quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Leia nesta edição:

Editorial – Astros e estrelas de outro firmamento.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Antes do nascimento”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica, “Êta, universão velho sem porteira!”.

Coluna A favor de tudo, contra todos – Fernando Yanmar Narciso, crônica, “Pastelão de sangue”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, minicontos “Depressão”.

Coluna Porta Aberta – Glauco Mattoso, poema “Soneto 172 Antológico”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” – José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com

“A Passagem dos Cometas” – Edir Araújo – Contato: nenem138@gmail.com

“Aprendizagem pelo Avesso” – Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br

“Cronos e Narciso” – Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br

“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Astros e estrelas de outro firmamento

Os atores e atrizes (de teatro, cinema e televisão), são, no meu entendimento, via de regra, excelentes leitores. Têm que ser. Para poderem emprestar vida aos personagens que representam, precisam conhecer o máximo possível deles e até “adivinhar” a intenção do autor que os criou. Com isso, “treinam” o cérebro a perceber nuances que o leitor comum raramente percebe. Faz parte da sua profissão. Como para alguém ser bom escritor deve, antes de tudo (salvo raras exceções) ser bom leitor, os atores e atrizes que se aventuram no mundo das letras tendem a se dar bem. Ou seja, têm potencial de se tornar, também, astros e estrelas de um outro firmamento: o literário.

“Por que, então, seguindo seu raciocínio, poucos profissionais do ramo, sucessos dos palcos e das telas, se arriscam a escrever livros?”, perguntou-me, ainda hoje, um amigo, a quem liguei pela manhã para comentar sobre esse potencial para as letras dessas pessoas. Sei lá!! Talvez por falta de tempo (o que é provável). Ou por acharem o mundo editorial mais competitivo até do que o cinema, o teatro e a televisão, onde a competição é ferrenha. Ou por não gostarem de escrever. Ou por tantas e tantas outras razões, que não me vêm à cabeça, mas que devem existir.

Todavia, pensando melhor, nem são tão poucos os atores e atrizes que já escreveram livros, gostaram da experiência e que dividem (ou dividiram) sua atividade dos palcos e das telas com a Literatura. Assim, de memória, lembro-me de um número razoável de casos. Posso citar, por exemplo, a atriz Mayana Neiva (a Desiré da novela “Ti-ti-ti”, que também foi Miss Paraíba), autora do livro “Sofia”. Querem outra? Cito Denise Stocklos, autora de diversos livros, entre os quais conheço quatro, de gêneros diferentes: “Teatro essencial”, “Tipos” (poesia), “500 anos – um fax para Colombo” (peça teatral) e “Amanhã será tarde demais e depois de amanhã nem existe” (romance).

E o que dizer da atriz e escritora Bruna Lombardi? Nada, nada, ela já publicou oito livros, o que a credencia como “veterana” em Literatura. Os de poesia que lançou, “O perigo do dragão”, “Gaia” e no “Ritmo dessa festa”, arrancaram entusiásticos e rasgados elogios de um dos principais poetas brasileiros de todos os tempos, Mário Quintana, que confessou, de público, ser seu admirador incondicional, não somente como atriz, mas como excelente escritora.

Entre os atores (e que ator!) destaco o saudoso Chico Anysio, a quem dediquei, há uns quatro ou cinco anos, toda uma crônica e que publicou dezoito livros, sumamente bem escritos, desses que a gente quer ler de um só “sopro”, que não consegue largar enquanto não chegar à última linha. Poderia citar outros tantos astros e estrelas dos palcos e das telas, que se aventuraram no mundo das letras e se deram bem, mas não o farei.

Minto. Mencionarei um outro caso, por se tratar de lançamento recente – se não me falha a memória, de dezembro do ano passado – que é a excelente obra literária “Crônicas nuas” (Editora Giosti) de Kátia Saules. A autora é uma jovem atriz (33 anos) que esbanja talento literário, como se fosse veterana no ramo, embora este seja seu primeiro livro. Espero que primeiro de muitos. Ela optou por um gênero que parece fácil, mas que derruba muita gente que não tem talento para as letras, mas que acha que tem: a crônica. E saiu-se muito bem, mostrando que sabe escrever, é observadora, tem sensibilidade e pode ir muito longe, caso persista e imprima a seus futuros livros a mesma qualidade deste.

Para refrescar a memória dos “esquecidos”, lembro que Kátia participou de novelas e de minisséries de grande sucesso na Rede Globo, como “Ti-ti-ti”, “Malhação”, “Belíssima”, “Pé na jaca”, “A casa das sete mulheres”, “América” e “Senhora do destino”. Fez aparições, também, em “A grande família”, “Linha direta”, “A diarista” e “A turma do Didi”. Lembraram agora? Pois é ela mesma! Além da Globo, ela atuou em produções da Record, como “Bela, a feia”, “Chamas da vida”, “Floribella” e “Luz do sol”.

Apesar de tão jovem, Kátia já tem um currículo dramático invejável em seus quinze anos de brilhante carreira, e não apenas na telinha da TV, mas também nos palcos e na telona. No cinema atuou, por exemplo, nos premiados curtas-metragens “Burguesia” (de Rodrigo Parra) e “Efusão” (de Sandra Pereira) e no longa-metragem “Efeito sanfona” (de André de Lucca). É pouco? Claro que não! Ademais, a atriz está em plena atividade e certamente colecionará muitos e muitos êxitos mais na sua atividade dramatúrgica.

O mérito literário maior de Kátia é escrever sobre o que conhece, e com talento e verdade. Suas crônicas (o livro contém cinqüenta delas) tratam de assuntos cotidianos, daquelas coisas simples e aparentemente triviais que preenchem a vida de todos nós, às quais, raramente, damos alguma atenção, mas que são importantes e que, se atentarmos a elas, poderemos extrair preciosas lições. A atriz/escritora aborda, por exemplo, a perda de um grande amor. Quem nunca passou por essa experiência dolorosa? Poucos, não é verdade? Para não dizer nenhum de nós. Kátia fala, ainda, sobre a decisão de se fazer uma tatuagem (pessoalmente, eu nunca faria, mas entendo quem faça) ou sobre uma simples e trivial ida à praia, local que reúne tantos tipos variados e onde a vida “acontece”, sem maquiagem, bem diante dos nossos olhos.

Ela, portanto, comprova minha tese de que atores e atrizes são (salvo raras exceções) excelentes leitores. E, por serem tão atentos “devoradores” de textos, têm potencial para escrever bem. Claro que para ser escritor, apenas isso não basta. Mas... convenhamos, já é importante passo que, complementado por tantos outros, pode transformar, sem surpresas, esses astros e estrelas dos palcos e das telas em ases, também, do complexíssimo (e quase sempre frustrante) mundo das letras. Só espero que sua experiência literária não se restrinja a esse único livro. Que siga os passos de um Chico Anysio, de uma Denise Stocklos e, principalmente, de uma Bruna Lombardi e nos brinde com muitas e muitas obras de beleza e de verdade, como este excelente “Crônicas nuas”.

Boa leitura.

O Editor.

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Antes do nascimento

* Pedro J. Bondaczuk

O nosso nascimento é a culminância de um processo que começou num tempo remotíssimo, que ninguém tem ciência de “quando” e “como” se originou, por não haver o mínimo registro dessa origem. Todavia, a lógica indica que somos descendentes diretos do casal original (foi Adão e Eva? Foi outro? Qual?) que um dia surgiu sobre a Terra. Se ele não existisse, não estaríamos aqui, encarando essa aventura fascinante e misteriosa, e, ao mesmo tempo, tão dramática e cheia de riscos, da qual desconhecemos o epílogo (embora possamos intuir).

Arthur Schopenhauer (citado por Jorge Luiz Borges no livro “História da Eternidade”), levanta, a respeito, instigante questão, que pode não ser prática (e não é), mas que não deixa de ser interessante para reflexão. Convido-o, pois, paciente leitor, a refletir comigo. O filósofo alemão constata, para em seguida indagar: “Uma infinita duração precedeu ao meu nascimento: o que fui eu enquanto isso?”.

Nada?! Não pode ser! Afinal, pela lei de transformação da matéria, “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Ademais, só vida pode gerar outra vida. Portanto, existo não a partir da minha concepção (e muito menos do meu nascimento), mas desde o instante em que o primeiro casal humano passou a existir. Ou estou errado?

Partículas infinitésimas de ADN, do que viriam a ser os meus genes, existiam desde então e foram se combinando, através dos milênios, no relacionamento de cada um dos casais que se tornaram meus ancestrais, até desembocar na combinação final dos meus pais.

O miraculoso de tudo isso é que em cada ejaculação, bilhões de espermatozóides, potencialmente férteis, podem fecundar cerca de um milhar de óvulos, para formar um novo ser. E no entanto, em cada etapa desse milenar processo, apenas um vingou. E isso vale para todos os machos e fêmeas dos quais tenho nem que seja infinitésima característica, a partir do casal original.

Daí não ser impróprio, e muito menos errado, concluir que sou “um milagre”. Volta, porém, a pergunta de Schopenhauer: “O que fui eu enquanto isso?”. E o filósofo alemão responde: “Metafisicamente, poderia talvez responder-me: ‘Eu sempre fui eu; quer dizer, todos que disseram eu durante esse tempo não eram outros senão eu’”. Há alguma falha, alguma contradição, algum erro de princípio nesse raciocínio? Claro que não!

Minha contribuição, nesta miraculosa “cadeia de vida”, que teve início com o primeiro casal humano, já dei, na geração dos meus quatro filhos. O quanto de mim coube a cada um deles? Quais as características, exclusivamente minhas, cada qual herdou? O quanto delas vão transmitir para meus netos (por enquanto, só tenho um)? Quais? Por que umas e não outras? Perguntas, perguntas e mais perguntas. E a resposta é uma só: não sei e certamente jamais irei saber.

Mas fica nova questão no ar (esta apenas minha): Depois de sobreviver, da origem do homem até hoje, minha morte será, de fato, o epílogo dessa tão longa e misteriosa aventura? A lógica indica que não. Pelo menos enquanto houver algum descendente que transmita infinitésimas partículas do que sou e dessa tão grande herança genética que carrego.

Se em algum ponto dessa cadeia de sucessão houver uma interrupção... Aí, zás! Não restará mais nada, absolutamente nada de mim, provavelmente sequer lembranças. A responsabilidade pela minha sobrevivência, e a desse ramo da árvore da vida, por enquanto, está a cargo do meu único neto. Se, por alguma razão qualquer, ele não quiser (e, por conseqüência) não tiver filhos... Essa decisão irá decretar a minha morte. Esta, sim, definitiva e irreparável.

Isso tudo que foi dito enseja nova conclusão, absolutamente lógica. Se a espécie humana começou com um único casal, surgido sabe-se lá como e de onde (alhures? De outros planetas de outras estrelas? Criado por Deus? Fruto de suposta evolução?), somos todos, de uma forma ou de outra, a humanidade toda, todos os homens e mulheres do Planeta, não importa a cor ou características físicas e mentais, parentes.

Ou será que a espécie se originou de diversos casais? Caso a conclusão fosse essa, de quantos? Mas, ainda assim, pelas características comuns, haveria um par, um só, que teria gerado todos esses diversos casais. Não há como refutar, portanto o nosso parentesco. Onde a verdade? E, a pergunta final: por que não nos amamos?!!!


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Êta, universão velho sem porteira!

* Por Marcelo Sguassábia

Eu acredito em terráqueos. É muita pretensão pensar que nós, extraterrestres, estejamos sozinhos nesse universo imenso. Isso contraria qualquer lógica. Por que somente nós, ETzinhos horrendos, cascudos e disformes, teríamos a regalia de sermos os eleitos da criação divina?

Creio piamente que há algo muito mais divertido, entre os terráqueos, do que este nosso primitivíssimo e insípido sistema de teletransporte. Coisas como carros movidos a combustível e autoestradas ligando um lugar a outro, onde se possa aproveitar cada minuto da viagem e torná-la mais lúdica e emocionante - desviando de buracos, parando em praças de pedágio, encarando engarrafamento ou comendo uma coxinha no caminho. Eu diria que isso sim é que é vida inteligente, ou, no mínimo, interessante.

Nós não morremos, não casamos, não nos reproduzimos sexualmente, não temos conta para pagar nem fezinha na loteria para fazer. Só ficamos de um ponto a outro desse universão de meu Deus, cruzando o cosmo na velocidade da luz e sem encontrar coisa alguma que valha uma distração ou um olhar mais atento. E o que é ainda mais triste: sem achar sentido nesse vai-e-vem abestalhado, nessa expedição sem missão determinada.

Terráqueos sim, devem levar a vida, com afazeres que os ocupam, preocupam e ajudam a matar o tempo. Há relatos (pouco científicos, é verdade) de habitáculos denominados casas e apartamentos, onde os terráqueos se abrigariam com seus entes queridos. E dentro deles há fêmeas com seios e nádegas, partes anatômicas que as nossas desengonçadas ETzas nem imaginam o que sejam, e que por certo lhes causariam uma inveja danada. Alguns dos nossos juram ter feito contato com eles e afirmam que os felizardos cortam grama, fazem churrasco, tiram fotografias das formaturas dos filhos e se deslocam diariamente a lugares onde as tarefas que executam são trocadas por uns papéis cheios de números e desenhos - que eles posteriormente utilizam para converter em gêneros de primeira (ou nem tanta) necessidade.

Com exceção de alguns poucos privilegiados, que nada precisam fazer para terem em abundância os tais retângulos com números, os terráqueos lutam bravamente pela sobrevivência. Ah, minha Nossa Senhora da Ursa Maior, como isso seria maravilhoso para combater o tédio eterno que nos atormenta! Tudo bem, sei que sou só um ET lunático, mas não tenho culpa se insisto em sonhar com outras formas de vida. Enquanto esse acalentado encontro não acontece, deixa eu botar os pés no chão, passar na locadora e alugar pela enésima vez "T, o Terrestre", para assistir no DVD do OVNI.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).

Pastelão de sangue

* Por Fernando Yanmar Narciso

Numa roda de amigos, dizem que ninguém fala mais que o diretor Quentin Tarantino. Portador de TDAH, matraqueia tanto que parece que tem bocas até nas axilas. Tudo na vida dele gira em torno do cinema. Conhece mais filmes, de todos os gêneros possíveis e imagináveis, que a matriz da Blockbuster. Um dos poucos cineastas modernos com aquela mentalidade dos pioneiros da indústria, construiu uma reputação e estilo próprios logo de cara. Sexo, violência, sangue, malandragem, senso de humor mórbido e inesperado e referências à cultura pop a cada 15 segundos são fatores que podem ser observados em sua filmografia desde seu 1º filme, Cães de Aluguel, de 1992.

Pulp Fiction, sua obra posterior, é considerado um dos melhores filmes já feitos por muitos críticos especializados, eu incluso. Mas, após Kill Bill, um dos filmes mais sanguinolentos e rasos de todos os tempos, apesar de cool, ele parece estar tentando fazer trabalhos mais coerentes e profundos. Bastardos Inglórios, sua fábula passada na 2ª Guerra Mundial onde ele literalmente fuzila Hitler e todo o alto escalão nazista, mostrou um Q.T mais maduro e desacelerado e, para variar, com mais algumas indicações ao Oscar.

E hoje, aos 50 anos, quem pensava que o sem-vergonha tinha sido, enfim, domado, teve de meter os pés pelas mãos! Eis que o maluco do Tennessee retorna com a eulogia definitiva de seu gênero cinematográfico favorito: O faroeste italiano trash.

Até quem nunca viu um faroeste já deve ter ouvido o nome Django. Criado por Sergio Corbucci e imortalizado pelo supercanastrão Franco Nero em 1966, o pistoleiro sobrenatural arrastador de caixões inaugurou a carnificina no terreno de John Wayne e foi ressuscitado por Q.T de uma maneira no mínimo inusitada em Django Livre, do ano passado.

Estamos a alguns anos do início da Guerra Civil americana, evento que ajudou a abolir a escravidão no país. Logo, os negros ainda são comercializados e tratados como lixo por 90% da população. King Schultz (Christoph Waltz, o novo ator-fetiche de Tarantino), um ex-dentista alemão que agora exerce a profissão de caçador de recompensas, aborda na calada da noite um grupo de mercadores negreiros, à procura de um escravo para comprar sua liberdade. Mas não de um escravo qualquer, e sim um capaz de rastrear três bandidos que ele procura, e eis que Django (Jamie Foxx) cai em seu colo. Após uma negociação nada amistosa e regada a sangue e vísceras como só o diretor sabe conduzir, Django conta que os tais bandidos foram responsáveis por torturar a ele e Broomhilda, sua esposa, e separá-los no passado. Logo, ele é capaz de fazer qualquer coisa para encontrá-la e se vingar de seus algozes e de quem mais cruzar seu caminho. Assim, após um mais que merecido banho de loja, o escravo liberto torna-se o parceiro e amigo de Schultz em seu negócio mortífero, em que ele realiza a fantasia que, creio eu, todos os negros daquela época devessem ter: Atirar na fuça de um monte de brancos. Aí a gente se pergunta por que o diretor bundão Spike Lee afirmou que boicotaria o filme. Ele tem todos os ingredientes que o cara aprecia: Linguagem chula, luta de classes, a vitória do negro sobre o branco...

Após alguns meses e muitos tiros, os dois enfim descobrem o paradeiro de Broomhilda: Ela ainda é mantida como escrava por Calvin Candie (Leonardo Di Caprio), um tresloucado e cruel negociador de escravos sulista, os quais ele tem o hábito de colocar em rinhas mortais em sua sala de estar, como se estivesse vendo MMA na televisão. Assim, os dois tentam se infiltrar na plantation dele para resgatá-la, com consequências desastrosas. Obviamente Calvin é o alter-ego de Tarantino, pois ele não para de falar por um único segundo e tem o temperamento de um fio desencapado.

Hoje é sabido que o velho oeste não era necessariamente aquela terra de ninguém que Hollywood sempre nos ensinou. Claro que havia seus bandidos e seus crimes, mas não com todo aquele exagero imortalizado por John Wayne e os outros xerifes engomadinhos. Mas, como falamos de um filme de Tarantino, obviamente esse detalhe foi ignorado. A violência mais parece uma sobra do Vietnã. São balas voando para todos os lados, corpos em abundância e muito sangue falso. Aqui ele jorra como se fosse para apagar um incêndio, a tela é simplesmente pintada de vermelho nas sequências finais, como não se via no gênero desde os faroestes revisionistas de Sam Peckinpah. Quase dá pra sentir toda a dor e o terror causados pelas Colts 45 e pelas espingardas Winchester. Porém, antes de nausear todo mundo, o diretor sempre dá um jeito de encaixar uma piadinha canalha ou um acontecimento involuntariamente hilário, para nosso coração voltar a bater. Você sabe que vai se odiar por rir daquelas cenas, mas não consegue resistir. Assim é Q.T.


*Designer e escritor. Site: HTTP://terradeexcluidos.blogspot.com.br

Depressão

* Por Gustavo do Carmo

Pós-parto
Depois que nasceu, seus pais tiveram depressão pós-parto. Cresceu e virou psicólogo, profissão que começou a exercer aos três anos de idade, com os próprios pais.

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Galo
Abaixou a crista. O galo estava em depressão

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Comentário
Fez um comentário infeliz. Sofria há muito tempo de depressão.

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Estrela cadente
— Olha! Uma estrela cadente! Faça um pedido, meu filho!
Um ano depois, o quarentão imaturo e deprimido morria de câncer.

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Turma
A turma de amigos da faculdade decidiu passar a virada do ano na casa do amigo complexado e deprimido. Estouraram o champanhe junto com o flanelinha e o motorista do rabecão do IML.

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Feriado
Enforcou a sexta-feira após o feriado. Deprimido, enforcou-se no sábado.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores

Soneto 172 Antológico

* Por Glauco Mattoso

As frases memoráveis da República
deviam ter, na pedra ou voz gravada,
registro, qual legenda avacalhada
num filme de comédia ou cena lúbrica.

"Prometo que agirei na vida pública
da mesma forma que ajo na privada!";
ou "Fi-lo porque qui-lo", tão surrada;
ou: "Não me deixem só!", suprema súplica.

Também vou proferir, eu que não minto,
a pérola imortal de quem adora
mandatos, completado o quarto ou quinto:

"Da vida partidário saio agora.
Já fiz o que devia, e alívio sinto.
Caguei, limpei a bunda, e vou-me embora!"


* Poeta

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Leia nesta edição:

Editorial – Agressão gratuita

Coluna de Corpo e Alma – Mara Narciso, conto “Um amor que não se cobra”.

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, conto “Dama de vermelho”.

Coluna Personalidade e atitude – Sayonara Lino, poema “Até breve”.

Coluna Porta Aberta – Mário Prata, crônica, “A saber: bicicleta, abelhas e filosofia”.

Coluna Porta Aberta – José Teles, artigo “Satwa”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” – José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com

“A Passagem dos Cometas” – Edir Araújo – Contato: nenem138@gmail.com

“Aprendizagem pelo Avesso” – Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br

“Cronos e Narciso” – Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br

“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br

Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Agressão gratuita

A indústria cinematográfica mundial vive, a exemplo de tantas outras atividades (quer políticas, quer econômicas, quer artísticas ou quer de várias outras naturezas) enorme crise de qualidade e, principalmente, de criatividade, embora muitos, provavelmente, não comunguem dessa minha opinião. Estão no seu direito. Não é por acaso que baboseiras do tipo “Sexta-Feira 13”, “Rambo”, “Casa do Espanto” e tantas e tantas outras coisas tolas, embora inofensivas, sejam produzidas em série, refletindo falta de imaginação contundente, infelizmente aceita, passivamente, pelo público consumidor, como suprassumo de “arte”.

Todavia, de uns tempos a esta parte, uma nova tendência vem se manifestando devagarinho, quer no cinema, quer na Literatura, com algumas características piores ainda: são perigosas, por se brincar com coisas muito sérias, que alguns celerados não sabem respeitar. Determinados produtores (e escritores), ávidos por publicidade, estão investindo contra a religião como se fosse a atitude mais inocente e natural que há. Misturam o sagrado e o profano em um único e podre balaio, sem medir conseqüências, achando que com isso são “revolucionários” ou, no mínimo, originais. Mas não são nem uma coisa e nem outra.

Que algumas pessoas não acreditem em religiões e não queiram se vincular a nenhuma das milhares que há por aí, tudo bem. Estão no seu direito. É questão de foro íntimo que tem que ser respeitada. Que existam os que não crêem nem mesmo em Deus (não importa o nome que Lhe dêem) e interpretem todos os fenômenos do universo por ótica rigorosamente mecanicista, atribuindo a origem e o funcionamento de tudo o que há ao acaso, a um suposto big bang ou coisa que o valha, também é um direito de cada um e que tem que ser respeitado.

O que não concordo é a tentativa de alguns de impor seu pensamento mediante algum tipo de coação, psicológico, artístico ou, principalmente, físico. E disso discordo com a máxima veemência. Sou contrário a qualquer forma de proselitismo, quer de deístas, quer de ateus, e ainda mais utilizando a arte como instrumento. As pessoas podem acreditar no que quiserem, desde que reservem a crença apenas para si. Podem discordar da fé alheia e considerá-la crendices e superstições, mas sem ridicularizá-la. E muito menos utilizando o pretexto de “fazer arte” com isso, até porque, a reação de quem é ridicularizado pode ser imprevisível e de intensidade extrema. Ademais, há milhões de temas a serem explorados em literatura, pintura, escultura, cinema, teatro etc. que não seja o referente à crença.

Entendam, não sou, nunca fui e jamais serei favorável a nenhum tipo de censura e nem poderia ser. O que defendo é que o artista tenha bom-senso (e por que não dizer, bom gosto) e estabelecer distância de assuntos cuja exploração pode ser interpretada como provocação, mesmo que não seja esta a intenção. A crença e a descrença, reitero, são questões estritamente pessoais. A rigor, ninguém tem certeza de praticamente nada num universo complexo e misterioso. Há que se fazer distinção entre o que se acredita e o que de fato é. Certeza, certeza mesmo, não temos praticamente de nada. O que temos são teorias em profusão e só isso. Pode acontecer que aquilo que nos aparente ser absurdo e ridículo hoje se comprove, mais tarde, ser a verdade, e vice-versa.

Depois da controvérsia em torno do filme “Je vous Salue Marie”, por exemplo, que causou tanta celeuma entre nós, na década de 80 do século XX, a indústria cinematográfica partiu para uma agressão ainda mais ostensiva contra metade da humanidade, que professa o cristianismo. Produziu, e rodou, nos Estados Unidos, obra que denominou de “The Last Temptation of Christ”. A propósito do quê? Apenas para gerar a polêmica que gerou? Sim, porquanto sequer sucesso de bilheteria os dois filmes foram. O que questiono é: o que obras dessa natureza (ou similares) têm a acrescentar às artes, à cultura ou até mesmo à verdade histórica? A rigor, nada, absolutamente nada!

Há limite para tudo, inclusive para a ganância, para a burrice e para a falta de senso de determinados artistas que adoram brincar com fogo. Se os produtores desses dois filmes que citei, por exemplo, não acreditavam em nada, eles que guardassem sua descrença para si. Que não tentassem confundir ainda mais a cabeça, já tão confusa, de bilhões de alienados, de inocentes úteis, de robôs, vazios, que vegetam no Planeta, tão desesperançados que só encontram refúgio nas drogas, nos mais ignóbeis vícios, quando não no suicídio. O mesmo vale para Salman Rushdie, com seus “Versículos satânicos”; para Dan Brown, com o “Código da Vinci” e para o caricaturista que publicou caricatura do profeta Maomé em um jornal dinamarquês, que gerou revolta e violência no mundo islâmico. Reputo suas decisões de explorar os temas que exploraram de “apelação”, embora condene também, e de forma veemente, as reações dos que se sentiram ofendidos com essas obras.

É sabido que o mundo abriga mais de 10 milhões de loucos, a maioria absoluta dos quais à solta nas ruas e até desconhecendo sua doença. Fanáticos de todos os tipos e graus de fanatismo há em profusão. Para quê lhes dar pretexto para suas manifestações de insanidade e de delírio? O papel da arte não é este. Não considero, pois, as obras citadas como “artísticas”. O homem pode ter progredido tecnologicamente e, de fato, progrediu demais, não há como negar. Produziu maravilhas, que no passado jamais passaram pela mais alucinada fantasia dos sonhadores. Mas, em termos morais, de profundidade de pensamento, de riqueza interior e de respeito às opiniões alheias, caminhou (e muito) para trás. E alguns indícios demonstram que regrediu aos tempos anteriores até ao de seus ancestrais das cavernas, que cultuavam divindades e distinguiam, pelo menos, o sagrado do profano. E hoje? Parece que ninguém está disposto a respeitar quem quer que seja, sem medir consequências. Pobre mundo sem rumo...

Boa leitura.

O Editor.

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Um amor que não se cobra

Por Mara Narciso

Que destino triste aquele de Ana. Tão pequena e lhe morre a mãe. O pai casa-se novamente e lá se vai a coitada ser vítima das pancadas da madrasta. A malvada bateu tanto na cabeça da pobre, que ficou marcada, e não conseguiu aprender a ler. Na roça, ainda no escuro, quando mal alcançava o fogão, já enchia os pulmões para acender o fogo. Morena, magra, cabelos crespos, sem atrativos físicos ou intelectuais, nem de longe supunha encontrar Pedro João, rapaz bonito, que com ela se casou mal a menina fez 15 anos.

O seu marido levou-a para a cidade, na qual trabalhava num modesto cargo público. Tiveram seis filhos, e Ana, mansa e feliz, cuidava de tudo, com muito asseio e capricho. Pedro João a tratava com um carinho que dava gosto ver. Tão dócil e atento, não lhe deixava faltar nada, nem mesmo amor. Desdobrava-se para agradá-la, que, de cara boa, se mostrava contente da vida.

Dos filhos, tinha os seus preferidos, o mais velho e a mais nova. Mas protegia a todos. E os netos foram chegando, assim como problemas de saúde. Ana manifestou angina, que é uma dor no coração. Precisava de controles periódicos, mas isso não era problema, pois seu marido, agora já aposentado, a levava, de bom grado, para consultórios, laboratórios, clínicas e farmácias.

O filho mais velho desenvolveu insuficiência cardíaca por Doença de Chagas, e vivia mais internado do que em casa. O sofrimento adicional foi ver a nora o traindo, e deixando as crianças de lado. Ana viu seu filho morrer, e logo a viúva dele adoecer devido à vida desregrada, e que também veio a falecer, com seus netos ficando ao deus-dará. Ana sofreu muito, mas, corajosa, cuidou de todos.

Há tempos não sabia que dia era, nem do mês e nem da semana. Falava muito no filho morto, mas não sabia o ano da morte dele. Aliás, não sabia nem a data de hoje. Chorava muito, e, fervorosa, achava na religião consolo para suas dores. Venceu a depressão, e a vida continuou com Pedro João, o restante dos filhos e netos.

O seu grande prazer era cozinhar para o marido, que a elogiava, sem jamais lhe fazer a mínima crítica. Ana também não. Amava e era amada. Pouco saía, exceto para o médico e igreja. Mas teve de sair às pressas para o hospital, junto com seu xodó, a filha mais nova, que já tinha lhe dado um neto. Era para reconhecer um filho morto num acidente. Não a deixaram vê-lo. Muito jovem, o rapaz deixou viúva e filhos pequenos. Sua mãe ficou despedaçada, quase morta pela segunda vez, como se fosse possível morrer duas vezes.

Emagreceu muito com essa perda. Chorou até lhe faltar forças. Todo o sofrimento da saudade do primeiro filho voltou, e quem a conhecia achou que ela nunca mais sorriria. Mas tinha a filha mais nova, que se agarrou a Ana, levando-a para todos os lugares, atenta às necessidades da mãe.

Forte e disposto, tempos depois Pedro João ficou acabrunhado, não comia o que Ana lhe preparava, e também emagreceu, mas não se queixava. Levava a esposa aos lugares, mas, discreto, deixava Ana à vontade. Depois de terminada a conversa, aparecia.

E não é que Pedro João resolve adoecer? Amanheceu paralisado da cintura para baixo, e ainda assim não quis ir ao hospital. Mas a filha o obrigou a ir, ficando ao lado dele. Em uma semana estava morto. Foi um câncer de estômago que ele sabia existir há um ano, e que ocultou para não ser tratado. Ana tinha notado seu emagrecimento. Para que ela não sofresse, esperando pelo pior, ele a poupou.

Morto o marido, Ana demorou a conseguir se levantar, largada na cama sob efeito de calmantes. Dormia muito e não comia. Só falava em morrer. Quando se recuperou parcialmente da realidade tormentosa, e conseguiu forças para abrir os olhos, encontrou na filha mais querida um suporte, um consolo, uma esperança. A filha estava ao seu lado, como que atada a ela, ajudando-a em tudo. Morava perto e orientou o seu filho, já rapazinho, que passasse a dormir na casa da avó. Tomou conta da casa, carro, compras, contas, documentos, e retiradas da pensão, lhe dando também presença e carinho. Com voz suave e sorriso frequente, passou a mão nas receitas, organizou a tomada dos remédios, um problema grande para quem não sabe ler.

Tempos depois começaram a faltar coisas para Ana. Da pensão que permitia viver com folga, agora não dava mais. Busca daqui, procura dali, os outros filhos entraram na história para decifrar o sumiço do dinheiro. Mas as pancadas sobre a cabeça de Ana ainda não tinham terminado. Desde a morte do marido, a filha vinha roubando-lhe a pensão. Sem a mãe perceber, fora reformando a própria casa, trocando móveis, e também fez um empréstimo consignado. Como não havia mundo algum para desabar, pois tudo já havia ruído, Ana desabou.

Ah, como pode ser amarga a vida! Seu coração não resistiu. Sim, essa dor a matou.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/

Dama de vermelho

* Por Marco Albertim

A memória está sempre à espreita, carrega consigo as chances de apalpar uma ou outra lembrança. Inda que distante a lembrança, o traço que fora sua causa segue o juízo para estorvo ou conforto do portador. No caso que segue, deu-se o conforto, visto que o portador, já sem o conchego do que imaginara ser fruto de urdumes íntimos, familiares, viu-se tão só quanto o poente que some sem a prenhez do verso que soprara na véspera.

A tarde já sumira. À sombra dos fícus de troncos grossos, meia dúzia de meninos, gritando, insistia em permanecer ali, sem a claridade do dia guiando a sonoridade de cada voz. O sabiá se calara, dois a três pardais, arrufando, rendiam-se ao escuro das folhas. O coreto, no centro da praça, de tão pardo-escuro, sequer simulava espectros. Vozes mudas, gastas no tempo e por isso mesmo com queixas, teimavam por mais um folguedo, antes de o mato taludo cobrir a terra, cercar bancos e coreto e só o vento cúmplice soprando a lembrança do que fora a distração dos sentidos. Os meninos, em fuga, curvaram-se à transição para a noite.

Só a dama de vermelho sentou-se no banco de tiras roliças de madeira; sentou-se sem apoiar as costas no encosto, rendendo-se em parte ao sorvo da hora. O tecido do vestido, inda que carente de luz, não deu sinais de rendição apesar do cerco da palidez da terra. Nutriu-se da própria cor, como se encorajado pela energia solta na porosidade da dama.

O vermelho sobrevivente ao escuro luziu. Ela levantou-se logo que se viu descoberta. O moço, do outro lado do coreto, mais distante do que ela na proximidade do banco para o coreto, distinguiu-a com cintilação nos olhos também. Viu-a inerte. O vestido balouçante levou-o ao tremor discursivo da bandeira vermelha no Palácio de Inverno. A dama não discursou, mas o riso que desatou, feliz, foi o mesmo de quem tem no propósito uma posse iminente.

Se difusos fossem os cumprimentos, nada ali estranharia as faces submissas dos dois. Mas, ora... Os olhos se abriram feito a lua ainda indecisa de sua força, à cata de súditos. Não houve choro, mas as pupilas fenderam-se no transe da rica coincidência entre a linguagem dos olhos, do juízo e do coração. Os sentidos, sublevados, fizeram murchar mais ainda caules e corolas nos canteiros suspensos entre um banco e outro.

Os sinos da igreja do outeiro, conformados à mudez de mais de uma vintena de anos, caíram num silêncio tão fundo quanto a sentença do infinito sobre a torre da Igreja do Carmo. A praça do mesmo nome, objeto de estudos para encenações teatrais, súbito quedou-se em sua perplexidade muda e cúmplice.

Os dois se olharam sem crer na própria fortuna. O rubor do tecido da dama, junto com seu frescor, incidiu nos olhos do moço a flama de uma juventude descaída na Travessa da Matriz. Lá, ele ouvira o grito tenro da moça ainda viçosa e longe de ser nubente. Ouvira-a imprecar contra o que ajuizara ser próprio de sua sisudez precoce.

Agora, abraçando seu corpo convencido de que tinha a força para se vingar dos anos. Difícil foi dizer o seu nome, porque os anos arrancaram-lhe o caro costume.

A memória ajuntou as prédicas do pároco no altar, na esquina da Travessa; sem mencionar seus nomes, mas sentenciando-os a uma troca de olhares furtivos. As prédicas ditando costumes, afastou-os; com o apoio da oração da mãe, do quiri nos olhos do pai.

Já fora da praça, na calçada, a luz do poste flagrou-os de mãos dadas. Subir a ladeira de paralelepípedos para a rua de São Bento, deu-lhes a certeza de uma vindita legítima, própria de quem evitara o precipício. A conversa deu-se franca, inda que escassa por força do transe. Na veia dos dois, o sangue quis se rebelar contra o confinamento da pele. Suaram a sordidez dos anos, sôfregos, zelosos dos traços que o tempo não tivera força para fazer sumir de seus rostos.

O vinho português servido por Jaime, setubalense, convenceu-os de que também na terrinha de além-mar, a bandeira rubra há de tremular. Como o vestido rubro de Josy, confundindo os meus sentidos. Na varanda do restaurante, ouvindo o ensaio da Pitombeira.

Agora o vento sopra com a mesma prenhez da véspera, carregado de perfumes.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

Até breve

* Por Sayonara Lino

A música que não ouvi
O beijo que não dei
O abraço que não recebi
Os sorrisos que não virão
A alegria que deixei para trás
Os dias que não verei
A saudade dos que ficam
Parti, tão de repente
Não me despedi
Aos que ficam, agradeço
Por buscarem por mim
Pelas flores e preces
Pelas lágrimas fartas
Pela saudade a mim dedicada
Por suportarem a lacuna
Por toda boa lembrança
Por todo amor
Por todo o tempo
Até breve


• Jornalista, fotógrafa e colunista do Literário
A saber: bicicleta, abelhas e filosofia

* Por Mário Prata

Praia da Baleia, litoral norte, com chuva de quarta a domingo. Um dia, fim de tarde, ameaçou um solzinho e eu resolvi entrar no mar. Sou seja, só as canelas.

Maré baixa, praia larga, duas traves de futebol e foram chegando pescadores e filhos de pescadores para um racha.

Voltou a chuva, ainda que fininha - mas fria, e eu resolvi entrar. Na casa ao lado da minha um garoto veio de bicicleta até o portão (fechado) para ver o jogo. Por um instante - não mais que isso, bati o olho nele.

Ele estava sentado na bicicleta, apoiando-se no chão com a perna direita. Achei que ele não queria dar bandeira que estava assistindo o jogo, sei lá porque. Se não, teria descido da bicicleta e sentado no murinho. Mas não, ele parecia estar ali de passagem.

Da minha varanda fiquei assistindo ao jogo e ao garoto. O jogo tinha suas regras: quem chutava a bola para fora tinha que ir buscar. Até mesmo quem fizesse o gol. Com camisa versus sem camisa, como convém num bom racha. O garoto tinha apenas uma regra: não se mexia. A perna dele devia estar doendo.

A chuva aumentou. Os pescadores foram embora. O garoto deu um grito para dentro. Surgiu um outro, irmão talvez. Ele desceu da bicicleta e foram jogar futebol.

Até agora eu não entendi por que ele não jogou com os pescadores e seus filhos

Antonio (19, estudante de filosofia) estava na rede. Uma abelha tentava morder a perna dele. Conseguiu. Irritado, deu uma chinelada nele mesmo e matou a bisbilhoteira.

Tenório (55, psicanalista), tenorizou:
- Não faça isso, Antonio. Agora, com ela morta, virão várias abelhas para cá.
- Imagina...
- Verdade. Tem um sujeito que ganhou o Prêmio Nobel com essa teoria. As abelhas tem uma espécie de antena, de radar, que faz com que uma saiba onde está a outra. Como radar de avião. Elas mantêm uma rede aérea de comunicações. Daqui a pouco isso aqui vai estar cheio de abelhas. Primeiro vem uma para ver porque a que morreu deixou de transmitir ondas. Depois ela chama as outras. Isso aqui vai ficar um inferno.

Tenório ainda disse o nome do Nobel e o ano do prêmio.

Não deu outra. Em cinco minutos Antonio estava correndo, fugindo das outras aeronaves picantes.

Depois que voltou:
- Tenório, um dia eu vou produzir um programa de televisão com você. Por enquanto, tenho apenas o título: "Pergunte ao Tenório".

Mais tarde, Antonio, que estuda Filosofia na USP, falava dos mestres:
- Eu não sei por que, mas por que é que todo filósofo, quando vai citar alguns exemplos, sempre diz "a saber"?
- Como assim?
- Exemplo: eu tenho dois irmãos, a saber: fulano e fulano. Está entendendo? Não precisa nunca usar o "a saber". "A saber" não significa absolutamente nada. Nada! Me irrita isso. "Sobre este assunto, tenho três teorias, a saber". Me explica, tem que ter o "a saber"?

E por falar em filósofos, enquanto chovia, Ruth (30, editora) contava a história de um grupo de professores de filosofia que se reuniu para discutir certos aspectos da profissão.

Ficaram numa espécie de pensão, e discutiam o dia inteiro.

A empregada do local, só de olho naqueles homens que ficavam o dia inteiro a discutir, foi ficando intrigada.

No último dia do encontro, ela não resistiu e perguntou a um deles:
- Desculpa a minha curiosidade, mas vocês vieram fazer o quê, aqui?
- Viemos discutir filosofia.

E então, ela filosofou:
- E chegaram à alguma conclusão?

Não pense que eu esqueci a história dos ETs, não. Já recebi oito cartas deles. Faltam 17. Inclusive a sua.


* Escritor e jornalista