramas, comédias, tragédias etc. presenciadas, muitas vezes, por multidões que chegam a equivaler à toda a população de uma cidade de porte médio. E não somente o jogo, como tudo o que o cerca, antes e depois, são dignos das mais brilhantes penas e podem gerar grandes romances, contos e novelas. Mas o gênero a que o futebol mais se presta é a poesia.
Grandes ídolos do passado tiveram seus feitos exaltados e imortalizados por grandes poetas, que os chegaram, até, a mitificar. Poucos jogadores, no entanto, inspiraram mais escritores do que Manoel Francisco dos Santos. Dito assim, expondo seu nome de batismo a seco, poucos associam-no a um dos grandes gênios dos estádios, que encantaram e alegraram multidões, tanto a ponto de ser alcunhado de “A alegria do povo”. O leitor inteligente já percebeu que me refiro a Garrincha, ou ao “Mané das Pernas Tortas”.
Poucos ídolos foram mais reverenciados nos gramados e, simultaneamente. tiveram a vida real mais dramática e sofrida, do que esse fenômeno.. Esse homem, cujo nome consta em todas as relações dos mais talentosos craques do mundo de todos os tempos, morreu pobre, esquecido, abandonado e na semi-indigência. Não é esse aspecto, porém, que quero enfocar. É o do mito, que encantou multidões, recebeu homenagens e mais homenagens post-mortem e inspirou centenas dos nossos melhores poetas.
Em rápida pesquisa na internet, localizei tantos poemas que lhe foram dedicados que, se reunidos, comporiam toda uma coleção de antologias e não somente um único volume. Separtei, um tanto quanto a esmo, as produções que mais me agradaram (das que li, claro, pois muitas e muitas e muitas ficaram por ler) e lhes trago, para exemplificar o quanto o futebol e, principalmente, um de seus maiores mitos, tende a andar de mãos dadas com a literatura de boa qualidade.
O primeiro poema que partilho com vocês é de Marco Polo Guimarães, intitula-se, simplesmente, “Garrincha”, e diz: “ele tinha a perna torta/perna troncha, distorcida/perna errada, perna virada/invertida, dobrada, partida//era como fosse uma perna/por uma bala atingida/mas a bala que é a morte/ele a transformara em vida//e virava a bala em bala/de chupar multicolorida/ou virava a bala em bola/elétrica, trica, divertida”. Gostaram? Eu gostei!
Outro poema, este de Aníbal Beça, que o poeta dedicou ao amigo Antonio Carlos Secchin, tem este título comprido, mas que lhe cabe a caráter: “Celebrando Garrincha, anto inventor da ginga”. Diz: “Frente a frente/quatro colunas/de dois templos em ebulição e/raios arqueados/oscilam/ossos/músculos/nervos/pernas em balanço://arquitetura móvel/para o pêndulo de sur-/presa./Não se sabe/ao certo/- dono de um mundo em rotação/verde/rolado no plano pleno de desejos - /a direção/daquele equilibrando a esfera/a fera/perseguida/se para a direita/ou/para a esquerda/se para trás/ou pelo vão/que se arre-/ganha/à frente/(abóbada de igreja livre/para a passagem do andor/com seu santo rotundo)/No frêmito feroz/olhos vivos e/lentes onduladas/se congelam no cristal/da ânsia espectável/Súbito/pára/e/dispara/navegante da luz/em direção ao corpo/só-/lido/num fio evanescente/de malabarismo alumbrado/o espectro do clown/Parte/com ela/a esfera/a fera//aos olhos de espanto/de feras de outras esferas/Vai/Não vai/Foi”.
Poetas de maior projeção literária também se inspiraram em Garrincha e nos legaram excelentes produções. Um deles foi o já saudoso jornalista Armando Nogueira, recentemente falecido, que além de amante da arte e das artimanhas do Mané da Pena Torta, era botafoguense ferrenho, time que revelou e projetou esse gênio do futebol. Compôs-lhe, entre tantos e tantos textos, este poema intitulado “A flor e a bola”, tão bom, que foi afixado em um banner que fica junto ao busto de “Anjo de Perna Torta” em frente ao Estádio do Engenhão. Mestre Armando diz: “ "Um dia, um poeta entreabriu as pétalas de uma rosa brandante./No íntimo da flor encontrou, vislumbrado, um verão inteiro./Eu também quis ver de perto a alma de outro devaneio, a bola./ Despetalei os gomos, um por um, e encontrei um drible de Garrincha". Como se vê, é um gênio das letras louvando um gênio da bola.
O poeta Sérgio de Castro Pinto também se inspirou nesse craque, com apelido de pássaro. São dele estes versos, escritos todos em letras minúsculas, embora o sentimento que os inspirou seja maiúsculo, extraordinário e grandioso, intitulado “Garrincha”:: “quando garrincha dribla, fica./o adversário retém/na memória/a imagem da bola/entre os parênteses/das pernas tortas./quando garrincha dribla,/fica o adversário/crava na memória/a imagem da bola/qual uma seta/no retesado arco/das pernas tortas/quando garrincha dribla,/fica o adversário/pra contar a história/de uma camisa/cujo sete às costas/conduzia a bola/qual uma seta/no retesado arco/das pernas tortas”.
Mas ainda não acabei. Trago, para o seu deleite, paciente leitor, um poema do nosso sau8doso e sempre lembrado poetinha (que falta que você nos faz!), Vinícius de Moraes, cujo título é o mesmo destas considerações, ou seja, “O anjo de pernas tortas”, e que diz: “A um passe de Didi, Garrincha avança/colado o couro aos pés, o olhar atento,/dribla um, dribla dois, depois descansa/como a medir o lance de momento.//Vem-lhe o pressentimento, ele se lança,/mais rápido que o próprio pensamento/dribla mais um, mais dois, a bola trança/feliz entre seus pés – em pé de vento!//Num só transporte, a multidão contrita/em ato de morte, se levanta e grita/seu uníssono canto de esperança.//Garrincha, o anjo, escuta e atende: Gooooool!/É pura imagem em G que chuta um O/dentro da meta em L. É pura dança”.
Antes de encerrar, quero meter, também, minha colher de pau nesse angu. Como os citados (e as centenas que não citei por falta de espaço), igualmente me inspirei nesse gênio da bola e escrevi um poema para Garrincha, em uma época que, hoje sei, foi a mais criativa e fértil da minha vida. Era um período em que eu não tinha nenhuma preocupação formal. O que queria era escrever, escrever e escrever. E, de fato, escrevi, e muito.
O poema que partilho com vocês foi escrito em 22 de abril de 1963. Inspirou-se na performance do Maná na Copa do Mundo de 1962, no Chile, quando, face à ausência de Pelé, comandou a Seleção Brasileira na conquista do bicampeonato mundial. Seu título é “Guerreiro alado” e diz: “Garrincha, pequeno pássaro encantado,/alado guerreiro, ingênuo e inocente,/que faz desfilar, no presente, galhardia,/e humor e graça, as sementes do amanhã,/e que alimenta nossa fragílima fantasia/no palco grandioso do Maracanã.// Mameluco cavaleiro do sonho,/de auriverde manto sagrado,/corcel veloz, galopa e voa/a felicidade perfeita dos simples/nos gramados da América e Europa.//Pés alados. Pés de anjo. Pés calçados/de couro e poesia, de poder e magia,/na luta heróica, com espírito lúdico,/faz acenos familiares à glória/e, em danças, coreografias, corrupios,/bêbedo de luz, sorve o vinho da vitória.//Líder nato, sem bazófia ou arrogância,/dançando, com dez exímios bailarinos,/tece, com os pés, o painel encantado da vida/no teatro, dramática arena dos bravos,/do Estádio Nacional de Santiago.//A fama é tênue e pesa toneladas./Heróis despencam no esquecimento/vítimas da ingratidão covarde e infeliz./Mas Garrincha voa, flutua, ganha alento/e, com arte, com magia e encantamento/desperta, orgulha e enaltece um país”.

Certamente, voltarei ao assunto.

Boa leitura.

O Editor.



Bola oito, caçapa do canto

* Por Eduardo Murta

Bola oito. Caçapa do canto. A platéia, o adversário, ninguém crê. Mas bastava a ele, Simão, acreditar. Lustrou a ponta do taco, revisitou a trajetória, fez que beijou a probabilidade quase matemática de acerto e... Um golpe de mão abortou a jogada em pleno ar, travou o bastão no ensaio para a tacada. Ele girando o pescoço, atônito. Foi dar com aquela mirada de um fevereiro em que ele já não fazia conta, décadas atrás. Bastou. Porque lhe assopraram os ventos daquela véspera de Carnaval em que já se havia desfeito do relógio.

Da camisa. Do sapato social com fivela. Da correntinha de Imaculada Conceição. Da calça de tergal e, sobrando as cuecas, aquela mulher comprou-lhe o passe. O bamba da sinuca, das rinhas de galo, do carteado, amealhado por uma.... por uma pantera que a metade masculina da cidade beijaria os pés por honra de uma simples contradança. Arrematado, então pinçava-se a circunstância para um outro plano. O de entregas que beiravam a devoção. O mel fresco extraído três dobras de montanha dali. As ramas de azaléia salpicadas a cada centímetro da casa. O borboletário que armava e desarmava todas as manhãs, para encantá-la. E aquele jeito com que só ele, ninguém mais, a chamava. Repetindo Lu, Lu, como gatos desamparados.

Daí que não fosse casual que, por toda a vida, lhe seguissem as lembranças daquela madrugada em que o encontrara esmilingüido, a parte de cima da dentadura já empenhada na jogatina. Exibida como troféu. E ela mesma, rolinhos à cabeça, camisolão maldisfarçado pelo robe, entrando nas apostas para restaurar-lhe a boca. Sairiam dali com a promessa, repisada, de que não deixaria se repetir aquela história.

Ficaria no prometido. Porque, confiram, é Simão ali à porta do cartório, pronto para pôr em disputa a fazenda herdada do avô, meia dúzia de cabras e a coleção de discos, vinis raros, de Bienvenido Granda. Ele e verdureiro Dalmy fazendo mira, a 50 metros do sino da igreja. Os 38 na cintura, imitando bandoleiros mexicanos. Na contagem do três, Lu e Maria Lúcia, versão anjo da guarda de primeiras-damas, dobrando a esquina para apartar os tiros.
Mais que o risco de prisão, patrimônio dilapidado, não reservariam chance nem no purgatório fazendo aquilo. Se entreolharam, os bigodes perdendo a envergadura tensa, e foram afastando as mãos das armas. A multidão ensaiando o coro de vaias. Simão só se vingaria do desconcerto tempos depois, circulando triunfal pela cidade com as três leoas e o elefante paramentado, ganhos na prova de laço em vaquejada.

Às negativas de Lu em transformar o quintal num circo, fez o caminho de volta com o mesmo ar de celebridade. Não contou aos amigos, claro, sobre a sentença. Inventou falta de adaptação dos animais ao clima. Impropriedade química para o esterco que planejara comercializar. Jura, no fundo, que daria certo se ficassem. Cederia era para não se indispor. É nessas tantas concessões que ele pensa agora, namorando a bola oito.
Se vira a Lu, que retém o taco, e pede que o libere. Porque não perderia. Era caçapa do canto. Ela reluta. Aliança de casamento, era a primeira vez que Simão punha em aposta. Não permitiria. Ele insiste, invoca confiança. Dá com ela descendo as escadas do salão de bilhar. Prometendo nunca mais. Confere a platéia, o adversário. E arrisca.

São seis da manhã desta quarta, e Simão, a distância calculada, chama ao portão de casa. Baixinho, cuidadoso. Os janelões se abrem, cara amarrada. Ele acena, jeito menino, exibindo a aliança que mandara lustrar. E, do lado, a mulinha Pipoca. Laços rosados dando ar de presente. Para a sua Lu. Bola oito. Caçapa do canto. Tiro certeiro. Era capaz de apostar, ousassem, que não haveria como ela resistir.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.



Sou assim

* Por Aliene Coutinho

Sou transparente como água.
E como água, reflito
o que seus olhos veem.
Nada mais, além disso.
Cada um tem de mim
o que semeou e plantou.
Ação e reação.
Água que corre
por entre pedras,
e sobre elas.
Simplesmente.

* Jornalista e professora de Telejornalismo



Curtas e grossas

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

Do pranto

A esposa se debulha em lágrimas na pia.
- Já falei mulher! Cebola roxa arde menos!

Fúria interna

Atendente
- Senhora esse modelo é bonito, mas para o seu tamanho só GG.

Tempestade à vista

- Dayse, finalmente achei a bendita bota que eu tanto queria e ainda por cima na promoção!
- Como assim moço? Não tem o número 39???

Frustração

- Benhê, fiz aquela comidinha que você adooora!
- E aí amor? Gostou?
O maridão responde de olho no futebol:
- Tá faltando um salzinho Jujubinha.

Golpe fatal

O marido chega em casa tarde da noite. A mulher, chorosa:
- Precisamos discutir a relação.
O homem se apressa para ir ao banheiro.
- Que mané relação! Prepara um chá pra mim que tô cheio de gases! Nooossa!

* Poetisa e contista



Na Uniban não gostam de mulher!

* Por Renato Manjaterra

A se seguir a linha machista e podre das ofensas dos alunos da Uniban (contra a estudante Geysa Arruda), só se pode concluir que não gostam de mulher. Já em um raciocínio mais profundo, se deduz que são mais do que machistas, são verdadeiros machões e, no ambiente "deles", a mulher não tem o direito de mostrar a dobrinha da bunda.

Um pouquinho mais de raciocínio e a conclusão continua sendo a de que eles não gostam de mulher. Só não vou me alongar na defesa da moça porque ela também não está lá com essa bola toda. Por mais que a estúpida direção dessa estúpida instituição se esforce, não vou colaborar para o surgimento de mais uma celebridade-bunda.
E, antes que me perguntem: pelo que vi até agora... não a dispensaria. Comeria fácil.

* Jornalista e escritor, webdesigner, colunista esportivo, pontepretano de quatro costados, autor do livro “Colinas, Pará” com prefácio do Senador Eduardo Suplicy, bacharel em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCAMP, blog http://manjaterra.blogspot.com



Agradecimento e retificação sobre Cassiano Nunes em “Poesia de Brasília - duas tendências”

Por José Roberto Almeida Pinto

Caro Pedro Bondaczuk,

com surpresa e satisfação, vi que o “Literário” tratou, em seu editorial de 14 de abril (“Poesia culta e poesia marginal”), de um texto que escrevi muitos anos atrás, como tese de mestrado, intitulado Poesia de Brasília – duas tendências, de 1983, publicado em 2002 pela Editora Thesaurus. A distância no tempo fez-me lembrar outra surpresa do mesmo gênero: o texto só veio a ser editado porque Joanyr de Oliveira o “descobriu”, quase duas décadas depois, e, com seu espírito desprendido, tomou pessoalmente todas as providências para a publicação.

Desde que li o editorial, e na presunção de que é de sua autoria, pensava em enviar-lhe uma mensagem para agradecer seus comentários. Mas a mesma vida, que prega surpresas como as do Joanyr e do senhor, vai pregando outras, que nos obrigam a postergar planos. Além disso, confesso que, sem ser candidato a “poeta marginal” em qualquer dos sentidos que se atribua à expressão, tenho a contradição de admirar profundamente quem se dedica à divulgação da literatura e de me manter, geralmente, à margem (de resto, até onde saiba a geração dos chamados “poetas marginais” notabilizou-se, ao contrário, pela combatividade também no que diz respeito à divulgação...)

Ontem tive uma razão adicional para “sair da toca” e não adiar mais a intenção de escrever-lhe: a leitura de sua crônica de 28 de abril, em “O Escrivinhador”, sobre o poeta Cassiano Nunes, motivada pelo livro Cassiano Nunes: poesia e arte, de Maria de Jesus Evangelista. Essa crônica contém um engano que, se fosse possível, lhe pediria retificar – até porque o equívoco registra um suposto desacordo, absolutamente inexistente, entre a sua opinião e a minha. Explico-me.

Para começar, registro que, se o senhor é, como presumo, o autor do editorial que trata de Poesia de Brasília – duas tendências, estamos ambos de pleno acordo em enxergar com prudência, senão com desconfiança, quaisquer “classificações” de poemas, assim como estamos de pleno acordo em reconhecer a utilidade de determinadas classificações “para efeito de estudo”.

O que está por trás de nossa desconfiança é certamente que, conforme a leitura que se faça das classificações, elas podem tender a diminuir o alcance de uma obra, colocá-la artificialmente numa fôrma (com circunflexo...) e, portanto, servir mais para obscurecer seu estudo do que iluminá-lo. Temo que citar Max Weber nesse contexto possa parecer pedante, mas creio que a utilidade das classificações deriva de sua leitura como “tipos puros” ou “tipos ideais”, para tomar de empréstimo as conhecidas expressões de Weber. Na interpretação que julgo pertinente e proveitoso lembrar aqui, o “tipo ideal” de Weber constitui um “deliberado exagero da essência do fenômeno”, um “instrumento de compreensão”, que lança o foco sobre “o típico, o essencial”. Ou seja: os tipos ideais oferecem parâmetros com base nos quais se analisam as formas (sem circunflexo...) que, na realidade concreta, deles se avizinham ou distanciam, as formas mescladas, as formas de transição de um tipo a outro.

Acredito então que, ao vermos com prudência certas classificações empregadas nos estudos de literatura, mas admitirmos ao mesmo tempo sua utilidade, as estamos interpretando não como camisas-de-força, e sim como tipos-ideais. Raymond Aron observa que existe uma “tendência ao tipo-ideal” em “todos os conceitos usados nas ciências da cultura”. Parece-me que os conceitos usados na análise literária se encaixam nesse perfil.

Tenho a pretensão de entender que o editorial sobre Poesia de Brasília – duas tendências avaliou dessa maneira positiva (mais como “tipos ideais” do que como fôrmas) os conceitos de “poesia culta” e “poesia marginal” utilizados no texto, independentemente dos reparos que ambas as designações possam merecer, e efetivamente merecem. Fiquei particularmente satisfeito de constatar a acertada observação do editorial de que a divisão em “poesia culta” e “poesia marginal” não implica, no livro, juízo de valor sobre os poemas. É uma classificação, por assim dizer, “técnica”.

As duas categorias foram construídas a partir de quatro características dos poemas examinados: a linguagem, a temática, a posição que refletem em relação ao patrimônio cultural, e a concepção que transmitem do papel da poesia e do poeta. A “poesia culta” caracteriza-se pela preocupação com a elaboração da linguagem, que se traduz de diversas maneiras, entre as quais a variedade nas estruturas dos poemas e a constância no uso das figuras de retórica da área da metáfora; a universalidade dos temas; a inserção na tradição cultural e literária da humanidade, não com o sentido de contestá-la, mas com o ânimo de desenvolvê-la e renová-la; e a percepção do exercício da poesia como meio de realização ou aperfeiçoamento interno e externo. A “poesia marginal” destaca-se pelo coloquialismo da linguagem e, entre as figuras de retórica, pela ironia e os processos de repetição; no plano temático, ressalta a momentaneidade e as anotações rápidas de fatos circunstanciais, muitas vezes voltadas para incisiva crítica de comportamentos sociais e da situação política então prevalecente no país; vê de forma iconoclasta a tradição cultural; e desmistifica a poesia, o poeta e a própria “luta literária”.

Retomei esses pontos como moldura, que me pareceu conveniente, para desfazer o engano que figura na crônica de “O Escrivinhador” e sublinhar nosso total acordo com relação ao poeta Cassiano Nunes – ou, para ser mais preciso, com relação à inclusão de seus poemas vinculáveis a Brasília na categoria da “poesia culta”. Nunca é demais a ressalva de que essa categoria foi construída para “fins de estudo” de poemas que se poderiam julgar pertencentes à produção literária de Brasília num determinado período (até 1983) e não pretendeu, de modo algum, esgotar a riqueza de obras de autores diferentes, nem retirar de cada qual sua dimensão própria (“particular e intransferível”, como a noite de Anderson Braga Horta...)

Feita a ressalva, não há dúvida de que, nos termos da classificação proposta, os poemas de Cassiano Nunes, constantes dos livros Jornada e Madrugada, se filiam à “poesia culta”. Assim foram classificados em Poesia de Brasília – duas tendências, conforme os quatro critérios adotados. Bastam alguns exemplos para comprovar a filiação:

(1) a elaboração da linguagem, com rimas surpreendentes e figuras da área da metáfora

“Sonho rubro da infância
que em cinzas se desfaz!
Na avenida do Harlem
meus olhos choram jazz”.

(JOR)

“O sexo acendeu como um fósforo”

(MAD)

(2) a ênfase na temática universal da solidão

“Que quero? Que espero?
É capricho? Vício?
Não.
É a solidão
e o seu exercício”

(JOR)

“Tão acessíveis suas carnes claras,
tão disponível
o frescor de sua juventude!
Partem desajeitados
Com a recusa amável.
De novo, a solidão".

(MAD)

(3) a inserção na tradição cultural e literária, por referência explícita ou implícita (no segundo caso, a Drummond)

“O carinho mais quente
na promessa da cor
e que Camões chamava
a ‘pretidão do amor’”

(JOR)

“Chega um instante
em que, no amor,
não se procura mais pessoas”

(JOR)

(4) a percepção do papel da poesia e do poeta

“Afortunadamente
a Poesia surgiu
e transfigurou tudo”.

(MAD)

“O poeta é um estóico
de forma muito natural”.

(JOR)

Como informa, corretamente, o editorial de “Literário” de 14 de abril, Cassiano Nunes é um dos quatro autores cujos poemas analisei, em Poesia de Brasília – duas tendências, como representativos da “poesia culta”, juntamente com Anderson Braga Horta, Marly de Oliveira e Domingos Carvalho da Silva.

No entanto, a crônica de “O Escrevinhador” de 28 de abril último afirma, por equívoco, que:

“J. R. de Almeida Pinto destaca-o (Cassiano Nunes) em sua Poesia de Brasília – duas tendências... O que eu não esperava é que fosse classificado entre os quatro poetas que, no seu entender, simbolizam a ‘poesia de rua’, ou seja, a dos que não se preocupam com regras, definidos pelo autor como ‘marginais’ (reitero, sem nenhuma conotação pejorativa) ... É mero critério de avaliação de J.R. de Almeida Pinto. Eu, contudo, não classificaria esse emérito mestre das letras dessa forma, diante da vasta amostragem que tenho diante de mim de sua preciosa produção. Acho-o culto, cultíssimo”.

Peço-lhe, assim, que examine a possibilidade de retificar o engano de “O Escrevinhador”. Em Poesia de Brasília – duas tendências, os poemas de Cassiano Nunes são claramente incluídos na “poesia culta”, e não na “poesia marginal”. Acresce que tampouco usei, no livro, a expressão “poesia de rua”, nem considerei que a “poesia marginal” se definiria por “não se preocupar com regras”. Uma observação dessa natureza pode dar margem a outro equívoco, ou seja, o de se presumir que, por contraste, meu estudo sustentaria que a “poesia culta” se “preocuparia com regras”. Não disse nem uma coisa nem a outra. Utilizei, no texto, apenas os quatro critérios acima recordados.

Talvez o engano se tenha devido ao fato de que, num dos capítulos finais do livro, intitulado “Convergências”, são mencionados versos de Cassiano Nunes nos quais despontam características “típicas” da “poesia marginal”. Mas o objetivo desse capítulo era exatamente o de ressaltar que, “embora de forma esporádica, traços da poesia culta se encontram na poesia marginal e vice-versa”. Nele utilizei exemplos não só de Cassiano Nunes, mas também de todos os demais autores examinados no livro. Recorro de novo a Weber: o fato de tipos ideais não se encontrarem em casos históricos em forma pura “não é uma objeção válida a buscar-se sua formulação conceitual do modo mais aguçado possível”. Segundo Aron, a circunstância de que “na realidade, elementos pertencentes a diferentes tipos se combinem não contradiz a filosofia de Weber”. Ao contrário, é justamente “porque a realidade é confusa que nos devemos aproximar dela com idéias claras”. Será que o capítulo sobre as “convergências”, ao se aproximar da “realidade confusa”, acabou gerando confusão?...

Apreciei muito o espírito “não polemista” que, na mesma crônica de “O Escrevinhador”, o senhor indicou movê-lo em sua atuação literária, ou seja, alguém voltado para comentar textos de que gosta, e não para “tentar destruir o que os outros fazem”. Aqui no meu canto, à margem, acho que os polemistas e críticos também têm seu lugar, mas é ótimo ver em atividade pessoas com seu ânimo. Por favor, não interprete esta mensagem como polêmica. O fato é que estamos de inteiro acordo nos dois pontos fundamentais: (1) as classificações em literatura devem ser contempladas com prudência ou desconfiança, mas podem ser úteis para fins de estudo; e (2), entre as categorias de “poesia culta” e “poesia marginal”, tal como definidas a partir de certas características dos textos, os poemas de Cassiano Nunes devem ser inseridos, sem hesitação, na “poesia culta”.

Muito obrigado, não só pela atenção concedida ao livro, mas também por seu generoso comentário sobre meu poema “Remorso”.

Com o abraço amigo do
José Roberto de Almeida Pinto

PS: Caso o senhor se disponha a proceder à retificação que lhe solicito e prefira, para tanto, reproduzir a mensagem acima, autorizo-o, desde logo, a fazê-lo. Nesta hipótese, só lhe pediria que a reproduzisse na íntegra.
PS2: Candidato a poeta bissexto, não escrevi muito, mas, se o senhor tiver interesse, posso enviar-lhe um ou outro texto de que gosto mais do que “Remorso”, aproveitando que sua amabilidade já me fez sair da costumeira toca.
PS3: Envio cópia deste e-mail a outro endereço eletrônico meu, para certificar-me de que seguiu corretamente. Novo abraço, José Roberto.

domingo, 30 de maio de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – O mundo é uma bola

Coluna Direto do Arquivo – Deonísio da Silvai, crônica “Santo Antônio, tenente-coronel e almirante”.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica “Recompensa ou fim?”.

Coluna Clássicos – Isaac Asimov, conto, “Salvando a Humanidade”..

Coluna Porta Aberta – Pedro Silva, conto “O médio-direito”.

Coluna Porta Aberta – Patrick Raymundo de Moraes, poema “Virgínia, minha mãe”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

O mundo é uma bola

Caros leitores que nos prestigiam com sua leitura, boa tarde.
O mundo é uma bola... “Não diga!”, obtemperará, certamente, em tom de deboche, aquele sujeito chato, que escrutina nossos textos com uma poderosa lupa, em busca de imperfeições para nos escrachar, com inequívoco e característico ar de superioridade. “Se você não dissesse, eu não saberia”, aduzirá, cinicamente, para tornar a observação ainda mais ácida.
Ocorre, meu mau-humorado crítico que há reticências após “o mundo é uma bola”. Não se trata, pois, de nenhuma afirmação acaciana minha (em referência àquele personagem de Eça de Queiroz no romance “O primo Basílio”, o Conselheiro Acácio, que dizia solenemente as maiores obviedades do mundo como se fossem notáveis descobertas), mas é o título de um oportuno livro, lançado pela Editora Ática, como parte da coleção “Quero ler”. Por que a oportunidade? Isso sim é óbvio em vésperas de uma nova Copa do Mundo.
Trata-se de uma forma inteligente de unir três fatores dos mais populares do nosso tempo: futebol, literatura e humor. O próprio título da obra sugere essas três coisas. A bola é referência óbvia a esse esporte das multidões que, a cada quatro anos, polariza as atenções mundiais, com suas “batalhas” sem sangue, mas com vencedores e derrotados, com heróis e vilões, com suor e lágrimas em profusão (dos vencedores e dos perdedores, posto que derramadas por razões opostas). A palavra “mundo”, por seu turno, remete à reflexão, à generalização, à cuidadosa observação, tarefa principal de nós, escritores. E onde entra o humor nisso tudo?
Simples e, paradoxalmente, obscuro. Havia, há não muito, uma expressão bastante popular que era usada sempre que se ouvia uma anedota engraçada (algumas não têm graça nenhuma, convenhamos). Os ouvintes, em meio a gargalhadas e até a lágrimas derramadas de tanto rir, exclamavam, face à piada: “isso é uma bola!”. Por que era usada essa gíria? Não sei e nunca soube. Há já um bom tempo, porém, não a ouço, não pelo menos com o significado de “isso é muito engraçado”. As gírias, como se sabe, mudam ao sabor dos caprichos populares.
Mas o melhor do livro eu ainda não revelei. E não se trata, propriamente, do conteúdo, das histórias e crônicas saborosas versando, como já disse, sobre futebol. A parte que valoriza, sobremaneira, essa edição, não se refere, pois, ao “o quê” foi escrito e nem “como”, mas a quem escreveu.
A Editora Ática reuniu uma Seleção Brasileira de astros das letras de deixar Dunga morrendo de inveja e frustração. Exagero meu? Longe disso. Vejam só alguns dos escritores que integram a coletânea de “O mundo é uma bola”: Armando Nogueira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, José Roberto Torero, Lourenço Diaféria, Luís Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes, Moacyr Scliar, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz, Rubem Braga e Stanislaw Ponte Preta. Isso, dos autores de que me lembro (ah, esta memória que me trai sempre nas horas mais inoportunas!).
Como se vê, são os melhores das três áreas que o livro se propõe a tratar, e simultaneamente: futebol, literatura e humor. Digam-me, existe coisa mais gostosa de se ler do que isso? E ainda mais escrita por essas “feras”, por esses talentos, por esses craques que deixam Pelé, Maradona, Ronaldo Fenômeno, Messi, Zidane (e quem mais vocês queiram citar) no chinelo?
E olhem que não estou a soldo da Editora Ática para fazer propaganda do livro. Jamais contatei-a (embora não garanta que não vá contatá-la algum dia) para que, eventualmente, publicasse qualquer das minhas obras (tenho 18, rigorosamente inéditas). Nem mesmo ganhei meu exemplar de cortesia. Comprei-o em uma livraria e não me arrependi, é óbvio.
Escrevo com tanta ênfase e entusiasmo sobre “O mundo é uma bola” porque o li, deliciei-me com os 29 primorosos textos (pudera, escritos por quem os escreveu!) e, como já é meu costume, decidi partilhar minha euforia com vocês. Fico alucinado, abobalhado, saudavelmente perplexo quando leio alguma coisa tão boa. E sinto-me, até, na obrigação de partilhar o que me empolgou tanto com o mundo.
Li vários livros de cada um dos astros citados, individualmente. Tenho antologias com diversos deles reunidos. Mas desconheço qualquer coletânea em que esse grupo, sem favor nenhum a nata da literatura brasileira, esteja todo junto, e abordando tema específico, cada um no seu estilo e com a verve que o caracteriza.
Daí julgar oportuno trazer-lhes, neste último domingo de maio, quando faltam míseros 12 dias para o pontapé inicial da Copa do Mundo da África do Sul, essas entusiásticas e alucinadas considerações (absolutamente fora dos padrões jornalísticos e literários usuais) sobre esta preciosidade que é “O mundo é uma bola”.

Boa leitura.

O Editor.



Santo Antônio, tenente-coronel e almirante

*Por Deonísio da Silva

O Brasil tem santos muito populares. E um deles é Santo Antônio, a quem as moças casadoiras passaram a recorrer depois que uma delas, já em desespero, jogou a imagem do santo pela janela e atingiu um moço que passava na rua. Nem assim o santo deixou de atendê-la. O rapaz casou com a devota.

Santo Antônio nasceu em Lisboa e viveu entre os séculos XII e XIII. Apesar de ter tido carreira militar no Brasil, nada tem que ver com os tradicionais enlaces forçados, alguns deles feitos em delegacias de polícia. Sua formação guerreira inicia-se no século XVII, depois de uma vitória de católicos portugueses e brasileiros sobre luteranos franceses. O primeiro tempo, transcorrido em alto mar, foi vencido pelos protestantes, que aproveitaram para debochar da imagem do santo encontrada no navio que assaltaram. Seguiu-se uma tormenta danada, todos naufragaram e os que vieram em socorro encontraram a imagem na praia, onde o santo estava plantado, altaneiro.

Incorporado a nossas milícias, foi recebendo diversas promoções, chegando a tenente-coronel. Já vivíamos a era da esperteza, e outros recebiam o soldo em seu lugar até que, já na República, uma declaração anônima, escrita em lápis azul, determinou à margem do nome do santo: "privado de soldo até segunda ordem".

Nem mesmo Floriano Peixoto, quando Ministro da Guerra, deixou de honrar os soldos santos, suspensos somente a partir de 1923, depois que o famoso jurisconsulto Rodrigo Otávio de Langard Menezes, então consultor geral da República, deu parecer contrário a futuros pagamentos. Ainda assim, houve quem calculasse os atrasados, já que nunca tinham sido revogados os decretos de nomeação e promoção.

Um dos recibos foi passado no Rio de Janeiro, em 15 de junho de 1846. Lê-se o seguinte: "recebi do ilustre tenente-coronel Manoel José Alves da Fonseca, tesoureiro e pagador chefe das tropas desta capital, a quantia de 80 mil réis, importância relativa ao mês de maio último, do glorioso Santo Antônio, como Tenente-coronel do Exército". Era soldo e não pensão, como esclareceu em curioso despacho o então Ministro da Guerra José Antônio Saraiva.

Mas o santo, que teve carreira militar também no exterior, tendo chegado a almirante na Espanha, não escapou a curiosas perseguições no Brasil. Levado aos tribunais, foi condenado e perdeu todos os bens, inclusive algumas fazendas registradas em seu nome. Um juiz entendeu que quem deveria responder pelo crime de um escravo era seu dono. Ora, o dono era Santo Antônio. Intimado, o santo não compareceu. Para não ser julgado à revelia, foi arrancado do altar da igreja onde estava, no interior da Bahia, amarrado ao lombo de um burro e levado a julgamento sob vara, devidamente escoltado. O juiz chamava-se José Dantas dos Reis.

A religiosidade brasileira é cheia de sutis complexidades. Como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes.


* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais no Jornal do Brasil, na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.



Recompensa ou fim?

* Por Pedro J. Bondaczuk

A palavra felicidade, junto com outros tantos conceitos ambíguos, como amor, esperança, fé etc.etc.etc. é uma das mais abordadas por poetas, romancistas, dramaturgos, psicólogos e filósofos de todos os tempos e das menos compreendidas. Há pessoas que são absolutamente felizes por nada e outras, por seu turno, têm tudo o que alguém possa aspirar e são “poços” de infelicidade. Por que?

Antoine de Saint-Exupéry, por exemplo, considera que a felicidade seja “recompensa” e não “fim”. Discordo. Entendo que ela seja uma predisposição, uma condição espiritual favorável, um estado de satisfação íntima que não depende de nada e ninguém para se instalar em nossas vidas.

Para sermos felizes, temos de “querer” sê-lo, mas com a máxima intensidade, de coração e alma abertos, sem atentar para o que somos, o que temos e com quem estamos. Claro que não sou o dono da verdade e posso, perfeitamente, estar equivocado a respeito. Escrevo, porém, com base, exclusivamente, na minha experiência pessoal e asseguro que, na maior parte do tempo, sou feliz! Por que? Porque quero!

É possível tratarmos da felicidade, cultivarmos esse estado de espírito, esta predisposição positiva face à vida, como uma planta delicada, para que sempre permaneça viçosa e florida? Entendo que sim! Não só podemos, como devemos cultivá-la, tratá-la, adubá-la com o adubo do afeto, do amor e das amizades e borrifá-la com o defensivo da fé, da esperança e da alegria, para que as ervas daninhas da inveja, do rancor, do desespero e de tantos e tantos outros nefastos, mas evitáveis, parasitas, não a sufoquem e lhe tirem o viço.

Vinicius de Moraes, nos versos finais do clássico “A felicidade”, trilha sonora do filme “Orfeu no Carnaval” (com melodia de Luís Bonfá), diz: “A felicidade é uma coisa boa/e tão delicada também,/tem flores e amores/de todas as cores,/tem ninhos de passarinhos/tudo de bom ela tem/e é por ela ser assim tão delicada/que eu trato dela sempre muito bem”. Até porque, o início dessa canção soa como advertência: “Tristeza não tem fim/felicidade sim”. Evitemos que ela se acabe.

Nunca deixemos as portas da alma entreabertas, ou seja, nem abertas por completo e nem fechadas de vez. Esse é o caminho das meias-verdades – que são piores que as mentiras explícitas por causa da sua verossimilhança – e da insensatez, que nos conduz ao erro e à infelicidade.

Escancaremos, sim, as portas do nosso entendimento à verdade, à felicidade, ao amor, às amizades, à alegria, ao bom-humor e à solidariedade, entre outros tantos sentimentos bons. E tranquemo-las a sete chaves – se possível com o reforço de um ferrolho – à inveja, intriga, rancor, violência, egoísmo e aos demais venenos da alma. Mas nunca, em circunstância alguma, as deixemos apenas entreabertas.

Tudo o que se faz na vida gera algum efeito. Nada, absolutamente nada passa incólume. Às vezes, é verdade, os atos são imperceptíveis e ficam assim para sempre. O efeito gerado é ínfimo e quem os praticou se conforma em não ser identificado. Às vezes, as ações tardam a ser percebidas e o autor, igualmente, permanece incógnito.

Às vezes, a percepção é imediata, mas as conseqüências é que são imperceptíveis. E às vezes, os atos (bons ou ruins) são percebidos de imediato e premiados ou punidos, de acordo com sua natureza, sem tardança. Mas tudo, absolutamente tudo o que se faz na vida gera algum efeito.

São os rastros, as marcas, os vestígios de nossa existência que deixamos nos caminhos do tempo. Cecília Meirelles ilustra essa situação de forma lírica e bela, com estes versos que encerram o poema “4º motivo da rosa”, e com os quais encerro, também, essa nossa periódica conversa: “Eu deixo aroma até nos meus espinhos/ ao longe o vento, o vento vai falando de mim// E por perder-me é que vão me lembrando,/por desfolhar-me é que não tenho fim”.

Desfolho-me, em cada lugar que passo, deixando um pouco de mim. Busco espalhar perfume no caminho que trilho, na tentativa de ser lembrado com carinho pelos que comigo conviveram ou que, ao menos, me conheceram. Tento, sobretudo, semear exemplos de conduta e motivar as pessoas na conquista e manutenção da felicidade. Como Cecília Meirelles, “por desfolhar-me é que não tenho fim”.

*Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas), com lançamentos previstos para os próximos dois meses. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com



Salvando a Humanidade

Por Isaac Asimov

Certa noite, meu amigo George me disse, com um suspiro:
- Tenho um amigo que é um kfutz. – Assenti gravemente.
- Pássaros da mesma plumagem. – George olhou para mim, espantado.
- Quem falou em penas? Você tem uma mania detestável de mudar de assunto. Conseqüência, suponho, de sua incapacidade intelectual… que menciono por pena, e não como crítica.
- Ora, ora… pense como quiser. Quando fala de seu amigo klulz, está se referindo a Azazel?

Azazel é um demônio ou ser extraterrestre (como você preferir) de dois centímetros de altura a respeito de quem George fala constantemente, parando apenas para responder a uma pergunta direta. Ele me disse, em tom gélido:
- O nome de Azazel não deve ser mencionado em nossas conversas. Não sei como ouviu falar dele.
- Acontece que um dia cheguei a menos de um quilômetro de distância de você – retruquei.

George não me deu atenção e começou:

A primeira vez que ouvi a estranha palavra klulz foi em uma conversa com meu amigo Menander Block. Você não o conhece, porque é um homem instruído, professor universitário, bastante seletivo em suas amizades… observando você, ninguém poderia culpá-lo por isso.

Ele me explicou que klutz é usado para designar uma pessoa desajeitada.
– Isso se aplica a mim – explicou. – Klutz vem do iídiche que significa um pedaço de madeira, um tronco, um toro; e, naturalmente, meu sobrenome, como você bem sabe, é Block [toro em inglês]. – Ele deu um profundo suspiro.

“Entretanto, não sou um klutz no sentido estrito da palavra. Não há nada de madeirento, troncudo ou toroso em mim. Sei dançar com a agilidade de um zéfiro e a graça de uma libélula; meus movimentos são fluentes como o de um silfo; várias jovens poderiam atestar minhas habilidades nas artes do amor. A verdade é que sou um klutz apenas a distância. Tudo que me cerca se torna klutzesco, sem que eu mesmo seja afetado. O próprio universo parece tropeçar em meus pés cósmicos. Se você não se incomoda de misturar duas línguas e combinar grego com iídiche, suponho que poderia chamar-me de íeleklutz.
- Há quanto tempo isso vem acontecendo, Menander? – perguntei.
- Durante toda a minha vida, mas, naturalmente, só quando me tornei adulto foi que me dei conta do estranho poder que possuo. Quando era criança, supunha que o que acontecia comigo sucedia também com as outras pessoas.
- Nunca discutiu o assunto com ninguém?
- Claro que não, George, amigo velho. Seria tomado como louco. Digamos que eu procurasse um psicanalista e tocasse na questão do teleklutzismo. Ele me mandaria para o manicômio na metade da primeira consulta, escreveria um artigo a respeito da descoberta de uma nova psicose e provavelmente ficaria rico. Não estou disposto a passar o resto da vida em um sanatório só para fazer a fama de um idiota vestido de branco. Não, isso eu não posso contar a ninguém.
- Então por que está me contando, Menander?
- Porque, por outro lado, tenho de contar a alguém para manter a sanidade. E você é a pessoa mais inofensiva que conheço.

Não entendi bem o que ele queria dizer com essa última parte, mas percebi que iria ser submetido, mais uma vez, às confidencias indesejadas de um dos meus amigos. Era o preço, eu bem sabia, da minha proverbial compreensão, simpatia, e, mais que tudo, discrição. Um segredo entregue aos meus cuidados jamais chega aos ouvidos de outra pessoa. (Estou fazendo uma exceção no seu caso porque sei que você não consegue prestar atenção por mais de cinco segundos e sua memória é ainda mais curta).

Fiz sinal ao garçom para trazer outro drinque e sinalizei, usando um código que só nós dois conhecíamos, que era para ser colocado na conta de Menander. Afinal, um trabalhador deve receber algum pagamento pela sua labuta.
- Como se manifesta esse seu teleklutzismo? – perguntei a Menander.
- Em sua forma mais simples, e no modo pelo qual primeiro me chamou a atenção, ele se manifesta através do tempo peculiar que acompanha minhas viagens. Não viajo muito, e quando o faço, vou de carro, e sempre que faço isso, começa a chover. Não importa a previsão do tempo; não importa que o sol esteja brilhando quando inicio a viagem. As nuvens aparecem, o céu fica escuro, começa a chuviscar e depois a chuva cai com vontade. Quando meu teleklutzismo está em dia particularmente inspirado, a temperatura cai e temos uma tempestade de neve.

“Naturalmente, já estou vacinado. Recuso-me a viajar para a Nova Inglaterra até o final de março. Na primavera passada, dirigi até Boston no dia 6 de abril… o que deu origem à primeira nevasca de abril em toda a história do Serviço de Meteorologia de Boston. Outra vez, fui até Williamsburg, na Virgínia, em 28 de março, imaginando que teria alguns dias de graça, já que estava tão no sul. Ah! Williamsburg teve vinte centímetros de neve naquele dia, e os nativos ficavam o tempo todo pegando no chão aquela substância branca e perguntando uns aos outros o que era.

“Muitas vezes pensei que, se supusesse que o universo era dirigido pessoalmente por Deus, poderia imaginar o arcanjo Gabriel chegando, esbaforido, à presença divina, para exclamar: Senhor, duas galáxias estão para colidir, em uma gigantesca catástrofe cósmica!” Deus responderia: “Não me perturbe agora, Gabriel; estou ocupado fazendo chover na cabeça de Menander.”
- Você é uma pessoa cheia de recursos, Menander – disse eu. – Por que não aluga seus serviços, por uma soma fabulosa, a uma firma de irrigação?
- Já pensei nisso, mas não daria certo; provavelmente eu passaria a produzir uma seca renitente por onde passasse.

Ou isso, ou verdadeiras inundações.

“Não é só a chuva, nem os engarrafamentos de trânsito; são muitas outras coisas. Objetos caros se quebram espontaneamente na minha presença, ou outras pessoas os deixam cair sem nenhuma razão aparente. Existe um sofisticado acelerador de partículas em Wheaton, Illinois. Um dia, uma experiência importantíssima fracassou porque o vácuo foi perdido; um defeito que até hoje não teve explicação. Só eu sabia (isto é, fiquei sabendo no dia seguinte, depois de ler no jornal a respeito do incidente) que no momento estava passando de ônibus nos arredores de Wheaton. Estava chovendo, naturalmente.

“Neste exato momento, amigo velho, parte do vinho de mais de cinco dias de idade deste restaurante, que envelhece na adega em garrafas de plástico da melhor qualidade, está azedando. Alguém que passou pela nossa mesa um momento atrás vai descobrir, quando chegar em casa, que um cano do porão estourou no momento exato em que passou por mim; claro que não vai saber que passou por mim e que foi essa a causa de tudo. Assim acontece com milhares de pequenos acidentes. Isto é, de supostos acidentes.

Senti pena do meu amigo, mas ao mesmo tempo meu sangue gelou ao pensar que estava sentado em frente a ele e que catástrofes inimagináveis podiam estar ocorrendo no meu humilde tugúrio.
- Em outras palavras: você é um pé-frio! – exclamei.

Menander jogou a cabeça para trás e olhou para mim com uma expressão de desprezo.
- Pé-frio – declarou – é o nome vulgar; teleklutz é a designação científica.
- Pois muito bem… pé-frio ou telekluiz, sabe que talvez eu possa ajudá-lo a livrar-se dessa maldição?
- Maldição é bem o termo – concordou Menander, com ar tristonho. – Muitas vezes pensei que, quando eu era bebê, uma bruxa malvada, aborrecida por não ter sido convidada para o meu batizado… Está querendo me dizer que você pode anular maldições porque é uma fada boa?
- Fada uma ova! – protestei, indignado. – Imagine, porém, que eu seja capaz de acabar com essa mal… com esse seu problema.
- Como vai fazer isso?
- Não importa. Está interessado?
- O que você vai ganhar com isso? – perguntou, desconfiado.
- A agradável sensação de haver salvado um amigo de uma vida miserável.

Menander pensou por um momento e depois sacudiu a cabeça.
- Isso não será suficiente.
- Claro, que se quiser me oferecer uma pequena quantia…
- Não, não. Jamais pensaria em insultá-lo dessa forma. Oferecer dinheiro a um amigo! Atribuir um valor financeiro a uma amizade? Que você pensaria de mim, George? O que eu quis dizer foi que não será suficiente remover o meu teleklutzismo. Você precisa fazer mais do que isso.
- Que mais vou ter de fazer?
- Pense! Durante minha vida, fui responsável pela infelicidade de milhões de pessoas inocentes. Mesmo que de agora em diante não traga mais infortúnios para ninguém, os males que já causei (embora jamais de forma intencional) constituem para mim um fardo muito pesado. Preciso me redimir de alguma forma.
- Como?
- Devo estar em posição de salvar a humanidade.
- Salvar a humanidade?
- De que outra forma poderia reparar os danos que causei? George, eu insisto. Se vai anular minha maldição, substitua-a pela capacidade de salvar a humanidade em um momento de crise.
- Não sei se vou poder fazer isso.
- Tente, George. Não seja tímido. Se vai fazer um trabalho, faça-o bem, é o que eu sempre digo. Pense na humanidade, amigo velho.
- Espere um momento – disse eu, alarmado. – Você está colocando toda a responsabilidade nos meus ombros!
- Claro que estou, George – disse Menander, afetuosamente. – Ombros firmes! Ombros de amigo! Feitos para suportar cargas pesadas! Vá para casa, George, e dê um jeito de me libertar da maldição. A humanidade lhe prestaria homenagens, agradecida, só que, naturalmente, ninguém ficará sabendo, porque não pretendo contar a ninguém. Suas boas ações não deverão ser corrompidas pela perda do anonimato.
-Fique tranqüilo, amigo velho, nosso segredo jamais será revelado!

Existe algo de maravilhoso na amizade desinteressada. Nada na Terra a ela se iguala. Levantei-me imediatamente para pôr mãos à obra; agi tão depressa que me esqueci de pagar minha parte do jantar. Felizmente, quando Menander percebeu eu já estava longe. Tive algum trabalho para entrar em contato com Azazel e abrir o portão hiperdimensional que separa o seu mundo do nosso. Ele não pareceu muito satisfeito em me ver. Seu corpo de dois centímetros de altura estava envolto em um brilho róseo, e ele me perguntou, em sua vozinha de falsete:
- Não lhe ocorreu que eu podia estar no chuveiro?
- Trata-se de uma emergência, ó Poderoso-Ser-Para-o-Qual-as-Palavras-São-Insuficientes – repliquei, com toda a humildade.
- Então me conte, mas, por favor, seja breve.
- Está bem! – disse eu.

Relatei-lhe o caso com admirável concisão.
- Hummm… – fez Azazel. -Pelo menos uma vez, você me trouxe um problema interessante.
- Verdade? Quer dizer que existe mesmo esse tal de teleklutzismo?
- Existe, sim. É bastante comum em meu mundo. As crianças são vacinadas contra ele no primeiro ano de vida. Você sabe, a mecânica quântica deixa bem claro que as propriedades do universo dependem, até certo ponto, do observador. Assim como o universo afeta o observador, o observador afeta o universo. Alguns observadores afetam o universo de forma desfavorável, ou pelo menos desfavorável para outros observadores. Assim, um observador pode fazer com que uma estrela se transforme em supernova, para desconforto de outros observadores que porventura habitem um planeta em órbita em torno dessa estrela.
- Estou entendendo. Será que você pode tratar o meu amigo Menander e impedir que os seus efeitos de observador sejam tão desagradáveis?
- Naturalmente! Com toda a facilidade! Vai levar só dez segundos! Depois, poderei voltar ao meu chuveiro e ao rito de laskorati, ao qual me dedicarei com duas samini adoráveis!
- Espere! Espere! isso não será suficiente!
- Não diga bobagens. Duas samini são mais que suficientes. Só um tarado exigiria três!
- Estou falando que não será suficiente anular o teleklutzismo. Menander também quer ter a oportunidade de salvar a raça humana.

Por um momento, pensei que Azazel fosse esquecer nossa antiga amizade e tudo que tenho feito por ele, oferecendo-lhe problemas estimulantes, que certamente o ajudam a exercitar a criatividade. Não compreendi tudo que disse, porque usou muitas palavras de sua própria língua, mas o som era de um serrote cego em um prego enferrujado.

Afinal, depois de esfriar um pouco a cabeça, que assumiu um tom vermelho-claro, ele disse:
- Como pensa que eu vou fazer isso?
- Acha que é pedir muito do Apóstolo-da-Incredibilidade?
- Claro que sim! Mas… vamos ver! – Ele pensou um pouco e depois explodiu:
“Afinal, quem, em seu juízo perfeito, iria querer salvar a raça humana? Que é que o universo ganharia com isso? Vocês são a vergonha da Galáxia… Ora, ora, acho que dá para fazer.

Não levou dez segundos. Levou meia hora, e uma meia hora muito nervosa, com Azazel resmungando parte do tempo e o resto do tempo parando para imaginar se as samini esperariam por ele.

Afinal, terminou, e, naturalmente, tive de ir testar os resultados com Menander Block.
Assim que vi Menander, disse para ele:
- Você está curado.

Ele olhou para mim com ar hostil.
- Sabe que me deixou com a conta do jantar naquela noite?
- Um fato de somenos importância, diante da sua cura.
- Não me sinto curado.
- Ora, deixe disso! Vamos dar uma volta juntos. Você dirige.
- O tempo já está ficando nublado. Que cura!
- Dirija! Que temos a perder?

Ele tirou o carro da garagem. Um homem que passava do outro lado da rua não tropeçou em uma lata de lixo cheia até a borda.

Chegamos ao final da rua. O sinal não ficou vermelho enquanto nos aproximávamos e dois carros que freavam no cruzamento conseguiram parar a uma distância segura.

Quando passamos pela ponte, as nuvens se abriram, e um sol quente banhou o carro, mas sem ofuscar o motorista.

Ao chegarmos em casa, ele estava chorando como uma criança e tive de guardar o carro na garagem. Arranhei de leve a pintura, mas podia ter sido pior. Eu podia ter arranhado meu próprio carro.

Na semana seguinte, ele não desgrudou de mim. Afinal, eu era o único que sabia que havia ocorrido um milagre.

Dizia para mim:
- Fui a um baile e nenhum casal tropeçou e caiu, quebrando um braço ou uma clavícula. Dancei até cansar e minha parceira não passou mal do estômago, embora tivesse comido tudo quanto foi porcaria.

Ou:
- No trabalho, instalaram um novo aparelho de ar condicionado e ele não caiu no pé de um dos operários, deixando-o aleijado.

Ou mesmo:
- Visitei um amigo no hospital, uma coisa que há alguns dias nem me passaria pela cabeça, e em todos os quartos por que passei nenhuma sonda saiu da veia de um paciente.

De vez em quando, ele me perguntava, apreensivo:
- Tem certeza de que eu vou ter uma chance de salvar a humanidade?
- Certeza absoluta. Isto é parte da sua cura.

Um dia, porém, ele apareceu com a testa franzida.
- Escute – disse para mim. – Acabo de ir ao banco verificar o meu saldo, que está um pouco mais baixo do que devia por causa da sua mania de desaparecer dos restaurantes antes que a conta chegue. Não consegui nada, porque o computador saiu do ar no momento em que eu entrei. Estava todo mundo atônito. Será que a cura foi temporária?
- É impossível! Aposto que não teve nada a ver com você. Vai ver que havia outro teleklutz nas vizinhanças. Ou então o computador estava mesmo para enguiçar, e tudo não passou de uma simples coincidência.

Entretanto, eu estava enganado. O computador do banco parou de funcionar nas duas ocasiões em que o meu amigo tentou verificar novamente o seu saldo. (A propósito: era muito mesquinho de sua parte se preocupar com as modestas quantias que eu havia deixado de pagar.) Afinal, quando o computador da firma onde trabalhava enguiçou no momento em que entrou no centro de processamento de dados, ele veio me procurar em estado de pânico.
- A doença voltou! Agora não há mais dúvida! A doença voltou! – gritava o coitado. – Desta vez eu não vou agüentar. Logo agora, que estava me acostumando a ser uma pessoa normal! Não, não posso voltar a rainha vida antiga! Prefiro me matar!
- Não, não, Menander. Isso seria ir longe demais!

Ele pareceu se conter no momento em que ia dar outro grito e pensou no que eu havia dito.
- Tem razão – concordou. – Isso seria ir longe demais.
-Talvez fosse melhor matar você. Afinal de contas, você não faria falta a ninguém, e isso me faria sentir um pouquinho melhor.

Podia compreender o seu ponto de vista, mas não podia concordar com ele.
- Espere ai! – protestei. – Antes de fazer qualquer coisa, deixe-me verificar o que ocorreu. Tenha um pouco de paciência, Menander. Lembre-se de que, até agora, seu azar só afetou os computadores, e quem está ligando para os computadores?

Despedi-me rapidamente, antes que ele tivesse tempo de me perguntar como iria descobrir seu saldo bancário se os computadores se recusavam a funcionar na sua presença. Aquilo para ele estava se tornando uma idéia fixa.

Azazel também tinha uma idéia fixa, só que de outro tipo. O que quer que andasse fazendo com as samini, a verdade é que estava dando cambalhotas quando eu cheguei. Por que, não sei.

Não acho que tenha desviado totalmente a atenção das samini, mas consegui fazê-lo explicar o que havia acontecido; vi-me então diante da necessidade de explicar tudo a Menander.

Insisti para que nos encontrássemos no parque. Escolhi um local bem movimentado, porque talvez precisasse de socorro imediato se meu amigo perdesse a cabeça {em sentido figurado) e tentasse me fazer perder a minha (no sentido literal).

Disse para ele:
- Menander, seu teleklutzismo ainda está ativo, mas apenas para computadores. Você tem a minha palavra. Você está curado para todos os outros seres animados e inanimados… e isso é irreversível!
- Pois então, cure-me também para os computadores!
- Acontece, Menander, que isso é impossível. Você não está curado para os computadores… e isso é irreversível.

Falei a última palavra como um sussurro, mas ele me ouviu.
- Por quê? Que tipo de cabeça de minhoca é você?
- Você faz soar como se houvesse mais de um tipo, Menander, o que não faz sentido. Não compreende que você queria salvar o mundo, e foi isso que aconteceu?
- Não, não compreendo. Explique-me, com toda a calma. Você tem quinze segundos.
- Seja razoável! A humanidade está passando pela revolução da informática. Os computadores tornam-se a cada dia mais versáteis, mais capazes, mais inteligentes. Os seres humanos dependem cada vez mais dos computadores. Qualquer dia desses, será construído um computador capaz de governar o mundo, que deixará a humanidade sem nada para fazer. Talvez até decida eliminar os seres humanos, como uma raça desnecessária. Podemos iludir-nos pensando que sempre nos restará o recurso de “puxar o fio da tomada”, mas você sabe muito bem que isso não será possível. Um computador suficientemente esperto para governar o mundo seria perfeitamente capaz de defender seu próprio fio de alimentação e, por que não, de gerar sua própria eletricidade.

“Ele seria imbatível, e a humanidade estaria condenada. E aí, meu caro amigo, é que você entra em cena. Você chega perto desse soberano dos computadores {talvez uma distância de um ou dois quilômetros seja suficiente), e zás! Ele sofre uma pane fatal! A humanidade será salva! A humanidade será salva! Pense nisso!

Menander pensou. Ele não parecia muito satisfeito. Disse para mim:
- Mas até que isso aconteça, não posso me aproximar dos computadores.
- Ora, tivemos de tornar permanente o klutzismo computadorial para ter certeza de que ele funcionaria na ocasião apropriada; que o rei dos computadores não teria nenhuma defesa contra você. É o preço que você tem de pagar por esse grande dom, que você mesmo pediu e pelo qual toda a humanidade lhe será grata por muitos e muitos séculos.
- Ah, é? E quando terei a oportunidade de usar esse meu dom para salvar a humanidade?
- De acordo com Azaz… de acordo com os meus cálculos, isso ocorrerá daqui a uns sessenta anos. Encare as coisas dessa forma: agora você sabe que viverá no mínimo noventa anos.
- E nesse intervalo – disse Menander, falando muito alto, sem se importar com as pessoas que paravam para olhar para nós – o mundo vai ficar cada vez mais informatizado, e eu terei de deixar de freqüentar mais e mais lugares. Acabarei como um eremita…
- Mas no final você salvará a humanidade! É isso que Você queria!
- Para o inferno com a humanidade! – gritou Menander, avançando para mim.

Só consegui escapar porque as pessoas que estavam assistindo à discussão seguraram o pobre coitado.

Hoje em dia, Menander está sendo analisado por um psiquiatra freudiano dos mais famosos. Certamente vai custar-lhe uma fortuna e, certamente, não vai resolver coisa alguma.

Depois de terminar sua história, George olhou para o copo de cerveja, pelo qual eu sabia que teria de pagar. Ele disse:
- Essa história tem uma moral, sabe?
- Qual é?
- Não há gratidão neste mundo!

(Publicado originalmente no livro Azazel, Editora Record, 1988)



O médio-direito

* Por Pedro Silva

Há muitos, muitos, mas mesmo muitos anos, existia um pequeno país chamado Terra do Futebol. Aí moravam, pois claro, muitas pessoas, sobretudo jogadores desse desporto adorado por muitos.

Entre todos os habitantes desse país, dominado pelo soberano Águia-real, havia um pequeno jovem, franzino e moreno, que adorava o número dez e de quem todos gostavam muito. Pequeno, mas veloz e capaz das mais incríveis fintas, este moço era considerado o “Cavaleiro do Relvado”.

Porém, como em todas as histórias de reis e rainhas, existia um pequeno ajudante do cavaleiro que, a troco da companhia e de aprender alguns dos truques da arte futebolística, se prestava a diversos serviços – limpar as sapatilhas, lavar o equipamento e carregar com o saco.

Um dia, um menino aproxima-se do bravo “Cavaleiro do Relvado” e diz-lhe:
- Eu conheço-te! Tu não és aquele que marcou dois golos contra os terríveis leões verdes?

Achando imensa piada à forma sincera e despreocupada como o pequeno Carlitos (era esse o seu nome) se lhe dirigira, o conhecido cavaleiro decide dar-lhe o cargo oficial de seu ajudante pessoal.

A partir daí, os dois passaram a ser amigos inseparáveis. Jogavam futebol juntos, falavam sobre imensas coisas e, mais importante ainda, o mais velho ensinava a Carlitos imensos truques na arte de jogar futebol.

Apaixonado pela posição de médio-direito, Carlitos treinava constantemente para ser o melhor da Terra do Futebol naquela posição.

Ao mesmo tempo, o “Cavaleiro do Relvado” continuava a demonstrar as suas qualidades durante os jogos oficiais. Carlitos olhava para o recinto relvado e imaginava como seria bom se ele próprio pudesse jogar ao lado dos seus ídolos.

Certo dia, andando o “Velho Tácticas”, treinador da equipa do coração de Carlitos, a passear pelos campos floridos do seu país, viu os dois amigos a jogar à bola e ficou maravilhado com aquele pequenino médio-direito, capaz de muitas e boas fintas, sempre finalizadas com um espectacular remate.

Assim sendo, ali ficou durante mais algum tempo até que, ao fim de uma hora de bom desempenho do pequenito, “Velho Tácticas” abeirou-se dele e disse:
- Olá, gostaria que passasses lá pelo nosso campo para treinares com os outros cavaleiros.

Carlitos, maravilhado com estas palavras, dirigiu-se de imediato a casa, enquanto que o “Velho Tácticas” se distanciava, não sem antes levantar, várias vezes, os braços no ar e gritar: “Benfica! Benfica!”. O que significaria aquilo? Talvez o homem fosse um pouco louco, visto que ninguém tinha ouvido jamais aquela palavra.

Já em casa, o jovem Carlitos fui directo aos seus pais, que, por acaso, trabalhavam no castelo do país, também conhecido por “Castelo da Luz”. Então, contou-lhes o que se passara, tendo todos ficado bastante felizes.

No entanto, havia uma pessoa que ficara completamente enlouquecida de alegria – o irmão de Carlitos, verdadeiro fanático da equipa das suas cores. Assim, cantou tudo e mais alguma coisa, incluindo velhas temas de música popular até conhecidos cânticos de claques de futebol. Passadas duas horas de música, decidiu que seria ele próprio a levar o seu irmão ao campo de treinos.

No dia seguinte, já com todos os cavaleiros em campo, o jovem Carlitos entrou, equipado com o número zero, visto que todos os outros já tinham número. Num treino visto por dezenas de pessoas, o pequeno Carlitos, de metade do tamanho de todos os outros, ou não tivesse ele apenas oito anos, marcou quinze golos e executou fintas que maravilharam todos.

Inclusivamente, o “Puto Maravilha”, outro dos cavaleiros que começavam a despontar na equipa principal, no final do treino, virou-se para Carlitos e disse-lhe: “Tu vais tirar-me o lugar da equipa!” O jovem Carlitos, triste, respondeu-lhe que não queria tirar o lugar a ninguém e que, como só tinha oito anos, preferia ficar no banco. E assim aconteceu!

No último jogo do Campeonato da Cavalaria, que decidia quem seria o campeão, o jovem Carlitos ficou no banco, com o número zero, enquanto que no centro das atenções o “Cavaleiro do Relvado” prometia muitos golos e todos na baliza adversária.

Começa o jogo e os adversários conseguem abrir o marcador. Todos os jogadores da equipa de Carlitos choram, tristes por terem começado de uma forma péssima, ainda para mais sendo gozados pelos adversários, numa demonstração de mau desportivismo.

A primeira parte termina e a equipa de Carlitos continua a perder. O avançado da equipa lesiona-se e o “Velho Tácticas” decide chamar o jovem de oito anos, dando-lhe a oportunidade de substituir o ponta-de-lança conhecido por “Martelo”, dada a sua incapacidade total em marcar golos.

Perante a possibilidade de irem defrontar um miúdo de oitos anos, os jogadores adversários riram a bom rir, tal como os adeptos presentes nas bancadas. Só o irmão de Carlitos ficou perfeitamente deliciado e, ao lado dos pais, recomeçou de forma instantânea a reproduzir cânticos alto e a bom som.

Assim que o jovem entrou em campo, “Quebra Canelas”, o temido defesa esquerdo da equipa adversária encarregou-se pessoalmente de não deixar Carlitos tocar na bola. Mas, eis que, cinco minutos depois de ter entrado, o miúdo corre com a bola na linha lateral, fintando o defesa contrário e cruzando o esférico para o “Cavaleiro do Relvado” que, fora da área, chuta a bola com uma colocação tal que o guarda-redes adversário, justamente considerado “Frango de Luvas”, sofre um golo, sem qualquer possibilidade de defesa.

O estádio grita em coro os nomes de ambos os jogadores que intervieram nesta jogada e ambos abraçam-se, comemorando um dos golos mais bonitos de sempre.

Mas o jogo ainda não estava ganho e o tempo continuava a avançar. Só a vitória daria o título de campeão à equipa de Carlitos.

A um minuto do fim, “Cavaleiro do Relvado” recebe a bola do guarda-redes e, um após outro, vai fintando os jogadores contrários, até chegar perto do meio-campo onde, com um passe maravilhoso, dá a bola a Carlitos que, na posição de médio-direito, começa ele próprio a correr com o esférico.

Vendo o tempo esgotar, o jovem decide fazer um enorme chapéu ao guarda-redes, vendo a bola aninhar-se dentro da baliza, garantindo uma vitória suada mas justa.

Festa e mais festa aconteceu, com o pequeno Carlitos a ser o herói daquela Terra do Futebol. Logo ali lhe propuseram um contrato para jogar na equipa durante trinta anos. Ele aceitou, mas para isso, pediu ao “Velho Tácticas” que o seu irmão fosse colocado como o cantor oficial daquele reino. E assim aconteceu!

* Com mais de quarenta livros publicados, em países tão díspares quanto Portugal, Brasil, Espanha ou Chile, o autor português Pedro Silva (1977) tem, igualmente, produzido títulos em diversas áreas temáticas, tais como o ensaio histórico, a ficção, o roteiro turístico ou mesmo os contos. Para além disso, o escrito, tem-se dedicado igualmente a colaborar com diversos jornais portugueses, assim como revistas de História em Portugal e Brasil, tais como “História Viva”, “Desvendando a História” ou “Aventuras na História”. Contacto: ps77@aeiou.pt

Virginia, minha mãe!

* Por Patrick Raymundo de Moraes

Vi em teus olhos o mais puro dos sentimentos e fiquei
Imaginando qual seria a razão de sua existência
Razão pela qual você existe, razão pela qual
Ganhei tamanho presente
Inteligente, bonita e elegante;
Nada te abala, nem estremece teu coração mesmo que
Instigado ao ódio
Atrás de ti sempre há um sorriso.

Estremece toda uma família,
Ligando sempre para os sentimentos dos outros.
Incrível como consegue reunir tanto em uma única pessoa;
Sabia que não seria nada sem você?
Através do teu amor é que nasci;
Bebê estive em teus braços;
Encaminhei minha vida pelos teus conselhos,
Tratando a todos com respeito para
Honrar o teu nome.

Nunca quis teu mal,
Iluminada em teu caminho de fé;
Comecei a minha peregrinação;
Ostentando sempre um orgulho;
Levando sempre o teu nome;
Atenciosamente sempre quis cuidar de ti;
Unicamente te proteger.

Raras as vezes que consegui isso.
A maioria das vezes, só te machuquei com meus cuidados;
Yes, meus cuidados te machucam
Mas eu não queria isso, queria que pudesse te preservar.
Unicamente te proteger, foi o que sempre quis;
Não consegui! Mas que neste dia das mães fique claro;
De meu coração é que vem este sentimento
Onde quer que eu vá, eu sei que carrego teu amor; sentimento este que percebi em teus olhos e digo: Onde quer que eu vá, carregue
Sempre o meu amor! Feliz Dia das Mães !

(Texto escrito no Dia das Mães de 1990).

* Colaborador do Literário

sábado, 29 de maio de 2010


Leia nesta edição:

Editorial – Crônica esportiva

Coluna Direto do Arquivo – Daniel Santos, crônica “Primitivos rituais”.

Coluna Clássicos – Clariece Liséctor, conto “Começos de uma fortuna”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica, “Daiane Capelo Gaivota”

Coluna Porta Aberta – Luiz Carlos Monteiro, crônica “O príncipe maldito: mazelas da realeza brasileira”.

Coluna Porta Aberta – Yeda Prates Bernis – poema “Quando o amor se achega”.

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Crônica esportiva

Caros leitores, boa tarde.
Volta e meia sou questionado, principalmente por estudantes, se a crônica esportiva, notadamente a que versa sobre essa paixão mundial, que é o futebol, é literatura. Minha resposta, invariavelmente, é a mesma: depende de quem a escreve e da abordagem que lhe confere. Há pessoas que, embora lidem com texto e façam dele seu ganha pão, não vibram com o que escrevem. Sua escrita é chata, monótona, formal e sem graça.
Um redator talentoso, criativo e original é competente o suficiente para fazer de uma bula de remédio literatura de primeira linha. E há outros tantos que, por melhor que seja o assunto que se propõem a abordar, se perdem em bla-bla-blás sem pé e nem cabeça e despidos de conteúdo.
A crônica, esportiva ou não, para merecer de fato essa designação, não pode ser factual. Ou seja, não pode se esgotar tão logo o acontecimento que a gerou se esgote. Textos assim têm designação própria: são artigos. Estes sim têm que se ater rigorosamente a fatos e não fazem concessões a reflexões e muito menos a divagações. A maioria das pessoas confunde, a todo o momento, os dois gêneros, um jornalístico e o outro literário.
Tenho lido com assiduidade grandes cronistas esportivos, dos quais o mestre dos mestres foi, sem dúvida, o já saudoso Armando Nogueira. Ele comentava, sempre com elegância e inteligência, mas sem jamais fugir do rigor dos fatos, não apenas futebol, mas todo o tipo de esporte, mesmo os menos praticados e mais exóticos. E mesmo quando o assunto era aparentemente factual, todo ele calcado num determinado e transitório evento esportivo, ele conseguia, por artes “mágicas”, tornar o texto perene e, mais do que isso, imortal.
Tenho crônicas de Armando Nogueira dignas de figurar nas melhores antologias do gênero e, claro, com merecido destaque. Oportunamente, comentarei algumas delas, irrepreensíveis do começo ao fim, sem que o mais severo e ácido dos críticos possa encontrar o mais ligeiro senão e fazer a mínima restrição.
Outro cronista esportivo da minha predileção é Eduardo Gonçalves de Andrade, ou melhor, Doutor Eduardo Gonçalves de Andrade. Dito assim, o leitor pensará com seus botões: “O Editor, hoje, pirou, ou bebeu. Não conheço esse cronista, de quem nunca ouvi falar”. Pois bem, e se eu disser que se trata de um dos melhores jogadores que este país pentacampeão do mundo já produziu, melhora? Vocês estão, mesmo, lentos de raciocínio. Pois bem, já que não mataram a charada, lhes revelo o apelido pelo qual ficou conhecido, quer nos gramados, quer na crônica esportiva: Tostão.
Ah, agora caiu a ficha! Pois é, o grande centroavante da Copa de 1970, originalmente um meia, a exemplo de Pelé, Rivelino e Jairzinho, revela-se tão bom na escrita quanto foi jogando bola. Seus textos são como os do mestre Armando, embora ambos tenham estilos totalmente diferentes. Mesmo os que parecem ser factuais, não o são. Leiam qualquer de suas crônicas. Tomem, por exemplo, uma escrita há dez anos. Não lhes parece que Tostão a escreveu ontem? Isso não é jornalismo (e mesmo que fosse, seria da melhor qualidade), mas literatura pura.
Quando abordo determinados assuntos, principalmente os mais populares, como este, evito, sempre que posso, de citar nomes. Por que? Para não cometer injustiças das quais venha a me arrepender, omitindo gente boa, que mereceria ser citada, mas que, ou por lapsos de memória (é impossível lembrar-me de tudo o que preciso, nos momentos de maior necessidade), ou por falta de espaço, acabo não dizendo nada a seu respeito. E, invariavelmente, tenho que me penitenciar na seqüência.
Mas temos (felizmente), gente muito boa, jornalistas ou não, escrevendo excelentes crônicas esportivas. Citaria, sem ter que pensar bastante, Fernando Calazans, por exemplo, ou Márcio Guedes, ou Paulo Vinícius Coelho, ou Juca Kfoury, ou André Plihal, ou Xico Sá (que desmistifica o gênero e escreve textos deliciosos, com irreverência e humor). Fosse citar todo mundo que gosto, gastaria os cinqüenta textos que programei para escrever, sobre literatura e futebol, apenas digitando nomes. Claro que não é o que vocês esperam de mim.
Creio que a área em que o jornalismo brasileiro está melhor servido é, justamente, esta, a dos esportes. Aliás, corrijo: do futebol. Porquanto outras modalidades esportivas importantes, como o vôlei, o basquete, o atletismo etc., vivem à míngua, com seus dirigentes e praticantes vibrando de emoção quando conseguem, pelo menos, ser citados, mesmo que de passagem e em apenas umas poucas linhas.
O tema é amplo e é claro que voltarei a ele. Seria impossível fazer sequer sua introdução em um espaço tão restrito, por maior que fosse meu poder de síntese (que ademais é pequeniníssimo, já que sou daqueles redatores prolixos, apreciados por poucos e um tormento para os que não gostam de ler).

Boa leitura.

O Editor.



Primitivos rituais

* Por Daniel Santos

Noite dessas perdi o sono e fiquei fumando à janela até tarde, no aconchego de uma escuridão que a tudo envolvia, preservava meu anonimato e me qualificava, assim, como privilegiado observador de ocorrências que escapam desde sempre ao registro da História.

Ventava de maneira incomum para esta época do ano e uma folha de jornal passou como gaivota tablóide de asas retintas, levando para bem longe notícias que haviam encardido a manhã, mas eram já passado: crimes urbanos, genocídios no Iraque ... Ah, não importava mais!

Falava-se ali, na certa, de gente queimada, torturada, humilhada, em cujo sangue banqueteavam-se dráculas republicanos da nova era velha; arcaica, melhor dizendo. Fatos hediondos que, no futuro, tornarão inverossímil o estudo da História, tamanho o acinte, a desfaçatez.

Depois de a folha passar, uma mulher surgiu na clareira e arrumou junto ao meio-fio tigelas, galinhas azeitadas no dendê, velas, garrafas de cachaça, farofa e fitas vermelhas. Rezou, bateu palmas e afinal tragou-a a escuridão. Foi quando um mendigo esfaimado saiu de trás da árvore.

Vinha com o apetite dos milênios e seus dentes de voraz heresia trinchavam os frangos, impunham jejum aos deuses; ao menos, naquela noite. Regalava-se como um dissoluto sem o constrangimento de se saber observado, porque àquela hora os historiadores dormiam..

E comeu tudo até empanzinar-se – para ele, um desconforto gástrico de luxo. Aconchegou-se sob a marquise, envolveu-se no lençol de néon que descia do cartaz luminoso e adormeceu em estado de cordura. Bárbaro sem guerras nem carnificina que nunca sairá nos jornais.

* Jornalista carioca, 54 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.



Começos de uma fortuna

Por Clarice Lispector

Era uma daquelas manhãs que parecem suspensas no ar. E que mais se assemelhavam à idéia que fazemos do tempo.

A varanda estava aberta mas a frescura se congelara fora e nada entrava do jardim, como se qualquer transbordamento fosse uma quebra de harmonia. Só algumas moscas brilhantes haviam penetrado na sala de jantar e sobrevoavam o açucareiro. A essa hora, Tijuca não havia despertado de todo. “Se eu tivesse dinheiro…” pensava Artur, e um desejo de entesourar, de possuir com tranqüilidade, dava a seu rosto um ar desprendido e contemplativo.
— Não sou um jogador.
— Deixe de tolices, respondeu a mãe. Não recomece com histórias de dinheiro.

Na realidade ele não tinha vontade de iniciar nenhuma conversa premente que terminasse em soluções. Um pouco da mortificação do jantar da véspera sobre mesadas, com o pai misturando autoridade e compreensão e a mãe misturando compreensão e princípios básicos — um pouco da mortificação da véspera pedia, no entanto, prosseguimento. Só que era inútil procurar em si a urgência de ontem. Cada noite o sono parecia responder a todas as suas necessidades. E de manhã, ao contrário dos adultos que acordam escuros e barbados, ele despertava cada vez mais imberbe. Despenteado, mas diferente da desordem do pai, a quem parecia terem acontecido coisas durante a noite.

Também sua mãe saía do quarto um pouco desfeita e ainda sonhadora, como se a amargura do sono tivesse lhe dado satisfação. Até tomarem café todos estavam irritados ou pensativos, inclusive a empregada. Não era esse o momento de pedir coisas. Mas para ele era uma necessidade pacífica a de estabelecer domínios de manhã: cada vez que acordava era como se precisasse recuperar os dias anteriores. Tanto o sono cortava suas amarras, todas as noites.
— Não sou um jogador nem um gastador.
— Artur, disse a mãe irritadíssima, já me bastam as minhas preocupações!
— Que preocupações? – perguntou ele com interesse.

A mãe olhou-o seca como a um estranho. No entanto ele era muito mais parente que seu pai, que, por assim dizer, entrara na família. Apertou os lábios.
— Todo o mundo tem preocupações, meu filho –, corrigiu-se ela entrando então em nova modalidade de relações, entre maternal e educadora.

E daí em diante sua mãe assumira o dia. Dissipara-se a espécie de individualidade com que acordava e Artur já podia contar com ela. Desde sempre, ou aceitavam-no ou reduziam-no a ser ele mesmo. Em pequeno brincavam com ele, jogavam-no para o ar, enchiam-no de beijos – e de repente ficavam “individuais” — largavam-no, diziam gentilmente mas já intangíveis: “agora acabou”, e ele ficava todo vibrante de carícias, com tantas gargalhadas ainda por dar. Tornava-se implicante, mexia num e noutro pé, cheio de uma cólera que, no entanto, se transformaria no mesmo instante em delícia, em pura delícia, se eles apenas quisessem.
— Coma, Artur –, concluiu a mãe e de novo ele já podia contar com ela. Assim imediatamente tornou-se menor e muito mais malcriado:
— Eu também tenho as minhas preocupações mas ninguém liga. Quando digo que preciso de dinheiro parece que estou pedindo para jogar ou para beber.
— Desde quando é que o senhor admite que podia ser para jogar ou para beber? – disse o pai entrando na sala e encaminhando-se para a cabeceira da mesa. – Ora essa! que pretensão!

Ele não contara com a chegada do pai. Desnorteado, porém habituado, começou:
— Mas papai! – sua voz desafinou numa revolta que não chegava a ser indignada. Como contrapeso, a mãe já estava dominada, mexendo tranqüilamente o café com leite, indiferente à conversa que parecia não passar de mais algumas moscas. Afastava-as do açucareiro com mão mole.
— Vá saindo que está na sua hora –, cortou o pai. Artur virou-se para sua mãe. Mas esta passava manteiga no pão, absorta e prazerosa. Fugira de novo. A tudo diria sim, sem dar nenhuma importância.

Fechando a porta, ele de novo tinha a impressão de que a cada momento entregavam-no à vida. Assim é que a rua parecia recebê-lo. “Quando eu tiver minha mulher e meus filhos tocarei a campainha daqui e farei visitas e tudo será diferente”, pensou.

A vida fora de casa era completamente outra. Além da diferença de luz — como se somente saindo ele visse que tempo realmente fazia e que disposições haviam tomado as circunstâncias durante a noite — além da diferença de luz, havia a diferença do modo de ser. Quando era pequeno, a mãe dizia: “fora de casa ele é uma doçura, em casa um demônio”. Mesmo agora, atravessando o pequeno portão, ele se tornara visivelmente mais moço e ao mesmo tempo menos criança, mais sensível e sobretudo sem assunto. Mas com um interesse dócil. Não era uma pessoa que procurasse conversas, mas se alguém lhe perguntava como agora: “menino, de que lado fica a igreja?”, ele se animava com suavidade, inclinava o longo pescoço, pois todos eram mais baixos que ele; e informava atraído, como se nisso houvesse uma troca de cordialidades e um campo aberto à curiosidade. Ficou atento olhando a senhora dobrar a esquina em caminho da igreja, pacientemente responsável pelo seu itinerário.
— Mas dinheiro é feito para gastar e você sabe com quê –, disse-lhe Carlinhos intenso.
— Quero para comprar coisas –, respondeu um pouco vago.
— Uma bicicletinha? – riu Carlinhos ofensivo, corado na intriga.

Artur riu desagradado, sem prazer.

Sentado na carteira, esperou que o professor se erguesse. O pigarro deste, prefaciando o começo da aula, foi o sinal habitual para os alunos se sentarem mais para trás, abrirem os olhos com atenção e não pensarem em nada. “Em nada”, foi a resposta perturbada de Artur ao professor que o interpelava irritado. “Em nada” era vagamente em conversas anteriores, em decisões pouco definitivas sobre um cinema à tarde, em — em dinheiro. Ele precisava de dinheiro. Mas durante a aula, obrigado a estar imóvel e sem nenhuma responsabilidade, qualquer desejo tinha como base o repouso.
— Você então não viu logo que Glorinha estava querendo ser convidada pro cinema? – disse Carlinhos, e ambos olharam com curiosidade a menina que se afastava segurando a pasta. Pensativo, Artur continuou a andar ao lado do amigo, olhando as pedras do chão.
— Se você não em dinheiro para duas entradas, eu empresto, você paga depois.

Pelo visto, do momento em que tivesse dinheiro seria obrigado a empregá-lo em mil coisas.
— Mas depois eu tenho que devolver a você e já estou devendo ao irmão de Antônio –, respondeu evasivo.
— E então? que é que tem! – explicou o outro, prático e veemente.

“E então”, pensou com uma pequena cólera, “e então, pelo visto, logo que alguém tem dinheiro aparecem os outros querendo aplicá-lo, explicando como se perde dinheiro.”
— Pelo visto –, disse desviando do amigo a raiva – pelo visto basta você ter uns cruzeirinhos que mulher logo fareja e cai em cima.

Os dois riram. Depois disso ele ficou mais alegre, mais confiante. Sobretudo menos oprimido pelas circunstâncias.

Mas depois já era meio-dia e qualquer desejo se tornava mais árido e mais duro de suportar. Durante todo o almoço ele pensou com rispidez em fazer ou não fazer dívidas e sentia-se um homem aniquilado.
— Ou ele estuda demais ou não come bastante de manhã –, disse a mãe. – O fato é que acorda bem disposto mas aparece para o almoço com essa cara pálida. Fica logo com as feições duras, é o primeiro sinal.
— Não é nada, é o desgaste natural do dia –, disse o pai bem humorado.

Olhando-se no espelho do corredor antes de sair, realmente era a cara de um desses rapazes que trabalham, cansados e moços. Sorriu sem mexer os lábios, satisfeito no fundo dos olhos. Mas à porta do cinema não pôde deixar de pedir emprestado a Carlinhos, porque lá estava Glorinha com uma amiga.
— Vocês preferem sentar na frente ou no meio? – perguntava Glorinha.

Diante disso, Carlinhos pagou a entrada da amiga e Artur recebeu disfarçado o dinheiro da entrada de Glorinha.
— Pelo visto, o cinema está estragado –, disse de passagem para Carlinhos. Arrependeu-se logo depois de ter falado, pois o colega mal ouvira, ocupado com a menina. Não era necessário diminuir-se aos olhos do outro, para quem uma sessão de cinema só tinha a ganhar com uma garota.

Na realidade o cinema só esteve estragado no começo. Logo depois ele relaxou o corpo, esqueceu-se da presença ao lado e passou a ver o filme. Somente perto do meio teve consciência de Glorinha e num sobressalto olhou-a disfarçado. Com um pouco de surpresa constatou que ela não era propriamente a exploradora que ele supusera: lá estava Glorinha inclinada para frente, a boca aberta pela atenção. Aliviado, recostou-se de novo na poltrona.

Mais tarde, porém, indagou-se se tinha ou não sido explorado. E sua angústia foi tão intensa que ele parou diante da vitrina com uma cara de horror. O coração batia como um punho. Além do rosto espantado, solto no vidro da vitrina, havia panelas e utensílios de cozinha que ele olhou com certa familiaridade. “Pelo visto, fui”, concluiu e não conseguia sobrepor sua cólera ao perfil sem culpa de Glorinha. Aos poucos a própria inocência da menina tornou-se a sua culpa maior: “então ela explorava, explorava, e depois ficava toda satisfeita vendo o filme?”. Seus olhos se encheram de lágrimas. “Ingrata”, pensou ele escolhendo mal uma palavra de acusação. Como a palavra era um símbolo de queixa mais do que de raiva, ele se confundiu um pouco e sua raiva acalmou-se. Parecia-lhe agora, de fora para dentro e sem nenhuma vontade, que ela deveria ter pago daquele modo a entrada do cinema.

Mas diante dos livros e cadernos fechados, seu rosto desanuviava-se.

Deixou de ouvir as portas que batiam, o piano da vizinha, a voz da mãe no telefone. Havia um grande silêncio no seu quarto, como num cofre. E o fim da tarde parecia com uma manhã. Estava longe, longe, como um gigante que pudesse estar fora mantendo no aposento apenas os dedos absortos que viravam e reviravam um lápis. Havia instantes em que respirava pesado como um velho. A maior parte do tempo, porém, seu rosto mal aflorava o ar do quarto.
— Já estudei! – gritou para a mãe que interpelava sobre o barulho da água. Lavando cuidadosamente os pés na banheira, ele pensou que a amiga de Glorinha era melhor que Glorinha. Nem tinha procurado reparar se Carlinhos “aproveitara” ou não da outra. A essa idéia, saiu muito depressa da banheira e parou diante do espelho da pia. Até que o ladrilho esfriou seus pés molhados.

Não! não queria explicar-se com Carlinhos e ninguém lhe diria como usar o dinheiro que teria, e Carlinhos podia pensar que era com bicicletas, mas se fosse o que é que tem? e se nunca, mas nunca, quisesse gastar o seu dinheiro? e cada vez ficasse mais rico?… que é que há, está querendo briga? você pensa que…
— … pode ser que você esteja muito ocupado com os seus pensamentos –, disse a mãe interrompendo-o – mas ao menos coma o seu jantar e de vez em quando diga uma palavra.

Então ele, em súbita volta à casa paterna:
— Ora a senhora diz que na mesa não se fala, ora quer que eu fale, ora diz que não se fala de boca cheia, ora…
— Olhe o modo como você fala com sua mãe –, disse o pai sem severidade.
— Papai –, chamou Artur docilmente, com as sobrancelhas franzidas – papai, como é promissórias?
— Pelo visto –, disse o pai com prazer —, pelo visto o ginásio não serve para nada.
— Coma mais batata, Artur –, tentou a mãe inutilmente arrastar os dois homens para si.
— Promissórias –, dizia o pai afastando o prato – é assim: digamos que você tenha uma dívida.

(Extraído do livro “Laços de família”, Ed. Rocco – Rio de Janeiro, 1998)