quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 7 anos, sete meses e um dia de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Escassas referências sobre inspirado artista.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Pão nosso de cada hora”.

Coluna Contradições e paradoxos – Marcelo Sguassábia, crônica, “Supermercado Volte Sempre”.

Coluna Do fantástico ao trivial – Gustavo do Carmo, conto “Bonecas quebradas”.

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, crônica “Brasília soterrada no Sahara Brasiliae”.

Coluna Estante – Dia nacional do Saci-Pererê e lançamento de livro.


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Escassas referências sobre inspirado artista

O décimo quinto escritor incluído na antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963), que me serve de referência para esta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos, é José Pedreira. É mais um, entre uma meia dúzia, sobre o qual não encontrei nenhuma referência específica sobre quem foi, o que fez e quais obras nos legou. Sequer consegui apurar se ainda está vivo, atuante e publicando textos, mesmo que em jornais, ou se já morreu. Lamentável.

Sei que foi importante para as chamadas “belas letras”, tanto regionais quanto nacionais, por  referências esparsas ao seu nome e por citações truncadas de seus textos. Uma delas, por exemplo, sugere que se tratou de um artista (porquanto não se limitou à Literatura) bastante popular na Bahia, sobretudo em Salvador. É contra esse tipo de “crueldade”, de esquecimento, de súbita “amnésia”, ainda mais quando generalizada, que me rebelo, por considerar essa atitude injusta e desleal. José Pedreira, além de escritor (e dos bons, como pude apurar pelo conto com que participa do livro “Histórias da Bahia”), foi crítico de arte, decorador, especialista em santos antigos e em peças baianas de mobiliário. Ainda assim... Convenhamos, era para ter mais, muito mais referências ao seu nome e à sua obra na internet do que as que existem (ou, na verdade, “inexistem”). E ele é apenas um de meia dúzia de outros escritores que participaram desta antologia sobre os quais há escassas fontes para o analista consultar.

Certamente, seus conterrâneos sabem muito a seu respeito. Certamente os jornais da Bahia, sobretudo os de Salvador, têm inúmeros dados, quer sobre sua vida e quer sobre suas atividades. Mas... fora do âmbito do seu Estado... age-se como se ele não tivesse existido. Está aí uma oportunidade para alguém dinâmico e com capacidade de iniciativa fazer um resgate da sua trajetória literária e jogá-lo neste “oceano” sem limites de informações, que é a rede mundial de computadores. Sei, por informações publicadas no livro “Histórias da Bahia” – que, recordo, foi publicado em 1963, portanto, há meio século – que José Pedreira nasceu em Itaparica, em 1923. Mas, em que dia? Em que mês? Ignoro. Assim como não consegui apurar se já morreu ou não. E, em caso positivo, quando, onde e como? Confesso, nesse caso (ou também nele), minha profunda ignorância.     

Sei ainda, informado pela mesma fonte, que José Pedreira fez parte do grupo dos “Cadernos da Bahia”, com Vasconcelos Maia, e que teve intensa participação no movimento cultural baiano, notadamente a partir de 1948 e até a publicação da citada antologia. Daí deduzir, por a + b, que os jornais baianos e, principalmente, os de Salvador, têm uma infinidade de informações a respeito desse escritor. Então, por que não as disponibilizam na internet, esse magnífico recurso quando bem aproveitado?!!! Não entendo a razão e nunca irei entender.

Sei que José Pedreira publicou pelo menos três livros, sendo um romance, cujo título ignoro, e dois de contos: “Rosa da noite”, em 1953 (Edições Cadernos da Bahia) – com ilustrações desse argentino “mais brasileiro”, ou melhor, “mais baiano” do mundo, que foi Carybé – e “Histórias de Gustavinho”, de onde foi extraída a história publicada na antologia que me serve de referência para esta série de estudos. Provavelmente sua bibliografia é muito mais extensa. Mas... peço escusas ao leitor por não conseguir detalhar a sua obra.
     
Como venho fazendo com outros escritores, partilho com vocês o trecho final do conto “O amor no circo” com que José Pedreira participa de “Histórias da Bahia”. Tão logo colha mais informações a seu respeito (e estou certo de que receberei, por e-mail, inúmeras delas) voltarei a tratar desse ficcionista que, com tudo e por tudo, mais do que merece sua inclusão entre os melhores e mais representativos da ficção tanto baiana quanto nacional.

“(...) O vento fabricava formas bizarras na capa de cetim preto, ora enchendo-a de ar como um balão, ora impelindo-a para trás como uma cauda – “Vou lhe contar uma história de Fabiano”, propôs a mulher e como Gustavinho olhasse o relógio no pulso e fizesse um aceno negativo com a cabeça, ela prosseguiu, decidida: -‘Ora essa, que diferença faz se você fica aqui mais uns cinco minutos?’ Gustavinho baixou os olhos num assentimento. Dos fundos do circo, chegavam sons indistintos de vozes e o cão ladrava a intervalos.
- ‘Há alguns anos havia aqui no circo uma moça que gostava muito de Fabiano...’ A mulher falava lentamente, destacando cada palavra. – ‘...era filha do dono do circo e tinha o melhor número de todo o espetáculo. Até hoje não tivemos uma outra que dominasse tão bem o trapézio’. O canto de um galo rasgou o ar como o repuxo de uma fonte. – ‘... quando Fabiano chegou – e não se chamava Fabiano, não tinha nome nenhum, foi ela q   UEM inventou esse nome para ele – a moça lhe foi logo tomando amizade’. A mulher se chegou para mais perto de Gustavinho e o vento soprando por detrás, fazia com que a capa se transformasse em duas grandes asas prestes a envolvê-lo. – ‘Como ele era mais bonito, mais inquieto, e como os seus rugidos faziam todo mundo tremer, até mesmo o domador quando se aproximava dele... foi preciso um ano pára ele aprender a pular o obstáculo e se sentar depois no caixote listado. Todos temiam Fabiano – menos ela, a moça do trapézio  Era ela, e ninguém mais, quem lhe dava a comida e quando ia à rua, trazia sempre doce, que Fabiano...’ e a mulher riu novamente, curvando o busto para trás, ‘... não gosta somente de carne fresca’. Gustavinho respirava constrangido o cheiro desagradável que vinha da jaula, misturado ao perfume que a mulher usava. – ‘Todo o circo se admirava da coragem daquela moça quando ela metia os braços na jaula e acariciava a juba de Fabiano. Vinham espiá-la, o domador se mordia de inveja... até que chegou aquela tarde terrível’.

(Nesse momento iam chegando em casa a mulher alta de mãos magras e calosas e a menina triste com o vestido de rosas desbotadas que por segundos se tingiram de sangue. A menina segurou os braços da mãe e falou: - ‘Mamãe, eu tenho medo, mamãe’ e a mãe lhe respondeu; - ‘Já estamos em casa, menina’).
- ‘A moça foi ver Fabiano, tão contente ela estava, trazia um pacote de doces, Fabiano ia abrindo a boca e ela jogando os doces lá dentro’. Gustavinho sentia o corpo da moça quase colado ao seu, uma sensação de mal-estar produzia-lhe uma leve náusea. – ‘Depois ela ficou acariciando a juba de Fabiano, alisando-lhe o focinho – e havia gente por perto e todos olhavam boquiabertos a intimidade da moça com o leão – e quando ela quis puxar o braço era tarde...’ Gustavinho mantinha os olhos baixos, calculava o caminho que deveria tomar se pudesse fugir. – ‘...ah, quando as pessoas vieram acudi-la, a moça foi carregada sem sentidos... suas mãos tinham sido destruídas pelos dentes de Fabiano’.

Sempre com olhos semicerrados, Gustavinho sentiu o frio dos lábios que o beijavam de chofre e o frio dos dois ganchos de metal que apertavam-lhe as costas, quase a feri-lo. O leão levantara-se na jaula e rugia num urro longo e cadenciado. A noite era de vidro – toda cintilações de estrelas, lua e gás neon”.

Boa leitura.


O Editor

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.   
Pão nosso de cada hora

* Por Pedro J. Bondaczuk

O homem vive de ilusão”. Essa afirmação categórica e peremptória é do escritor português, Antero de Figueiredo, que nasceu em Coimbra, em 28 de novembro de 1866 e morreu na cidade do Porto, em 10 de abril de 1953. Certamente, muitos contestam-na, contestaram-na e a irão contestar tempos afora, dizendo que tal declaração é uma generalização sem fundamento e que boa parte das pessoas, se não a maioria, encara a vida com os pés bem fincados no solo da realidade. Será?

Gosto, particularmente, desse escritor, não apenas pela profundidade do que escreveu, do seu estilo e da elegância com que maneja seu instrumento de trabalho (a palavra), mas porque sua trajetória de vida guarda algumas semelhanças com a minha. Como ele, por exemplo, também pretendi seguir a Medicina. Ele, na tradicional Universidade de Coimbra, eu... em Botucatu, aqui no Brasil.

Antero desistiu do curso e enveredou para as Letras. Formou-se na Universidade de Lisboa. Eu... abri mão do meu sonho para encarar o Jornalismo. Nossa identidade de trajetória de vida, porém, pára por aí. O escritor português desenvolveu brilhante carreira na Literatura Portuguesa e tornou-se um marco, nos séculos XIX e XX. Eu... tento abrir caminho na Brasileira neste confuso e dramático século XXI.

E o que vem a ser a tal da ilusão, sobre a qual tantos falam e escrevem e poucos se dão conta do que, de fato, se trata? A palavra deriva do latim “ilusione”. Os dicionários classificam-na da seguinte forma: “Substantivo feminino – engano dos sentidos ou da inteligência; interpretação errada de um fato; pensamento quimérico; coisa efêmera; utopia; fantasia; efeito artístico que produz ou procura produzir a impressão de realidade”.

Quem pode afirmar, com absoluta honestidade – e não apenas dizer, mas provar –, que nunca passou por nenhuma dessas situações? Todos já passamos e não apenas uma só vez, mas inúmeras, em vários dias, semanas, meses, anos, pela vida afora. Antero de Figueiredo vai mais longe. Afirma que a ilusão é o “pão nosso de cada hora”. E eu diria mais: “de cada segundo da nossa trajetória pelo mundo”.

Quem nunca foi enganado pelos sentidos? Quem nunca interpretou de uma determinada forma o que viu, quando na verdade era muito diferente do visto? Isso acontece com incrível freqüência, a todo o momento, e raramente nos damos conta. O mesmo equívoco ocorre com as “interpretações” da audição, do paladar, do tato e do olfato. E a inteligência, nunca se engana? Interpreta corretamente o que nos cerca ou de que tomamos, de alguma forma, conhecimento? Percebe, com absoluta lucidez (e nitidez), sem a menor possibilidade de enganos, as motivações e conseqüências dos fatos? Raramente! Diria, praticamente nunca. Vive a cometer equívocos, gerando, portanto, ilusões.

E quem nunca teve algum pensamento quimérico? Quem nunca desejou e sonhou com algo que não existe, não, pelo menos, daquela forma exata que almeja? Quanto à efemeridade... Tudo é efêmero, transitório e passageiro. Principalmente cada um de nós. O que são setenta, oitenta, noventa ou mesmo cem anos de vida nossos diante da eternidade? Virtualmente, nada! Somos todos, cada um de nós, ilusões ambulantes.

Quanto à utopia, quem não aspira por um mundo ideal, de solidariedade, justiça, amor e paz? Por mais egoísta que uma pessoa seja, por mais maldosa e destrutiva que se mostre, não há quem nunca tenha tido essa aspiração algum dia, mesmo que à sua maneira. No entanto... isso também é ilusão.

A fantasia, por seu turno, é a marca registrada do único animal conhecido da natureza dotado de inteligência, ou seja, da capacidade de entender o que é, onde está e tudo o que o cerca. Mas entende literalmente, exatamente como é? Claro que não! O que são os símbolos, como a linguagem falada e escrita, os números, a matemática, as ciências e a filosofia, se não fantasias? O que eles têm de concreto, de palpável, de real? Nada, não é mesmo? Tudo isso é um conjunto de ilusões, admitam ou não os pseudo-realistas (na verdade, ou imensos equivocados ou tremendos mentirosos).

Restam-nos, na relação de significados dessa palavra tão citada e pouco compreendida, as artes. O que há de real nas concepções e, sobretudo, nas realizações das obras artísticas? É verdade que os artistas se esmeram em simular a realidade (ou o que entendem como tal), dando às suas produções a maior verossimilhança possível. O que são, no entanto, pinturas, esculturas, músicas, coreografias, encenações teatrais, poesias, contos, romances etc. se não maravilhosas e marcantes ilusões?     

Antero de Figueiredo explica essa nossa necessidade de nos iludirmos: “As almas sobem como o fumo; a busca do ideal é a fuga dos desgostos da vida real, quando menos bem-compreendida; é um instinto de defesa, que solicita o homem a robustecer-se com nobres visualidades; é, enfim, o progresso espiritual e moral da consciência”.

Após toda essa explanação que fiz, emergem, automaticamente, estas questões: é possível vivermos sem ilusões? É desejável? Há alguém, uma só pessoa que seja,.das quase 7 bilhões que habitam o mundo atualmente e das tantas e tantas que já viveram desde o surgimento do homem sobre a Terra, que seja ou tenha sido completa, total, irrestrita e absolutamente realista? Não, não e não!

Claro que, como em toda e qualquer coisa, aqui também os excessos são condenáveis. Não temos que nos envergonhar, contudo, por nos alimentarmos, a cada dia, a cada hora, a cada reles segundo, de ilusões. Porquanto, como constatou Antero de Figueiredo, ela é “fecunda”. É a matéria-prima das artes, das ciências e da filosofia. É o próprio caráter do homem. Sofismas a parte, é a única realidade possível. É, sem tirar e nem pôr, “o pão nosso de cada hora”.




* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk  
Supermercado Volte Sempre

* Por Marcelo Sguassábia

Não tarda e chega de novo a hora dela: a compra de mês.

Lá vão os dois. No caminho, o marido vai pensando na série interminável de procedimentos à espera: da prateleira para o carrinho, do carrinho para o caixa, do caixa para o carrinho de novo, daí para o porta-malas, do porta-malas para o carrinho do prédio, do carrinho do prédio para a despensa de casa. Haja saco e saquinho de supermercado. Aliás, esses sim, resistem a tudo. Se você colocar mais que uma pasta de dente em cada um, a alça arrebenta.


É assim há 20 anos, todo santo dia 15, a melhor data para a fatura do cartão. Multiplicando-se os 20 anos por 12, temos a fantástica cifra de 240 compras de mês no decorrer do período.


Chegaram. É claro que o carrinho deles tem a roda enguiçada, que fica puxando pra um lado.  Enquanto está vazio, tudo bem, quase não dá pra notar o incômodo. Mas à medida que o carrinho vai enchendo, o manobrista vai se enchendo junto.


Um carrinho vazio de supermercado nunca está vazio de tudo. Há sempre um raminho de brócolis esmagado, uma etiqueta de sutiã 54 e outras coisinhas do gênero, que podemos chamar de restos mortais da batalha anterior. Às vezes tem também a lista de compras da pessoa que usou o carrinho antes de você. Aquela listinha bem caseira, dobrada em quatro. Os ítens encontrados estão ticados ou riscados. Pode ser o contrário – o que está na lista é o que ainda tem em casa, pra lembrar de não comprar. Uma dica: se você estiver sem sua listinha pessoal, leia a do usuário anterior. Talvez você se lembre de alguma coisa que tinha esquecido.

Exemplo de lista típica, de autor anônimo:

Guardanapo – trazer 4 do + barato.
Pó de café – ñ comprar.
Bolacha de recheio – tem 2
Pipoca de microondas – pegar aquela do palhacinho, ñ lembro a marca.

E por aí vai. São todas mais ou menos assim.

O locutor anuncia uma oferta relâmpago. Ela lembra quando, em 1992, quase testemunhou o soterramento de uma velhinha num quiosque promocional de leite condensado. No empurra-empurra, entornaram a anciã no mar de latinhas, com as pernas pra cima e as anáguas à mostra.

Olha pra um lado, olha pro outro, ninguém está vendo. E ele devolve o Detefon Mata-Tudo na gôndola do grão-de-bico. Quem não faz isso? Mês passado ele encontrou um par de Havaianas tamanho 41 em cima de um filé de merluza, em oferta a 9,90 o quilo.

Por mais unido que seja, há o momento da separação do casal no supermercado, na seção de cosméticos. Ali a mulher vai passar pelo menos 45 minutos. Sabendo o tempo que vai perder, ele vai para aquele corredor perto das rações de cachorro, onde tem broca, estopa, cera automotiva e chave de fenda. É o habitat do macho de bermuda, camiseta regata, chinelão e barba por fazer.

Fim das compras, resta pegar a fila do caixa. Todas estão mais ou menos do mesmo tamanho, é preciso escolher uma. Meia hora depois eles percebem que é justamente essa uma que não anda. Todas as filas vão de vento em popa, menos a deles. É quando eles reparam no crachá da funcionária: “Em Treinamento”. Azar, agora é tarde pra entrar em outra fila.


Enquanto um vai colocando as coisas na esteira, o outro vai embalando. Mas aí a patroa lembra: “Nossa, esqueci o rodo!”

Que legal. Nada mais prático pra embalar e pra enfiar depois dentro do carro. Lá vai o maridão correndo feito um fugitivo da polícia, atrás do rodo esquecido. Chega lá e se depara com 16 tipos de rodos diferentes: com cabo de madeira, sem cabo de madeira, de alumínio, com borracha grande, com borracha pequena, com duplo borrachão, com triplo borrachão e exclusiva fita deslizante. Pega o que parece mais apresentável e nem olha o preço – a fila está parada, esperando por ele.

Mais surpresas. A água sanitária vazou bem em cima da baguete. O coalho do queijo fresco encharcou o sabão em pó. A cartela de danoninho, que estava lá no fundo, foi impiedosamente massacrada por uma PET Xereta de 2 litros. Acionado o fiscal do estabelecimento, o marido explica a história, diz que não foi culpa dele. Em vão. Vai ter que pagar pelo que fez e que não vai comer.

Na saída, cadê o carro? A3, C5, B4? Ficam zanzando a esmo pelo labirinto de automóveis. Encontrado o Corcelzinho, guardam as compras e chegam à cancela.

- Benhê, o cartão do estacionamento.
- Ué, pensei que estava com você...

Inspeção no porta-luvas, embaixo dos bancos, nos bolsos, na bolsa...

Pensa que acabou? Imagina. É como diz o saquinho – “Volte Sempre”. Dia 15 do mês que vem tem mais.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).

Bonecas quebradas

* Por Gustavo do Carmo

Quando criança, Bonerges brincava com bonecas. E com bonecos também. Os brinquedos eram todos dele, inclusive as Barbies e as Suzys. Usava as bonecas como as mocinhas em perigo das suas brincadeiras e os Falcons e Rambos eram, obviamente, os heróis.

Quem dava as Barbies era a mãe, pois o pai se recusava a dar bonecas para o filho que deveria ser macho. E Bonerges realmente era. E muito. Não tinha nenhum jeito afeminado. Mesmo assim, não deixou de ser vítima de bullying. Culpa do seu melhor amigo (da onça) Geraldo Igor José, que entregou a sua diversão para os colegas de escola mais arrogantes e fortões.

Claro que ele ganhou o apelido maldoso de Boneca. A macheza de Bonerges o ajudou a se defender das difamações e até das agressões físicas. Não agrediu Geraldo. Ficou apenas um ano inteiro sem falar com ele, perdoando-o apenas depois que o traidor sofreu um acidente e ficou paralítico.

Isto acabou lhe despertando um sentimento de caridade e compreensão incomum. Bonerges perdoou os valentões e passou a ajudar qualquer um. Dava comida para um mendigo, socorria um acidentado, ajudava um idoso a atravessar a rua e até tentou trabalhar de voluntário em um abrigo de menores, mas foi impedido pelos pais.

Um dia, Bonerges emprestou as suas Barbies para a irmã mais nova, Poliana, brincar com a coleguinha. Sem querer, ela deixou a boneca cair na rua. Para não ser atropelada, deixou o carro passar por cima do brinquedo, que perdeu a perna esquerda e o braço direito.

Poliana ficou desesperada, com medo de que o irmão mais velho lhe desse uma boa surra, apegado do jeito que era às bonecas. Ela ainda não sabia da compreensão de Bonerges, que não lhe fez nada. Pelo contrário. Deu um beijo em sua testa e os dois irmãos brincaram juntos até o anoitecer com a boneca quebrada, que se tornou deficiente física na sua imaginação infantil após ter sido torturada pelo vilão Esqueleto.  

Depois, Bonerges passou a quebrar, de propósito, as pernas e braços de seus bonecos. Não para ganhar novos brinquedos. Mas para dar asas à sua imaginação. Primeiro imaginou os vilões sendo castigados e as mocinhas continuaram torturadas.

Bonerges cresceu e parou de brincar com as bonecas sem braços, sem pernas e cabeças achatadas. Deu todas para a sua irmã. Mudou de escola quando passou para o Ensino Médio. Fez novos amigos, entre eles, um jovem sem braço, Felipe. Arrumou até uma namorada, Bárbara.

As brincadeiras com bonecas quebradas ficaram na infância de Bonerges, que só queria namorar. Até Bárbara ser atropelada na saída do colégio e perder uma perna. Envergonhada da sua nova condição, a menina terminou o namoro.

Ainda com o seu enorme sentimento de caridade, Bonerges fez de tudo para reatar o romance, garantindo que ele amava as mulheres do jeito que elas eram. Não se importava com a aparência. Não conseguiu convencer. Bárbara arrumou outro namorado no Centro de Reabilitação, que também não tinha uma perna.
O sentimento de compreensão de Bonerges começou a ficar abalado. Mas ele tocou a vida pra frente. Não namorou mais até concluir o ensino médio. Fez vestibular e passou para uma faculdade pública onde cursaria Fisioterapia.

No curso superior conheceu Suzana, uma linda moça que perdeu do braço até o ombro esquerdo por causa de um câncer ósseo. Ela ainda nem tinha cabelo, que cresceu quando começou a namorar Bonerges. Os dois se formaram, conseguiram, juntos, um estágio no mesmo centro de reabilitação em que a ex-namorada Bárbara foi tratada e se casaram.

Tiveram uma boa rotina sexual. O prazer era mútuo. Não tiveram tempo de ter filhos. Um ano depois do casamento, o câncer ósseo voltou, se espalhou por todo corpo e Suzana não resistiu. Bonerges não quis mais se casar. Só desejava realizar as suas fantasias sexuais. Com deficientes físicas.

A compreensão e caridade deram lugar à loucura. Gradativamente. Começou tendo relações sexuais consentidas com algumas meninas sem braço e sem pernas do Centro de Reabilitação. Depois, passou a abusar de outras, quando foi demitido. Bonerges já era o diretor da instituição. Foi processado por assédio sexual. Ainda não tinha sido denunciado por estupro.

A loucura chegou ao grau máximo quando ele passou a aliciar as fisioterapeutas e enfermeiras (as mais bonitas, claro) para criar as suas próprias bonecas quebradas em seu laboratório num sobrado velho na Lapa, como se fosse um atelier. Ele realizava todas as suas fantasias. Algumas morriam de hemorragia. Se não morriam, ele matava para não ser denunciado. Bonerges embalsamava os corpos e brincava.

Antes de ser acusado pelos crimes que cometeu, o ex-fisioterapeuta com compreensão e caridade passou a sequestrar moças sem ligação com o centro de reabilitação: estudantes, profissionais liberais, jornalistas, modelos, atrizes e uma policial, que serviu de isca para prendê-lo em flagrante.

Foi condenado por diversas acusações de homicídio e ocultação de cadáver. Foi internado no Manicômio Judiciário. A única visita que recebeu foi da irmã mais nova Poliana, que não participou dos crimes do irmão, mas ajudou a encobri-los. Foi condenada como cúmplice, mas cumpre a pena em regime aberto.

Poliana levou as velhas bonecas quebradas da infância.
— Ué? Você não tinha jogado as bonecas fora quando cresceu? Perguntou Bonerges.
— Não. Fiquei com pena, tirei do lixo e guardei bem guardado para a gente brincar em nossos últimos dias de vida.

Ele deu um beijo em sua testa e os dois irmãos brincaram juntos até o fim do horário de visita com as bonecas quebradas, deficientes físicas na sua imaginação psicótica.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu  blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores


Brasília soterrada no Sahara Brasiliae

* Por Elaine Tavares

Li o novo livro de Raimundo Caruso, Sahara Brasiliae, em pequenas doses. Devagar, como a própria narrativa, que avança e recua por uma cidade fantasma. A história fala da capital brasileira que, um belo dia, amanhece tomada pela areia, num calor escaldante. Nela, apenas alguns personagens vagueiam, ligados, mas sem nunca se encontrar. Tudo é silêncio e solidão. Calor, abafamento, angustia, sensação de abandono e caos. E, como a areia se move com o vento, a cidade vai se mostrando e desaparecendo, ao mesmo tempo, num movimento sem fim e vertiginoso. Os personagens, ficantes no inferno amarelo que se tornou Brasília, vão nos instigando. Uma tradutora, um ciclista, o narrador, o arcebispo, os políticos, um bibliófilo, um blogueiro, um arcebispo. São figuras estranhas e, ao mesmo tempo, tão reais e próximas que, por vezes, quase lhe reconhecemos as feições.

As andanças do narrador pela cidade deserta são descritas em narrativa vigorosa e dura. Hora lenta, ora ligeira. O texto nos envolve como se fora uma profusão de pequenas cenas, reais e visíveis. A gente consegue sentir a areia entrando pelos poros, os cheiros e, por vezes, quase desfalecer com o calor que emana da trama. O trecho em que o caminhante entra em um mercado, no qual as comidas todas estão apodrecendo com o calor sufocante, é de arrepiar. Produtos químicos, transgênicos, conservantes e toda a sorte de porcarias que se adicionam aos alimentos parecem adquirir vida e nos mostram todo o terror que, cotidianamente, essas coisas que comemos contêm, sem que nos demos conta. É talvez o momento mais impactante do livro. Uma podridão que nos arrasta, e que está dentro de nós.

Raimundo escreveu o livro antes das jornadas de luta do mês de junho, mas, a problemática política do país está completamente presente no romance, quase como se fosse um texto premonitório. A Brasilia ocupada pela areia ainda é a nossa confusa e desumana capital, com todas as suas belezas e contradições. O centro de uma política que tem uma opção de classe. E que não é a das gentes comuns. Por isso, na trama, Caruso acrescenta, em relevo, dois escritores que deixaram sua marca na humanidade: Erasmo de Rotterdam e Thomas More. E, assim, entre a loucura do status quo e a utopia que nos move para a transformação, nós também vamos escalando as montanhas de areia, tentando respirar num ambiente que nos oprime para além do físico.

A narrativa de Raimundo Caruso ainda oferece outros subtextos. É também, por vezes, uma espécie de ode à palavra mesma, essa ferramenta de quem escreve. O autor e o narrador estão sempre a buscar uma, duas, três palavras que se dizem, ao mesmo tempo, sinônimas, reforçando sentidos e se mostrando quase autônomas, como de fato são. Outro subtexto é reverente amor de Caruso pelos livros. Um toque de Maupassant, Whitman, Somerset, Poe, Goethe e tantos outros que revelam os dias e noites de infinitas leituras. Também não fica de fora a América Latina e as novidadeiras realidades de lugares como a Bolívia, Venezuela, Equador que desvelam um autor ligado nos transformações do nosso continente.

Sahara Brasiliae é sufocante, estridente, instigante, intimista e revelador. De alguma forma condensa também a trajetória desse escritor que iniciou sua trilha de escriba no romance, passando depois pelo jornalismo. Como Caruso, o homem que caminha pela areia da cidade soterrada não está perdido no caos. Apesar do absurdo da realidade ele se move com confiança, seguro, sabendo onde buscar o que precisa ser visto. E, ainda que nenhum dos personagens se encontrem ao longo da trama, o narrador consegue ligar essas vidas de tal forma que ao final a impressão que fica é de que ele encarna cada uma daquelas almas. O autor é a totalização de todos os personagens. Talvez seja por isso que quando a areia da cidade se esvai, tudo o que fica é a perplexidade daquele que, sendo muitos, nada mais tem a fazer do que seguir seu caminho, esgrimindo as palavras e construindo novos mundos. Diante do completamente inesperado, sobe no táxi, e recomeça.

É como uma metáfora de nós mesmos. Dando combate à solidão, à realidade de um país em escombros, ao nosso próprio medo de estar soterrado e perdido no calor. A última página aparece como um vento fresco e, como o autor, não nos resta outra opção que fazer um sinal ao táxi, e seguir adiante, não sem estar com a alma em ebulição. Mas, ao que parece, esse é o destino da gente. Nunca paralisar diante do absurdo.

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Para encomendar o romance de Raimundo Caruso, faça o pedido pelo correio eletrônico: livro.sahara@gmail.com


* Jornalista de Florianópolis/SC
Dia Nacional do Saci-Pererê e lançamento de livro

A celebração do Dia Nacional do Saci-Pererê será nesta quinta-feira, das 15 às 17 horas, na Esquina Democrática, em frente à igreja São Francisco, na capital catarinense, Florianópolis. A promoção é da Revista Pobres & Nojentas, com apoio do Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal do Estado de Santa Catarina (Sintrajusc) e do Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Federal de Santa Catarina (Sintufsc). Será também lançado o novo livro da jornalista Elaine Tavares, da equipe da Pobres & Nojentas, intitulado "Olímpia Gayo visita o diabo". O trabalho conta a história da freira franciscana Olímpia Gayo, que iniciou um fecundo trabalho de organização das mulheres prostituídas em Lages (veja no final do release). Haverá, também, música, contação de histórias, brincadeiras e distribuição de “sacizinhos”.

A lenda é assim! Basta que exista um bambuzal e, de repente, de dentro dos caniços, nascem os sacis. É como eles vêm ao mundo, dispostos a fazer estripulias. Conta a história que esses seres já existiam bem antes do tempo que os portugueses invadiram nossas terras. Ele nasceu índio, moleque das matas, guardião da floresta, a voejar pelos espaços infinitos do mundo Tupi-Guarani. Depois, vieram os brancos, a ocupação, e a memória do ser encantado foi se apagando na medida em que os próprios povos originários foram sendo dizimados.

Quando milhares de negros, caçados na África e trazidos à força como escravos, chegaram no já colonizado Brasil, houve uma redescoberta. Da memória dos índios, os negros escravos recuperaram o moleque libertário, conhecedor dos caminhos, brincalhão e irreverente. Aquele mito originário era como um sopro de alegria na vida sofrida de quem se arrastava com o peso das correntes da escravidão.

Então, o moleque índio ficou preto, perdeu uma perna e ganhou um barrete vermelho, símbolo máximo da liberdade. Ele era tudo o que o escravo queria ser: livre! Desde então, essa figura adorável faz parte do imaginário das gentes nascidas no Brasil.

O Saci-Pererê é a própria rebeldia, a alegria, a liberdade. Com o processo de colonização cultural via Estados Unidos – uma nova escravidão – foi entrando devagar, na vida das crianças brasileiras, um outro mito, alienígena, forasteiro. O mito do Haloween, a hora da bruxa e da abóbora, lanterna de Jack, o homem que fez acordo com o diabo. A história é bonita, mas não é nossa. Tem raízes irlandesas e virou dia de frenéticas compras nos EUA e também no Brasil. Na verdade, a lógica é essa. Ficar cada vez mais escravo do consumo e da cultura alheia. Jeito antigo de colonizar as mentes e dominar. É por isso que a Pobres & Nojentas quer recuperar o Saci, o brasileiro moleque das matas, guardião da liberdade, amante da natureza que hoje está ameaçada de destruição.

Queremos vida digna, um país soberano na política, na economia, na arte e na cultura. Cada região deste Brasil tem seus próprios mitos. Caipora, Boitatá, Curupira, Bruxa, Negrinho do Pastoreio... São os amigos do Saci que estão presentes na atividade do Dia do Saci Pererê, saudando e buscando a liberdade.

Mais informações: Míriam Santini de Abreu - 96207333

Olimpia Gayo visita o diabo é o sexto livro da jornalista Elaine Tavares, que atua no Instituto de Estudos Latino-Americanos/UFSC. O trabalho conta a história da Pastoral da Mulher Marginalizada criada na cidade de Lages pela irmã Olímpia. A teóloga Ivone Gebara é quem apresenta essa preciosa história de uma mulher que nunca se recusou a olhar o diabo de frente.

"Elaine Tavares tem o dom e a arte de contar histórias de mulheres apaixonadas pela vida. Mulheres que são parte da história oculta da bondade e da beleza e que atuaram intensamente para que esses valores continuassem a se manifestar nas vidas sofridas e silenciadas. "Olímpia Gayo visita o diabo" é mais uma preciosa narrativa que revela o percurso de uma mulher que cresceu vencendo o sofrimento que a vida punha em seu caminho. Desde criança vencia o sofrimento preparando-se e lutando pela dignidade da vida de outras sofredoras e sofredores.

O texto move o coração e convida a abrir os olhos para as vidas ocultas, aparentemente sem valor, para a escória humana que somos e criamos assim como para a salvação e libertação que também podem nascer de nós. Sim, somos salvadoras umas das outras, somos a mão estendida, o abraço apertado, o sentido da solidariedade, a misericórdia vivida. Somos a voz que denúncia, que grita até que os corações de pedra comecem a palpitar de novo e ver e ouvir o mundo ao seu redor.

Conheci Olímpia num encontro de estudos em Julho de 2013 em Lages. Sua congregação religiosa me convidara para uma semana de reflexão sobre espiritualidade ecofeminista. Desde as primeiras palavras que ouvi de Olímpia, a cumplicidade nas ideias, nas visões e, sobretudo, sua forma de "sentir a dor do mundo" ecoaram em mim. Cada uma do nós, de seu jeito, vivia a paixão pela vida manifestada através de muitas formas e expressa através de muitos nomes. Tínhamos muitas coisas em comum. Enfrentamos demônios parecidos, aqueles que atingem os corpos de mulheres e querem silenciar seus gritos de liberdade.

Nas visitas e encontros de Olímpia com os "diabos" da fome, da droga, da prostituição, seu nome, que faz lembrar o Olimpo, moradia dos deuses gregos, espantava os algozes e trazia algo apaziguador, algo ao mesmo tempo celeste e terrestre. Os diabos fugiam e se descobria sua face oculta, sua beleza, sua momentânea integridade. No encontro de coração a coração os diabos não ficam. Abrem o espaço para o amor e a justiça. Por isso tantas pessoas marginalizadas encontraram na presença de Olímpia a força para viver, levantar-se e seguir o caminho do resgate da vida.

Ao final da leitura do livro um sentimento de profunda gratidão e beleza tomou conta de mim. Gratidão à Elaine, à querida Olímpia e a tantas pessoas que no anonimato sustentam a vida e anunciam a grandeza do amor, único capaz de curar os corações partidos e renovar a face da terra".

Contato Elaine: 91516066



quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 7 anos e sete meses.

Leia nesta edição:

Editorial – Colocou a terra natal no mapa

Coluna De Corpo e Alma – Mara Narciso, crônica “Ser civilizado é normal”.

Coluna Da terra do sol – Marco Albertim, conto “A dama de vermelho outra vez”

Coluna A favor de tudo, contra todos – Fernando Yanmar Narciso, crônica, “Vomitando porcas e parafusos”.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, poema, “Bicho teimoso”..

Coluna Porta Aberta – Carmo Vasconcelos, poema, “Ladrão de almas”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” – José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” – Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com 
“Aprendizagem pelo Avesso” – Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso” – Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.
  
Colocou a terra natal no mapa

O décimo quarto escritor com texto publicado na antologia “Histórias da Bahia” (Edições GDR, Rio de Janeiro, 1963), que tomei como referência para esta série de estudos sobre alguns dos principais ficcionistas baianos, por ordem de publicação, é Jorge Medauar. Esse personagem, dinâmico e realizador, notabilizou-se, sobretudo, como poeta, considerado (com justiça) um dos melhores da sua geração no País. Os quatro primeiros livros que publicou, primores do gênero, foram todos de poemas, a saber: “Chuva sobre a tua semente” (1945), “Morada da paz” (1949), “Prelúdios, noturnos e temas de amor” (1954) e “Às estrelas e aos bichos” (1956). Tenho, em meus arquivos, muitas de suas composições, publicadas em jornais e em revistas literárias.

Confesso que apenas há uns vinte anos “descobri” que Jorge Medauar era, também, refinado contista. E tão bom, que em 1959 conquistou o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, nessa categoria, com sua primeira obra no gênero, “Água Preta”, publicada no ano anterior. Nesse mesmo ano, a premiação de romance coube a um seu ilustre conterrâneo (põe ilustre nisso!), Jorge Amado. Parece que, desde então, tomou gosto pela história curta. Tanto isso é verdade que, mesmo residindo em São Paulo – após morar e trabalhar por um bom  tempo no Rio de Janeiro – conquistou, em 1960, outro prêmio importante, este de caráter regional, que foi o Anacleto Alves, comemorativo ao cinqüentenário da cidade de Itabuna. E fez jus à premiação com um novo volume de contos, “A procissão e os porcos”, que havia sido publicado pouco antes pela Livraria Francisco Alves.

Jorge Medauar (como o próprio sobrenome sugere) é descendente de sírios-libaneses. Nasceu em Uruçuca – a antiga Água Preta do Mucambo, sede do então Distrito de Ilhéus – na zona do cacau do Sul da Bahia. Foi, portanto, também um grapiuna, e dos legítimos.   Pode-se dizer, sem medo de errar, que foi ele que praticamente colocou sua cidadezinha natal no mapa literário nacional, ao fazer dela cenário para a maioria dos seus contos. Além dos dois livros que citei, publicou outros dois no gênero: “Histórias de menino” e “O incêndio” (1966, Editora Civilização Brasileira), este último premiado com o Prêmio Governador do Estado, do Conselho Estadual de Cultura de São Paulo. Romance, ele publicou um único, “O visgo da terra”, em 1996 (quase na época em que “descobri”, fascinado, seu talento de contista).

Após ler seus contos, entendi a razão de Jorge Medauar ser considerado, além de poeta consagrado nacionalmente, ficcionista de mão cheia, digno de figurar não apenas entre os melhores da Bahia, mas, principalmente, do País. Como a grande maioria dos personagens desta série de estudos, também dedicou-se ao jornalismo, até a sua morte, ocorrida em São Paulo, em 3 de junho de 2003. Porém, sua formação superior, acadêmica, foi em Direito, posto que não me conste que tenha advogado. Se o fez, é detalhe que ignoro. Foi secretário da revista “Literatura” e diretor da sucursal paulista do jornal “O Globo”. Integrou o grupo conhecido como “Geração de 1945”, que forneceu escritores da melhor lavra para a Literatura brasileira.

O conto com que participa da antologia “Histórias da Bahia”, extraído do livro “Água Preta”, tem um título um tanto exótico, “Rê I, RI...Tê A, TA”, ou seja o nome Rita soletrado. Coisa de poeta... Trata-se de narrativa um tanto extensa, da qual reproduzo, apenas, o trecho inicial, para que o leitor tenha pelo menos pálida idéia da sua forma competente e característica de narrar:

“Depois que recebeu o tabefe, na frente de todo mundo, andou meio sumido. Meteu-se na roça: só raramente vinha a Água Preta. Veio uma vez quando precisou ferraduras para os burros. Apeou perto de Pompilho Espinheira, entrou na casa de ferragem, pediu o que queria. Como os cravos não eram dos bons, não levou ferraduras nem cravos. Montou de novo, foi bater noutra freguesia. Explicou bem o que queria.

O caixeiro enrolava o embrulho com moleza, menos por preguiça do que por vontade de ver a cara que fora batida, no meio da Praça, pelo coronel Juvenal. Enquanto fazia o serviço levantava os olhos. Mas baixava-os de novo, ao baterem nos de Manecão – uns olhos que pareciam molhados, faiscavam, impedindo demora em riba deles. Manecão sabendo que o caixeiro preguiçava mode lhe examinar. Por isso, numa hora, diante da sonsice, abriu a boca, quase num berro:
- Me despache logo, seu... Enrole essa merda e me diga quanto le devo.

O caixeiro tremeu, sacudido no seu intento. Ao dizer o preço, a voz escapuliu sufocada pelo fundo da garganta.

Manecão foi direto à montaria, amarrada no argolão da porta. Suspendeu o corpo pesado, escanchou as pernas por cima da sela. Catucou a barriga do animal. Sem olhar para trás uma só vez, atravessou a cidade: sumiu na estrada.

A outra vez que voltou, foi quase à noitinha. Cruzou a cidade, parou no bar de Maçu. Havia uns fedelhos no bilhar. Para um canto, o intendente pegava uma partida de damas com Tibério. Maçu entrava dos fundos, abotoando a braguilha. Disse alto, para o intendente ouvir:
- Enquanto Água Preta não tiver esgoto, essa catinga...

Ia continuar, fazendo carga na falta de esgoto. Essa era uma de suas campanhas. Principalmente porque dos fundos subia um fedor insuportável. Até os beijos pareciam recolher o cheiro forte que o vento trazia da latrina descoberta. Moscas e varejeiras fervilhavam, aperreando o dia todo. Mas quando Maçu viu Manecão, fez silêncio, engolindo o que ia dizer. Os rapazes do bilhar, o intendente, Tibério – todos interromperam por um instante a jogada. Arregalaram os olhos. Manecão sabendo que sua presença na terra era um incômodo. Uma surpresa de bater o coração. Decerto – pensou – assim que botasse o pé na porta, comentariam pelas costas.

Continuou encostado, as pernas cruzadas. As botas – com esporas de rosetas graúdas – borradas de lama seca.

Sem dizer uma palavra, Maçu botou em sua frente um cálice de licor de jenipapo. Manecão emborcou até o meio, descansou o cálice de novo no balcão. Depois andou até a porta, cuspiu no passeio, voltou. Aí Maçu rompeu o silêncio:
- Não está do seu agrado, seu Manecão? Vosmecê deseja outro?

Não respondeu. Mas olhou para trás, espiando os que jogavam, como se lançasse um desafio: era ele mesmo, de carne e osso – o mesmo que tomara um tabefe na cara, sim senhores! Estava na terra para quem quisesse ver, para quem quisesse arengar.

Assim que riscaram o olhar no dele, disfarçaram, voltaram às partidas. Havia pelo ar qualquer coisa que poderia explodir, provocar uma tragédia. Um silêncio de finados. Só as batidas das bolas no bilhar, o zunir das varejeiras. Mas Manecão já estava para ir embora, pois a mão grossa afundara no bolso, voltando com um bolo de dinheiro. Pagou. Rasspou o troco. Um alívio para todos. Tornou a montar, foi descendo o beco que desembocava na rua do Gás (...)”.

Boa leitura.


O Editor

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.         
Ser civilizado é normal

* Por Mara Narciso

Nas novelas os inimigos se encontram a toda hora, trocam farpas e tapas, berram e se insultam. Há pessoas tão habituadas com esse tom de guerra, que nas suas vidas se utilizam do mesmo expediente, falando de modo arrematado, destruindo o outro com estupidez. O modo hostil de ser cansa, e o “guerreiro” nem percebe isso. Não há vantagem em medir forças com maridos, namorados e parentes, como se estivessem numa rinha. Desgastam-se à toa. Bons modos são atos civilizatórios que facilitam o entendimento, e evitam gastos de energia. Numa batalha campal, todos perdem.

Os desenhos animados apresentam um diálogo estranho e tenso. Sem contar que as dublagens têm uma linguagem muito diferente do real. Não vejo pessoas falarem daquele modo caricato. Lá, os inimigos resolvem suas diferenças com pancada. A frustração é mal recebida. Contra ela, mais violência. A agressividade é mostrada como característica positiva. Aqui fora funciona melhor de outro jeito.

Boas maneiras fazem bem à vida em comum. Quem já tem uma educação básica busca se aprimorar nos campos financeiro, social, intelectual e também em relacionar-se melhor. Palavras como “com licença”, “por favor” e “obrigado” não se aposentaram, embora aqueles que primam pela grosseria - existem aos montes e indicam logo a qual classe pertencem-, achem perda de tempo tratar bem aos seus pares. Ser agressivo não é buscar seus direitos, é ser mal-educado.

Conviver num lugar tranquilo é muito melhor. Tão bom jantar em família, compartilhando o alimento, dividindo o prazer de estar juntos. Comer num ambiente harmônico, seguindo regras sociais básicas indica polimento. Os pais procuram ensinar aos pequenos como portar-se à mesa, sem colocar os cotovelos sobre ela, usando corretamente os talheres e copos, comendo em pequenos bocados e de boca fechada. E sem fazer ruído ao mastigar. Para a digestão ser tranquila é preciso evitar discussões e falar de assuntos graves como dívidas e doenças. Bom quando se pode desligar a TV, pois dela vem uma torrente de más notícias. Banal, mas um cuidado necessário.

A higiene corporal é um sinal de civilidade, buscando-se estar asseado, com roupas limpas, depilado, com odor suave, unhas e cabelos bem tratados, bom hálito e sem nenhum cheiro desagradável. Ficamos imaginando o tempo em que não havia sanitários, papel-higiênico, sabonete, absorvente, desodorante, pasta e escova-de-dentes. Acabamos por nos tornar escravos desses confortos, e quando vamos a uma roça e chupamos manga, queremos logo um fio-dental e uma escova. A frescura deve ser esquecida, nesses casos, e como se diz, em cada lugar um modo de ser, embora continuar buscando por modos educados.

O uso comum do banheiro costuma ser uma guerra. Respingos de pasta pelo espelho, papel jogado de todo jeito, descarga esquecida, cabelos no sabonete, toalha molhada, roupas largadas. O ideal é que cada um tenha o seu, mas se isso não for possível, deixar o local melhor do que quando entrou, especialmente nos banheiros públicos. São atos necessários, porém esquecidos. Locais finos são usados por pessoas toscas que deixam o ambiente empesteado, e o fazem por desprezo ao outro, aquele que vai limpar a área. Descaso em seu estado cristalino.

Todos sabem e muitos dizem cumprir. Na hora de dormir, deve-se primar para não incomodar o colega de quarto, caso ele exista. Como se já não bastassem os pernilongos e os barulhos de vizinhos mal-educados, com seus cachorros que latem a noite toda, ou que ligam suas máquinas barulhentas, quem está na casa deve procurar fazer silêncio após o outro se deitar. É norma primordial das mais desrespeitadas. TV ligada no quarto, enquanto o outro dorme, é fonte permanente de irritabilidade. Uma agressão desnecessária.

Os rituais não são coisas do passado. A sofisticação eleva o espírito. Cumprir o que se prometeu e manter a palavra é de bom tom. Cuidar de você, da casa, do carro, da família, dos amigos e colegas é ainda melhor. Ser meigo não é ser fresco, e amabilidade nunca é demais. Listinha de boas práticas cansa, mas cumpri-las não é tão difícil assim. Tão óbvio quanto ignorado, o tempo das cavernas passou, e boa educação só faz bem.


*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”