sexta-feira, 27 de julho de 2018

O Tropicalismo na visão dos jovens na ditadura - Urariano Mota


O Tropicalismo na visão dos jovens

na ditadura


* Por Urariano Mota

As informações na internet falam que a Tropicália mudou o cenário musical brasileiro e influenciou outras áreas, como por exemplo, as artes plásticas e o cinema. Ela encontrou eco em boa parte da sociedade que, ainda que sufocada pela censura da ditadura militar, aplaudiu com entusiasmo as suas manifestações tanto nos festivais de Música, quanto nas artes cênicas. A consolidação veio com um álbum específico, lançado em Julho de 1968: Tropicalia ou Panis Et Circencis, falam os sites e sítios.


Mas a Tropicália é um disco que não ficou datado, como um fóssil daquele tempo. Não. Melhor, esse disco tocou e fez eco e aço muito além do ano de 1968, tanto pela qualidade artística quanto pelo engajamento, um reflexo imediato no corpo da jovem esquerda do Brasil.

Os 50 anos do Tropicalismo acordam na gente várias lembranças. A primeira delas é a sua estranheza, não bem esquisitice na época. O seu conceito, a que vinha, ganhou conteúdos que os próprios Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Tom Zé, então nem imaginavam em 1968. Mas assim é com todos nós, famosos e anônimos, sobre o nosso papel no momento em que o vivemos. Ou dizendo de outra maneira, no momento em que fazemos história não estamos conscientes da repercussão e alcance de nossos atos e dias. Se assim tivéssemos a consciência, pararíamos tudo e ficaríamos surpresos, tontos, sem chão. Pior que o burguês de Molière, a falar em 1968: “então estou fazendo história e não sei”. Na melhor das hipóteses, temos intuições, desconfianças, vozes internas.

Quando veio Alegria, Alegria em 1967, e depois, quando ouvimos “sobre a cabeça os aviões, sob os meus pés os caminhões...”, comentávamos “tá, é legal, mas bom mesmo é Chico Buarque”. Então, com Domingo no Parque, de Gil, começaram a se quebrar as resistências. Aquilo era novo, era guitarra, mas ao mesmo tempo saía daquele narciso “eu sou o superbacana”. Vinha uma música que cantava trabalhadores.

Amanhã não tem feira
Ê, José!
Não tem mais construção
Ê, João!”.

Depois, houve Lindoneia, Baby em 1968, e a nossa sensibilidade se alargou: que coisa mais arretada é essa? “Você precisa saber da piscina, da margarina, da gasolina, você precisa saber de mim....”. Que coisa bonita.


Então veio o sol da política, as adesões entre os jovens contra a ditadura, que os próprios Gil e Caetano não podiam então prever. E aqui acrescento uma informação muito pessoal, que até hoje não havia revelado. Eu fui amigo, colega de escola de Bartolomeu, cujo nome completo era José Bartolomeu Rodrigues de Souza. Um dia, depois de muito tempo sem vê-lo, desde o Ginásio Ipiranga, onde estudamos na infância, eis que o reencontro em 1970 no Colégio Alfredo Freyre, em Água Fria. E lá iniciamos uma discussão, da qual me lembro esta frase:
- Esse Chico é o cara dos olhos verdes das meninas Carolina. A música da revolução é o Tropicalismo. Presta atenção: el nome del hombre muerto, isso é Guevara. É a música dos revolucionários, rapaz!


Não à toa, Bartolomeu era conhecido na clandestinidade pelo nome de guerra Tropi. Como uma supressão dolorosa, ele não citou os versos

Estou aqui de passagem
Sei que adiante
Um dia vou morrer
De susto, de bala ou vício”.

Em 1972, com a idade de 23 anos, Bartolomeu foi morto em “troca de tiros”, expressão com que a ditadura carimbava os mortos sob tortura, presos e desarmados. Mas naquele dia, no Alfredo Freyre, eu não me dei conta da antevisão dos tropicalistas na esquerda armada.


Então chega fevereiro de 2007. Numa entrevista que Gilberto Gil me concedeu, ele se referiu a uma parcela do público brasileiro que adorava o Tropicalismo. Em nenhum momento ele explicitou que eram jovens militantes da luta armada, foquistas, como a grande maioria da resistência estudantil os chamava. Mas ele dirá isso de outra maneira, por um método de aproximação. À minha pergunta:
- Na ditadura militar, eu lembro que o movimento tropicalista era relacionado a determinada linha de combate clandestino. Você faz essa relação? Por exemplo, tinha a ala da esquerda que era do lado de Chico Buarque, tinha outra ala da esquerda que era do Tropicalismo, você vê isso?

Gil me respondeu:
- Acho que sim. Acho que era. As pessoas associavam sua política, seu compromisso... (tosse) a determinados campos, na própria política e no campo estético também. Então o Tropicalismo estava ligado às correntes mais ... mais audaciosas, mais, que predicavam uma ruptura maior, que predicavam uma ruptura de um convencionalismo estético, artístico, e etc., e também político, não é? Nós gostávamos das correntes políticas mais autônomas, mais abertas, menos subordinadas a linhas programáticas clássicas.


Para mim isso era claro desde a vida e morte José Bartolomeu Rodrigues de Souza, o Tropi. A música dos tropicalistas me deu um referencial preciso de reconstrução da vida na memória, no romance. E a eles voltei no livro “A mais longa duração da juventude”, para expressar uma discussão viva dos anos da ditadura:


“A depressão se anuncia, sinto. Não sei se acontece somente comigo, se é um fenômeno isolado, mas quando não estou com amigos, quando não estou “na luta”, ou seja, em reuniões, pontos, panfletagem, estudo do marxismo em textos mimeografados, em resumo, quando não estou em atividade, caio na mais funda depressão. Eu me deito lá na pensão e vejo o teto baixar, baixando, os objetos em volta ficam cinza, e pouco importa se o sol lá fora brilha em céu azul. Um desconcerto e desacordo sem fim. É como uma angústia imóvel. Vem à semelhança do expresso nos versos de Camões, “Que dias há que na alma me tem posto/Um não sei quê, que nasce não sei onde/Vem não sei como e dói não sei porquê”. Um vazio, isto, um vácuo de substância cujo significado imagino saber agora. É a solidão, o estar só e sozinho num drama sem palco onde passa longe a solidariedade. E me falo ou perambulo nas sombras: “O que estou fazendo? O que tenho feito? Quem sou eu? Eu sou eu? O que sou eu? O que é o quê? Quê, quê, que é isso?”. Vem como a primeira desconexão que senti num estado febril na infância. É um estado em que não adianta beber, sair para o cinema, pegar um livro. Talvez coubesse o amor, se fosse possível num mar letárgico. Talvez o sexo, que se parece com o amor na manifestação externa dos abraços e beijos, mas cuja duração acaba no orgasmo. E mesmo aí seria paliativo, apenas um sexo furioso, de agressão, de movimento com raiva, incessante, incessante, para não deixar espaço ao pensamento. Então, num esforço extraordinário consigo virar o rosto para a parede e fico imaginando desenhos, formas, pessoas, bichos, nas marcas de umidade da tinta cal. “Eu não posso viver assim”, me digo. “Antes a morte que este apodrecimento em vida”. E vejo um outro pegar um copo d’água e pôr na boca um analgésico. Esse outro, que vem a ser a pessoa que se desprende de mim, volta à cama e afunda. “Sou um miserável sozinho”. E me vem a impressão íntima do soneto Só de Cruz e Sousa. Estamos iguais no frio sepulcral de desamparo, mas não há estrelas do infinito acenando carinhosas para mim. Sou negro igual a Cruz e Sousa, sinto a desesperança do soneto igual, mas o que me amarra nu e chagado é o desencontro entre a minha tendência e o que exigem de mim. Estou no front de emergência, de atividades práticas, mas eu preferia estar entre bombas fazendo outra coisa. Outra. Qual? O quê? O que é o quê?
- É muito melhor compositor. Não acha? – Vargas me questiona.
Hum. Quem é maior? – respondo sem entender a pergunta.
- Caetano Veloso, é claro. Está dormindo? – Ele volta.
- Eu? Nada. Sim, Caetano Veloso é bom – falo.
- Ele não é bom. Ele é o melhor compositor da música popular brasileira – Vargas responde.
- Não, aí é demais – falo. – Olhe, já é uma batalha gostar de Caetano. Mas ver Caetano como o melhor é demais.
- Eu gosto de Caetano Veloso – Alberto fala. – Ele tem umas coisas boas.
- Boas?! – Vargas se exalta. – Ele é o melhor compositor da música brasileira.... – “de todos os tempos”, ele ia dizer. Hoje percebo que se conteve com uma modéstia do Barão de Itararé, que ia se chamar de Duque, mas baixou o título para Barão. E continuou Vargas: – É o melhor! Caetano Veloso é o melhor compositor do tempo da revolução.

Olho em volta e percebo que nas mesas vizinhas se faz um silêncio. Todos nos escutam, concluo. Assuntos de música popular, no Brasil, são os que mais despertam interesse, depois do futebol. Mas na ditadura falar na altura da voz de Vargas, usando a palavra ‘revolução’, é demais. Nelinha lhe toca o braço e sussurra ‘cuidado’. Ele sorri:
- Tranquilo, minha santa. Estou falando de cultura.
- Estamos falando sobre música, não tem problema – Alberto fala.
- E tudo é revolucionário, não é? – Vargas completa. – O cinema de Glauber é revolucionário, a juventude é revolucionária, tudo é revolucionário. Menos Chico Buarque.

Todos riem. Ocorre o que às vezes se chama brincar com o perigo. Zombar do abismo. Mas na hora o que me ocorre é o cometimento de uma injustiça.
- Eu não acho – falo. – Chico, para mim, é o melhor compositor de música popular brasileira hoje. Ele tem uma poesia que não tem Caetano. Chico é de fazer música, não é de dar espetáculo. Caetano é escandaloso, entende?
- A revolução é um escândalo! – Vargas quase grita. Alberto ri, Nelinha sorri para o companheiro, que se vê estimulado. – Chico é o compositor de Carolina, Januária na janela. É o poeta dos olhos verdes das meninas. Isso é revolucionário? Preste atenção: a música de Chico é o passado. Ele é um compositor de 1960 pra trás.
- Olhe... – eu queria dizer, se compreendesse então, que Chico ligava a tradição à música de 1970, assim como Paulinho da Viola fez essa ligação com o samba. Mas há um tempo em que possuímos o sentimento, mas não encontramos as palavras, que ainda não nos chegaram pela experiência. Então arquejo, como um náufrago, diante da catilinária. – Olhe, você quer poesia melhor que ... – e tento cantarolar ‘se uma nunca tem sorriso, é pra melhor se reservar...’ – que ‘a dor é tão velha que pode morrer’, hem? – E baixo a voz: - Chico é a esquerda do futuro.
- Ele não é nem do presente – Vargas responde. – Que dirá do futuro. Preste atenção, muita atenção: ‘sei que um dia vou morrer de susto, de bala ou vício’. Escutou? Esta é a música de agora, dos jovens revolucionários de hoje.
- Isso não é de Caetano. É de Gil, Torquato e Capinam – falo. 
- De Gil? – Vargas responde. – Não importa. Está no disco de Caetano. Ele fez da música um hino revolucionário. Isso é o que importa”.

Pesquiso e vejo que Glauber Rocha certa vez afirmou: “A arte não é só talento. É, sobretudo, coragem”. E não só a arte, acrescento. Também a ciência, e todo o pensamento que se expressa. Opções estéticas são opções de vida. Bartolomeu me ensinou.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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