sábado, 31 de janeiro de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos, nove meses e vinte e nove dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Insatisfação e rebeldia.

Coluna Direto do Arquivo – Fernando Mariz Masagão, poema, “Filosofia e higiene corporal”

Coluna Clássicos – Artur Jaceguai, trecho de livro, “A batalha de Humaitá”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica, “As características da arte moderna”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “Carne seca assada na brasa”

Coluna Porta Aberta – Alberto Cohen, poema, “Viagem ao fundo dos olhos”.


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.

Insatisfação e rebeldia


A insatisfação é a mola propulsora das nossas realizações, desde que, claro, não superestimemos nossa capacidade, mas nos empenhemos para ampliá-la, mais e mais. É esse descontentamento que move, entre outras coisas, a economia, gerando necessidades (reais ou imaginárias), que as pessoas empreendedoras e dinâmicas buscam satisfazer e lucrar com isso. Por não estarmos satisfeitos com determinados comportamentos, nos empenhamos (ou deveríamos nos empenhar) em mudá-los, em busca da perfeição. Desde que não exacerbada – e tudo o que é exagerado tende a ser pernicioso – a insatisfação, portanto, nos mobiliza e induz a criar obras materiais e espirituais e propiciar, dessa forma, o que se define como  “progresso”.

Carecemos, no entanto, nos dias atuais, de certa rebeldia, sobretudo face à corrupção, aos desmandos e à violência que campeiam e se multiplicam, arruinando nossas vidas. Onde foram parar os grandes sonhos da juventude? Onde estão os valores éticos (e estéticos) defendidos, há algum tempo, com garra e destemor por jovens determinados e idealistas? Foram substituídos pelo comodismo? Parece que sim! Foram trocados por cômodas posições individuais, sociais e econômicas, mais instáveis e efêmeras, todavia, do que ousamos supor? É bastante provável! Foram abastardados? Sabe-se lá!!!

O pior de tudo é que aqueles idealistas da década de 60 do século passado não só renegaram seus ideais como sequer os transmitiram aos filhos, numa admissão tácita de que estavam errados (embora errassem, apenas, na estratégia e não nos objetivos).. Daí o cínico desalento de hoje. Daí o individualismo inconseqüente. Daí o materialismo exacerbado. Essa frenética busca por meras miragens, estas sim “caretices” de quem não tem rumo e nem sonhos pelos quais batalhar. Como no início da década de 60, temos, hoje, pessoas rebeldes e até em maior número do que naquela ocasião. Mas sua rebeldia é inócua, posto que sem causa. Não se volta (salvo uma ou outra exceção) à conquista de ideais superlativos.

As pessoas estão insatisfeitas mas sequer conseguem definir o foco de suas insatisfações. Sua rebeldia limita-se a mera tentativa de auto-afirmação, de batalha desordenada, muitas vezes, destrutiva, ou, no mínimo, “catatônica”. Caracteriza-se pelo ceticismo generalizado, mas passivo; pelo imobilismo, pela amargura, pelo isolamento. Insisto: há exceções. Estas, contudo, são cada vez mais raras. Bandeiras, convenhamos, não faltam para serem erguidas e defendidas. Existem em muito maior quantidade do que existiam nos anos 60.

A rebeldia (mesmo a com causa) é atitude geralmente mal-interpretada e volta e meia mal direcionada. Rebelamo-nos, amiúde, contra o que não deveríamos nos rebelar: contra normas de conduta saudáveis e necessárias e contra imposições de disciplina e de ordem sem as quais nada e ninguém prosperam. Todavia, o que realmente envenena os relacionamentos, e torna o mundo perigoso e ruim, passa batido e se avoluma, geração após geração. Esse comportamento é mais comum na adolescência, quando nos julgamos poderosos, invulneráveis, indestrutíveis e imortais, sem que, claro, de fato, sejamos. Na minha época de juventude, o título de uma famosa canção transformou-se em lema, em mantra, em palavra de ordem para a minha geração: “não confie em ninguém com mais de trinta anos”. Sequer é necessária maior análise para concluir sobre a estupidez e falta de sentido desse tipo de rebeldia.

Naquela época, pensávamos, até inconscientemente, que o passar dos anos tornava pessoas acomodadas, dóceis, desossadas e, sobretudo, “caretas”. Ou seja, sem criatividade e nem originalidade. Sequer passava pela nossa cabeça que não seríamos jovens para sempre (achávamos que sim) e que um dia seríamos iguaizinhos aos que então ridicularizávamos e pretendíamos segregar. Hoje, as coisas são diferentes? Nossos filhos e netos aprenderam alguma coisa com nossos erros, que foram imensos? Não! Definitivamente não! Com algumas mudanças, aqui e ali, seguem cometendo as mesmíssimas tolices que nós que, certamente, resultarão em idênticas conseqüências. Não é essa, pois, a rebeldia que defendo e que devemos assumir.

Temos que nos rebelar, sim, e muito, e sempre, mas contra injustiças, violência, corrupção, prepotência, exploração do homem pelo homem e outras tantas mazelas, desnecessárias de serem enumeradas. Mas em sentido prático e construtivo e não apenas limitado a um inconseqüente e monótono bla-bla-blá. Precisamos agir, em vez de discursar. Cabe-nos apresentar alternativas, e vivê-las, em vez de nos limitarmos a deblaterar ou a agredir nossos próprios corpos. Compete-nos, sobretudo, preservar e impedir que sigam destruindo o Planeta, nosso único domicílio cósmico, que pede socorro e agoniza, sem que a maioria se dê conta.   

A maior das rebeldias é a de não aceitar nada menos do que a felicidade, para nós e para os que amamos.  Devemos não apenas sonhar com ela, não só lutar por sua concretização, mas “exigi-la”. E não num futuro distante, que provavelmente sequer conheceremos. Sejamos rebeldes, sim, mas inteligentes! Considero as artes, todas elas, como expressões de insatisfação. Todo artista é, no fundo da alma, um rebelde. “Cria” beleza e transcendência, por não estar satisfeito com a realidade que vive. Falta-lhe, porém, imprimir sentido prático a isso. Precisa tentar transpor o que imagina do mundo ideal, refletido em suas criações, para o mundo real.

O conformismo – pregado, até não faz muito, por determinadas religiões como “virtude” – é o caminho mais curto para a acomodação. Daí para a mediocridade é simples passo. A perseverança é o antídoto contra a conformação. A rebeldia natural dos jovens (posto que caótica e sem objetivo) é, insistentemente, combatida pelos encarregados de sua educação (pais, professores etc.). É um erro. Em vez de sufocada, deveria ser direcionada e, óbvio, em sentido construtivo. E, bem orientada, precisa ser estimulada. Manda o bom senso que se aproveite essa tremenda energia dos jovens para criar, construir e modificar para melhor o que esteja errado e seja danoso e inadequado. Ser rebelde não é, pois, “destruir” a si próprio, recorrendo ao álcool e às drogas e, principalmente, não é atacar os outros, mediante atos de violência (como o terrorismo, por exemplo) que, de uma forma ou de outra, retornarão ao violento. Afinal, como acentua famosa lei da Física, “a toda ação corresponde uma reação, de igual intensidade e direção contrária”.  

Contrariando famoso provérbio, no final das contas, “o hábito faz o monge”. E como faz! Isto, apesar de todos os esforços, notadamente dos jovens, para “desmoralizar” esse tipo de comportamento, que só leva em conta a aparência exterior, aqueles sinais visíveis de riqueza ou de pobreza, facilmente disfarçáveis e escamoteáveis, sem atentar para o que a pessoa de fato é. Por paradoxal que possa parecer, a moda conseguiu transformar, até, a “deselegância” em padrão de “elegância”. Cooptou, dessa maneira, a (inútil e mal direcionada) rebeldia da juventude em relação à aparência (cabelos e barba compridos) e ao traje, de movimentos como os dos “beatniks”,  “hippies” e “punks”. Calças jeans, e ainda por cima puídas, que eram vestes características de pessoas não apenas mal vestidas, mas miseráveis, são ostentadas, hoje em dia, com orgulho, como “sumamente elegantes”, por rapazes e moças de classe média e até de famílias abastadas, sem que quase ninguém mais repare e nem estranhe. Isso, contudo, não é rebeldia. É mera distorção dos padrões estéticos. Sinais dos tempos? Acredito que sim.

Boa leitura.


O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk 
Filosofia e higiene corporal


* Por Fernando Mariz Masagão



Todo dia ao acordar,
perante o espelho,
o mesmo ritual de sono e receio
reverbera em silêncio duas perguntas
nos azulejos do banheiro:
Será?
Por quê?
E de soslaio,
pendurada na porta,
a toalha parece rir.
Todo dia...


*Fernando Mariz Masagão é músico, dramaturgo, poeta e colaborador de publicações online sobre arte, com crônicas e críticas musicais. Guitarrista e vocalista de bandas de rock'n'roll, tem formação clássica vigorosa, em cursos de regência sinfônica, apreciação musical e instrumentação.   


A batalha de Humaitá


* Por Artur Jaceguai


A noite de 18 de fevereiro cerrara-se sem alterar a limpidez da atmosfera do dia abrasador que a precedera; o brilho das estrelas, porém, não penetrava nas lôbregas sombras das alterosas matas por entre as quais deslizava silenciosamente a massa líquida do rio. No porto Eliziário, logo ao escurecer, os monitores manobraram para atracar aos seus matalotes, na formatura ordenada. Concluída a faina, formadas as guarnições por quartos, os comandantes ditaram suas ordens sobre postos de combate e sobre as eventualidades possíveis na ação que se ia empenhar. O comandante do Barroso terminou as últimas disposições, dirigindo aos seus oficiais e marinheiros as seguintes palavras: - “Agora, avante, meus bravos! Em Curupaiti, de dia, apenas recebemos cinco balas, quando os outros receberam cinqüenta; pois bem, em Humaitá, de noite, arranjaremos isso por menos. Confiai em vosso comandante como ele confia em vós.”

Às 11 horas a descarga estridente do vapor dos seis encouraçados da divisão avançada indicava aos Paraguaios vigilantes na margem do rio alguma coisa de extraordinário. Meia hora depois o “clank-clank” das amarras denunciava que os navios se iam mover, e, logo, um foguete, repetido de piquete em piquete até Humaitá, seguido de outro sinal luminoso mais intenso, deu aos nossos marinheiros a certeza de que não teriam a vantagem de surpreender o inimigo. Tanto melhor, houve quem dissesse, não passaremos às escuras.

À meia-noite, em ponto, o Barroso e o Rio Grande já seguiam avante, a meia-força, por não terem ainda desferrado os demais. À uma hora e trinta estava o Barroso pelos través do navio almirante, mas não lobrigavam ainda outros vultos pela sua popa. O almirante ordenou-lhe parasse e aguardasse os seus companheiros. Às duas horas e quarenta e cinco minutos, como estes ainda não aparecessem e a lua nascente já mostrasse a sua claridade, por trás da mata do Chaco, o comandante do Barroso mandou por um oficial cientificar ao almirante que, retardados os seus companheiros, estava no entanto pronto a avançar, com a máxima pressão nas caldeiras dos dois navios. Nesse entrementes, distinguiu-se uma luz movendo-se sobre a água; devia ser um dos retardatários.

O Barroso pôs-se logo em movimento, sem parar sequer para receber o oficial que voltava da capitânea, o qual dificilmente conseguiu atracar ao costado mediante um cabo que se lançou. O almirante reiterava a ordem de esperar, mas o Barroso não mais se deteve e investiu o passo só com o Rio Grande. Eram 3 horas. Os paraguaios contavam provavelmente que, a realizar-se o ataque, os navios se apresentassem a meio do rio; o Barroso, porém, prevalecendo-se da grande enchente, surgiu-lhes perto da Ponta de Pedras de onde fez rumo a se manter tanto quanto possível próximo ao barranco. Não tardou um minuto o fogo rolante de todas as baterias sobre os dois navios, sem demora respondido pela esquadra de proteção. A primeira bala que feriu o Barroso, na face de vante da casamata, trazia tamanha energia acumulada, produziu choque tão violento, que se diria ter sido lançada com a intenção de fazer o navio estacar. O homem do leme, atordoado, abandonou a roda de governo por alguns segundos; a trepidação da muralha encouraçada em que se deu o impacto do projétil foi tão forte, que causou uma contusão no braço que o comandante tinha apoiado no batente da portinhola de vante, por onde dirigia o navio com o prático. Em certo sentido, a metáfora favorita das ordens do dia do almirante - das abóbadas de balas - podia aplicar-se aos dois navios exploradores, porque eles prosseguiam incólumes na sua rota, cruzando-se por cima deles toneladas de projéteis arremessados das baterias inimigas e dos encouraçados que os canhoneavam.

No meio do troar de mais de 300 canhões em ação, ouvia-se de bordo, distintamente, o estrépito das balas que devastavam a floresta do Chaco. É possível que o clarão das gigantescas fogueiras, que, por encanto, se acenderam na margem oposta para iluminarem o passo, e bem assim os reflexos do fogo que pareciam abrasar a superfície das águas, tivessem prejudicado a visão dos artilheiros paraguaios, de modo a poder-se explicar tão grandes erros de pontaria. O que é certo é que, depois de quase extintas as fogueiras, com uma luz mais suave, eles acertaram a valer nos navios que passavam mais tarde.

No trajeto do Barroso e Rio Grande, desde a altura da Ponta de Pedras até o canal junto do barranco, apenas seis balas tocaram os dois navios.

Em menos de 15 minutos estavam debaixo da bateria Londres, à pequena distância do barranco. Foi o momento crítico do trajeto. Chegados ao ponto em que deviam manobrar para contornar o barranco, o fio mais intenso da corrente apanhou-lhes a proa e a ação do leme tornou-se impotente para vencer a inércia da dupla massa líquida impelida sobre a margem. Continuando a seguir avante, em poucos minutos encalhariam de proa; parando ou andando para trás iriam ensacar-se nas revessas da enseada, formada pela Ponta de Pedras, donde dificilmente poderiam sair; mas, graças ao tubo acústico, disposto entre os dois navios, o comandante do Barroso pôde manobrar com a prontidão que o caso exigia, mandando parar e logo funcionar para trás as máquinas do monitor - as do seu navio sempre trabalhando para diante, a toda a força, conseguindo assim, sem se imobilizar um só instante, aproar à correnteza e em seguida fazer rumo normal ao meio das cadeias.

Prosseguia o Barroso com extraordinária velocidade que o seu hábil maquinista sabia imprimir-lhe em tais ocasiões e já estava próximo às correntes quando uma bomba de grosso calibre, explodindo ao cair n’água entre a proa do monitor e o seu costado, levantou imensa coluna líquida que alagou o convés de ambos. Só o comandante e o prático Echebarne, que tinham olhos cravados para a frente, atribuíram à sua verdadeira causa aquele espetaculoso efeito; para os demais tripulantes fora um torpedo, e, no pânico de que muitos se possuíram, indiferentes às balas, surdiam das escotilhas acreditando que os navios se iam submergir. O valente Antônio Joaquim saiu da torre do seu monitor para a tolda pela estreita portinhola do canhão, o que ele mesmo dizia nunca ter antes imaginado fosse possível para um homem da sua corpulência.

Alguns minutos mais e o foguete lançado do Barroso indicava que ele já havia transposto as cadeias, e que não havia em Humaitá obstáculos insuperáveis para a divisão avançada. Eram três horas e trinta minutos da manhã. Parou o Barroso dois quilômetros acima das cadeias e ali esperou os outros navios. Às quatro horas e 45 minutos surgiu o Baía. O comandante do Barroso não teve certamente em toda a sua vida um momento mais feliz do que aquele em que abraçado pelos seus dedicados amigos Echebarne e Antônio Joaquim foi o objeto de aclamações deliberantes dos seus oficiais e marinheiros...

(Reminiscências da Guerra do Paraguai, 1935.)


* Almirante e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras
As características da arte moderna


* Por Clóvis Campêlo


Segundo José Guilherme Merquior no livro "Formalismo e tradição moderna: o problema da arte na crise da cultura", de 1974, é dentro da própria consciência geradora do saber da cultura ocidental que a estética moderna encontrará campo para dar vazão ao sentimento de insatisfação que a invade. Mostra-nos o autor que nada "poderia ser mais eloquente do que a simples menção da influência de duas ciências humanas na arte moderna: a psicanálise e a antropologia". E ambas se prestam a esse papel por provocarem constantes "deslocamentos" no pensamento que as gerou. Assim, munidos de novos "instrumentos", os artistas modernos encontram condições de manifestar a negação e a perplexidade da arte em relação aos caminhos dos tempos contemporâneos. Valorizando os impulsos libertários do inconsciente, bloqueados pela ética do pensamento conservador, os modernos passam a salientar o "caráter repressivo do princípio da realidade" como uma limitação às possibilidades vitais do homem. Assumem, desse modo, uma postura "vocacionalmente surrealista", instalando, no bojo do seu pensamento, a "mística da liberdade espiritual", fonte da contracultura de vanguarda no final do século passado.

A desconfiança da arte moderna ante os valores da cultura ocidental faz com que, juntamente com a vontade de ruptura cultural, desenvolva-se, na primeira, uma tendência ao hermetismo. Tal tendência intensifica o isolacionismo cultivado pelo artista a partir do pós-romantismo, afastando, com desdém, a estética moderna das massas (muito embora estas se mostrem cada vez mais alfabetizadas) e encaminhando a arte moderna para uma postura semântica elitista. O poeta moderno cerca de obstáculos o acesso ao significado da mensagem poética e, almejando alcançar um público seleto, cria obras que jogam com significados incertos, esquivos e obscuros.

Por compreender que o fácil entendimento das obras significa a banalização e a alienação da informação (tal assertiva torna-se interessante em um mundo caracterizado pela "democratização" da informação e pela proliferação do simulacro enquanto meio de consciência cósmica, ao mesmo tempo em que serve para desnudar mais um aspecto contraditório das artes modernas), o bardo moderno envereda por caminhos esotéricos e inusitados (mudança quanto ao conteúdo), enquanto adota contra a linguagem comum (alteração quanto à forma) o que Ramon Jakobson, numa tentativa de definir a literatura sob a ótica dos formalistas, classificou como "violência organizada".

Concomitantemente a esse movimento de afastamento das massas verificado na estética moderna, a arte de vanguarda experimenta uma "universalização dos horizontes mentais", estabelecendo entre os artistas modernos uma comunicabilidade definitivamente diluidora do sentimento de "cor local" dos românticos e que, transcendendo as nacionalidades, provoca o cruzamento de temas e estilos, em que pese cada literatura estar irremediavelmente ligada ao espírito da sua língua.

Desse modo, segundo a ótica de Merquior, são quatro os movimentos que caracterizam a passagem da arte romântica para a arte moderna: a mudança de uma concepção mágica de arte para uma concepção lúdica, desdobrada em visão grotesca (jogo quanto ao conteúdo) e experimentalismo (jogo quanto à forma); transformação da oposição cultural romântica em ruptura; afastamento das grandes massas e tendência para o hermetismo, e, encaminhamento da poética atual para o cosmopolitismo e para um futuro planetário.

No entanto, se o primeiro movimento faz com que a arte moderna manifeste uma saudável tendência de revigoramento e renovação, ao mesmo tempo em que nega os valores culturais que contradizem a afirmação humana, tendência essa confirmada no movimento de ruptura (afastamento), o terceiro movimento (elitização e hermetismo) é contraditório e caminha em sentido inverso aos anteriores. Por seu lado, o quarto movimento (cosmopolitismo) parece nos indicar que a grande arte, perdida a sua função mágica e situada em uma cultura de massa onde prevalece a divisão de classes (característica supranacional), exercita essa permeabilização universalista como forma de uma adaptação necessária à sua sobrevivência.

Para finalizar, consideremos que o conceito de arte moderna, ainda segundo Merquior, prende-se muito mais aos fatores internos observados nas obras de arte do que a sua contemporaneidade. Tal fato se deve a permanência, ainda hoje, na tradição da arte moderna de elementos românticos não submetidos ao novo estilo e que atuam como fatores de estreitamento e de enfraquecimento da arte moderna, reduzindo a sua capacidade de elaboração de uma crítica da cultura e diminuindo a sua energia criadora. Dessa maneira, nem toda a arte contemporânea pode ser considerada "arte moderna", assim como podemos estabelecer a existência de diversos graus de "modernidade".

Recife, 1993

* Poeta, jornalista e radialista, blogs:



Carne seca assada na brasa


* Por Urda Alice Klueger


(Para Minervina Klueger, minha mãe)



Há pouco, andando sob a chuva com a minha sombrinha nova, de xadrez azul e branco, eu senti como que um frêmito, e sussurrei para o meu cachorro, pois se a gente falar alto, numa hora destas, uma pessoa adulta pode ver e achar que enlouquecemos:
- Sabes? Era bem assim quando eu era criança: chovia!

Então pensei mais um pouco e lembrei que também fazia sol, lá na minha primeira infância. Claro que nunca choveu sempre, mas o que eu estava sentindo era a revivência, dentro de mim, das lembranças mais remotas da minha vida, que eram dias de chuva na nossa casinha pintada de amarelo-creme, lá na Rua Antônio Zendron, no bairro Garcia, em Blumenau, no mesmo lugar onde hoje se situa a bela casa da minha prima Herta Klueger Klock. Uma ou outra vez eu já falei de pedaços dessas lembranças, mas agora vou contar como elas me sacudiram hoje junto com aquele frêmito.


Sei hoje que tinha três anos e, talvez como hoje, fosse fim de inverno ou começo de primavera. Na nossa cozinha havia um fogão de tijolos com fogo à lenha, e no vão sob ele dois gatos se aqueciam do frio que vinha do grande mundo lá de fora: um era cinza e não lembro seu nome; o outro tinha uma cor laranja e se chamava Mimi, e ambos olhavam para mim, se eu me aproximava demais, e faziam assim:
- Fisssss – me avisando de que não eram amistosos, embora fossem, com a maior docilidade, para o colo da minha mãe. E ela me avisava pra que não me aproximasse deles, pois poderiam me arranhar, mas sempre achei, depois que cresci, que ela estava apenas querendo garantir a minha integridade física, pois sempre me dei tão bem com os animaizinhos!

Ficava ali, portanto, olhando para a vivacidade daquele fogo cujo calor eu compartilhava com aqueles gatos, e lá fora chovia, chovia tristemente, parecia que interminavelmente, e as lembranças mais remotas que tenho são quase sempre ligadas a dias de chuva. Lembro com muita clareza de como era bom o calor daquele fogo, e de como ficava fascinada com o balé das chamas nas achas de lenha seca, de como aquelas línguas avermelhadas, às vezes amarelas e até azuis, lambiam a lenha e revoluteavam no seu espaço no fogão, e de como poderia ficar ali para sempre, espiando sua dança incansável, que consumia a madeira com estalidos aconchegantes, e de como era fascinante, também, ver aquela lenha se transformar em brasas!

Minha mãe estava à espera das brasas, pois havia uma iguaria que ela amava sobretudo, embora, naquele tempo, tal iguaria não me agradasse: a carne seca assada na brasa com pirão branco! Mas embora eu então não gostasse daquele sabor (preferia as cocadas e os sonhos, sempre! E as tortas de nata com ameixa-preta que a minha prima Sofia Klueger fazia!), era fascinante ficar ali vendo a inusitada atividade de minha mãe: ela espetava um naco de carne seca numa varinha que decerto cortara no quintal e ficava a segurar a carne sobre as brasas, virando-a e revirando-a até dizer que estava boa, pois eu ainda era pequena demais para entender dessa coisa de assamentos.

Com a água que fervia na grande chaleira de ferro, em seguida, ela fazia um pirãozinho d’água num prato, colocava a carne em cima, e então suspirava de felicidade! Antes de comer, ela sempre me perguntava se eu queria também, mas eu nunca queria – já disse que não gostava daquilo. Estava acostumada a outras comidas, e acho que a minha mãe fazia aquelas iguarias de que tanto gostava somente em ocasiões em que estava sozinha comigo, pois a sociedade circundante haveria de criticá-la por aqueles hábitos alimentares que ela trouxera da sua Nova Descoberta, terra a mais de 100 km dali, não muito longe do mar. Penso agora que aquele, certamente, não era um hábito alimentar que nenhum europeu trouxera um dia para as terras do Brasil: posso praticamente dizer com segurança que aquela carne seca assada na brasa com pirão de farinha de mandioca tinha suas origens nos povos originários que muuuuuito antes dos europeus habitaram esta nossa terra. De alguma forma, ela entrara na tradição alimentar da minha mãe, tradição que ela cultivava extemporaneamente, quando só havia ela, eu e os gatos na casa.

Minha mãe, nessa época, tinha 33 anos e provavelmente estava grávida. E chovia muito naqueles dias, e tais chuvas, hoje, são como um frêmito dentro de mim.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).



Viagem ao fundo dos olhos


* Por Alberto Cohen



Por mais esta vez, olha em meus olhos.
A visão de além do imponderável
agita suas bandeiras em farrapos
que tremulam sem nada mais de esperas.
São faróis que atraiçoam navegantes,
são pesares de dores consentidas,
são cânticos de atávicas igrejas,
esgares de ninar um não nascido.
E, se não choram, já choraram muito,
e, se não brilham, foram consumidos
no devassar de tantas bruxarias
em terrenos baldios de desalento.
O anticristo verás com seu cortejo
de tragédias, de guerras e desditas,
que, fugidos da caixa de Pandora,
vieram se esconder nestes meus olhos.


·     *   Poeta paraense

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos, nove meses e vinte e oito dias de criação.

Leia nesta edição:

Editorial – Viver é que é difícil.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica, “Vergonha nacional e paixão por livros”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire. conto, “Não mais partido”

Coluna No sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto, “O jogo”.

Coluna Porta Aberta – Marleuza Machado, poema, “Incendiada”.

Coluna Porta Aberta – Péricles Prade, poema, “Se gira o sol”.

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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso”Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


  
Viver é que é difícil


O livro de ficção mais vendido no Brasil, neste início de 2015, é um romance lançado em fins de 2014 (embora nos Estados Unidos seu lançamento tenha ocorrido em 2009) que, a exemplo do que ocorreu na terra de “Tio Sam”, caiu de imediato no gosto tanto do público quanto da crítica. Refiro-me a “Se eu ficar”, da jovem (tem 44 anos de idade) escritora californiana Gayle Forman, que antes de se aventurar pelo incerto mundo da Literatura, atuava como competente jornalista. É mais um dos tantos casos em que o jornalismo contribui com qualidade para a atividade literária.

O livro chega ao Brasil após vitoriosa trajetória em várias partes do mundo. Já foi lançado, por exemplo, em 35 países, com excelente aceitação em todos eles. É, portanto, “tacada certeira” da Editora Novo Conceito, que apostou nesse empreendimento e vem se dando bem. As vendas crescentes atestam esse acerto. A edição brasileira conta com a tradução de Amanda Moura. É um desses romances que a gente não consegue parar de ler enquanto não chegar à última página. Seu ritmo é tão dinâmico, que foi transformado em filme – dirigido por R. J. Cutler, tendo no elenco Chloë Grace Moretz, Mireille Enos, Joshua Leonard, Stacy Keach, Lauren Lee Smith, Liana Liberato e Jamie Blackley, entre outros – que será lançado nos Estados Unidos em agosto e previsto para chegar ao Brasil um mês depois.

“Se eu ficar” narra a história de Mia Hall –  jovem artista, adolescente de 17 anos, amante de música erudita, cujo sonho maior era estudar violoncelo na célebre escola Jilliard, de Nova York – que está em coma na UTI de um hospital, após acidente automobilístico que matou seus pais e seu irmão mais novo Teddy. A garota tem 24 horas decisivas nas quais precisará compreender o que aconteceu e fazer a mais importante escolha de sua vida: ficar neste mundo (e viver) ou morrer. Antes do acidente, também enfrentava um dilema, posto que não tão dramático e decisivo: tinha que escolher entre seguir seus sonhos na escola de música Juilliard ou optar por caminho diferente com o amor de sua vida, seu namorado rebelde, Adam, guitarrista e vocalista da banda Shooting Star, em uma pacata cidade do Estado de Oregon em que vivia com a família.

O enredo transcorre em um único dia. O livro, portanto, não tem capítulos, tem horas. Gayle Forman maneja, com habilidade e muita sensibilidade, presente e passado, alternando o que se passa na mente de Mia enquanto em coma na UTI do hospital com flashes de sua vida antes do acidente. Apesar do ritmo veloz, de tirar o fôlego, da narrativa, habilidade que poucos escritores têm,   a autora traz à baila, sem que nos apercebamos, importantes reflexões sobre vida, morte, escolhas, amor, sonhos etc.etc.etc. Claro que não irei resumir a história e muito menos revelar seu desfecho. Não sou estraga prazeres e não quero acabar com sua surpresa, caro leitor, que certamente planeja adquirir o livro. Se fizer esse “investimento”, asseguro-lhe que não se arrependerá.

Entre os pensamentos que passam pela cabeça de Mia, está este: “Eu não estou certa de que este é um mundo a que pertenço. Não tenho certeza que quero acordar”. Em outro trecho, a adolescente pensa: “Sei que pode ser idiotice de minha parte, mas sempre me perguntei se o papai se sentia frustrado por eu não ter me tornado roqueira. Esta era a minha intenção, também. Até que, na terceira série, me deparei com o violoncelo durante as aulas de música e ele me pareceu mais humano. Parecia que, ao tocá-lo, ele lhe contaria segredos, então não hesitei. Isso já faz dez anos e desde então, nunca parei”.

E Adam, o namorado rebelde, o que pensava de tudo isso? Amava Mia sem restrições ou se tratava de um namoro fortuito, ocasional, passageiro como tantos outros? Sua declaração à amada, que se debatia entre a vida e a morte, responde; “Se você ficar, eu faço o que você quiser. Eu largo a banda, vou com você para Nova York. Mas se você precisar que eu vá embora, eu faço isso também. Eu estava conversando com Liz e ela disse que talvez voltar para sua antiga vida seja doloroso demais, que talvez seja mais fácil você nos apagar. E isso seria uma droga, mas eu faço. Eu posso perder você assim se eu não a perder hoje. Eu deixo-a ir. Se você ficar".

Concordo plenamente com esta observação que li no blog “Livros pra ler e reler”, a propósito deste romance: “Gayle Forman emociona e fala sobre amor, perda, sacrifício e escolha. Principalmente, nos faz refletir sobre os mistérios da vida, da morte e do coma, nos conduzindo a uma reavaliação de nossas vidas e do que é importante para nós, valorizando assim cada segundo de nossa vida, pois nada é para sempre”. E não é mesmo!!! É como Mia Hall conclui à certa altura: “Percebo agora que morrer é fácil. Viver é que é difícil”.

Boa leitura.

O Editor.

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Vergonha nacional e paixão por livros


* Por Urariano Mota


Depois dos últimos resultados da prova de redação do Enem, parece que a educação no Brasil oscila como um pêndulo entre dois extremos. O movimento do relógio vai do ótimo de poucos estudantes ao péssimo da maioria. O dado unificador no conjunto de tantas disciplinas, de matemática a história e ciências, foi a marca da prova de redação. Pelas notícias na imprensa, conhecemos, por um lado, os novos gênios – aqueles que alcançaram o máximo, a nota 1.000 em redação, 250 apenas, em mais de 6 milhões. Por outro lado, o escândalo dos 529 mil alunos que tiraram a nota zero, num universo em que a maioria obteve até 600 na redação.

Desse...  “escândalo”, que é o de jovens desumanizados todos os dias e que ninguém vê, mas que vira escândalo quando aparece em nota de vestibular, uma das expressões foi o artigo de Arnaldo Niskier, doutor em educação, sob o título de Vergonha Nacional. Escreveu o imortal ad ABL na Folha de São Paulo: “Estamos vivendo em nosso país tempos sombrios em matéria de qualidade do ensino, especialmente se considerarmos a educação pública...” (lembra a narração de filme de terror). E continua:

“O que esperar dessa  geração? Quando em um universo de quase 6 milhões de alunos só 250 tiraram a nota máxima (mil) na indispensável redação, pode-se inferir que estamos diante de uma fase caótica, a exigir providências que não podem mais tardar... Para acabar com essa vergonha, só uma ampla reforma”.

Mas não aponta qual ou para onde.

No outro extremo, as notícias falavam dos ótimos 250 estudantes, mais resistentes e heroicos, porque em menor número, que os 300 de Esparta. Dos últimos guerreiros do escândalo da nota mil em redação, se falou que tunham em comum a paixão pelos livros. Entre as séries "O Senhor dos Anéis" e "Crônicas de Gelo e Fogo",  autores J. R. R. Tolkien, George R. R. Martin, e Dan Brown, de "O Código Da Vinci",e treinos para a prova, esses jovens leem. E tal coincidência causou o maior espanto entre o escândalo.

Mas deveria ser claro, para todos e em todos os tempos: sem ler, sem o entendimento do que se lê, ninguém vai a lugar nenhum, do porto do Recife à estrela da última nebulosa no espaço mais distante. Essa notícia, de jovens que melhor escrevem porque gostam de ler, é uma verdadeira redescoberta da pólvora. Ou uma reinvenção da roda. Ainda assim, a notícia me faz refletir para que serve a leitura, ou, num salto de qualidade, para que serve a literatura.

Para que é mesmo que serve a literatura? De um ponto de vista estrito de grana, de moeda que compra alimento, álcool, camisa que sirva além do corpo de quem escreve, que vá além da vaidade do autor, existe alguma utilidade na literatura? Existe algo nela que diga somos todos humanos, e o reino da felicidade é a socialização da carne espírito? Existe nela algo que, sem cair dos seus objetos mais nobres, chame a atenção para que a poesia tem um poeta em estado de necessidade, e por isso lhe traga um pouco mais de carinho e pão?

Nos tempos em que pensei ser professor, sempre tentei dizer a jovens estudantes que a literatura  era fundamental na vida  de todos. Mas quase nunca tive sucesso nessas arremetidas rumo a seus espíritos. Minhas palavras pareciam não fecundar. Primeiro porque a literatura ministrada a eles, em outras aulas, destruía todo o gozo de viver. Os mestres, profissionais ou burocratas, ensinavam-lhes a anti, a literatura para antas, com listas de nomes, datas e resumos de obras, nada mais. Em segundo lugar eu não fecundava porque o valor do sentimento, o sentido de uma rosa, o cântico de amor ou o desajuste de pessoas em uma sociedade corrupta nada significava para as tarefas mais práticas, que se impunham.
- O que eu ganho com isso, professor?

E com “isso”, o jovem, quando de classe média, queria me dizer, que carro irei comprar com a leitura de Baudelaire? Que roupas, que tênis, que gatas irei conquistar com essa conversa mole de Machado de Assis? Então eu sorria, para não lhes morder. A riqueza do mundo das páginas dos escritores, a gratidão que eu tenho para quem me fez homem eu sabia. Mas não achava o que dizer nessas horas quando o petardo de uma frase de Joaquim Nabuco, por exemplo, poderia ganhar a zombaria de toda a gente. Eu sorria e me punha a gaguejar coisas estapafúrdias do gênero os poetas são os poetas, Cervantes era Cervantes. E me calava, e calava a lembrança dos sofrimentos e humilhações em vida do homem Cervantes que dignificou a humanidade.
 - O que eu ganho com isso, professor?
  
Quando essa pergunta me era feita por jovens da periferia, excluídos, isso me ofendia muito mais que a pergunta do jovem classe média. Aos de antes eu respondia com uma oposição quase absoluta, porque não me via em suas condições e rostos. Mas a estes periféricos, não. Eu passava a ser atingido nos meus domínios, na minha gente, porque eu olhava os seus rostos e via o meu, no tempo em que fui tão perdido e carente quanto qualquer um deles. Então eu não sorria. Aquilo, do meu semelhante, me acendia um fogo, um álcool vigoroso, e eu lhes falava do valor da literatura com exemplos vivos, vivíssimos, da minha própria experiência. Então eu vencia. Então a literatura vencia. Mas já não tinha o nome de literatura. Tinha o nome de outra coisa, algo como histórias reais de miseráveis que têm a cara da gente. Que importa? Que se dane o nome, vencia a literatura.
  
Então, por fim, essa é a qualidade maior da literatura, acredito: libertar nos brutos que somos o nosso melhor humano. É algo muito mais precioso, e eterno, enquanto houver humanidade, do que tirar uma nota 1.000 na redação do vestibular.  Ou, se quiserem, pode ser criado até um slogan de anúncio comercial: virem humanos e, de desconto, ganhem uma nota mil no vestibular.

 * Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.



Não mais partido


* Por Eduardo Oliveira Freire


Meu pai era um homem imponente e bem educado. Mas, sempre ouvi falar que quem o aperfeiçoou foi minha mãe, pois ele era de origem humilde. Seu passado era ofuscado pelos prêmios e condecorações que recebeu ao longo do tempo.

Um dia, papai adoeceu e uma senhora com vestimenta simples apareceu na nossa casa. Ela cuidou dele até o fim e o acalentava como se fosse um bebê, cantando cantigas de ninar. Minha mãe fazia vista grossa, amava-o o bastante para saber que isso fazia bem para ele. As duas desenvolveram uma cumplicidade que se aproximava de uma amizade. Quando papai morreu, abraçaram-se em silêncio. No velório, recordo-me da senhora passar a mão na minha cabeça e ir embora para sempre.

Anos se passaram e esta recordação persistia em mim. Perguntei para minha mãe quem era aquela senhora e ela me disse: “ sua avó”. Quis saber mais e ela me deu o endereço.

A senhora estava sentada na varanda e me recebeu contida. Perguntei por qual motivo nunca me disse que era minha avó e ela respondeu ser complicado responder. Ela e meu pai estavam brigados tanto tempo que ela não queria se machucar mais. Decidiu tentar ser indiferente, mas nunca conseguiu.

Mostrou-me fotos antigas de meu pai e o quarto em que ele dormia. Ela me chamou a atenção de como os olhos dele eram tristes e concordei. Até nas fotos de festas e premiações seu olhar era muito melancólico.

Então, começou a falar sobre ele. Disse que sempre desejou ir embora para ser bem sucedido. Colecionava revistas de viagens, de mansões e comentava que encontraria a felicidade nesses lugares. Um dia, desapareceu com o vento.

Minha mãe deu sua versão, que meu pai sentia-se incompleto, apesar das vitórias conquistadas. Escrevia cartas que nunca eram respondidas. Uma vez, minha mãe o viu escrever em seu bloco de notas “ banzo”, que significa um sentimento de nostalgia que os negros da África têm, quando estão ausentes do seu país; É um termo de origem africana. De certo jeito, sentia falta de sua origem, a mesma de que no passado sempre quis fugir.

Através dos relatos de minha avó e da minha mãe percebi como meu pai estava à deriva, porque talvez não conseguisse encontrar um lugar no mundo. Quando achou que saindo da casa materna, encontraria sua identidade, descobriu que não estava completo e faltava o que deixou para trás.

No leito de morte, papai estava tão tranquilo... Talvez, porque, finalmente, se percebeu completo e não mais partido.

* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural e aspirante a escritor - http://cronicas-ideias.blogspot.com.br/



O jogo


* Por Rodrigo Ramazzini


- Par.
- Impar. Um, dois, três e já!
- Ganhei! A bola é nossa.

Era um jogo de futebol aguardado há muito tempo pela turma do Carlinhos. Era contra “o time da rua” do Cabeça, que ficava distante duas quadras. O jogo aconteceria em frente à casa do Carlinhos, na rua mesmo, tendo como “gramado” o chão batido. As goleiras mediam um passo “dos grandes” do Flavinho, atacante do time do Cabeça, e eram marcadas com dois tijolos deixados no chão. Logicamente, não havia travessão. As demarcações “do campo” tinham como linhas laterais o começo das calçadas das casas. As linhas de fundo e central foram desenhadas.

A puída bola foi colocada no centro. Cada time tinha cinco jogadores de linha. Devido ao tamanho da goleira, não se colocava goleiro. Ficou combinado também que o jogo iniciaria naquele momento e só acabaria quando o sol houvesse se “posto”, e não fosse mais possível enxergar a bola. Quem perdesse a partida pagava um refrigerante de 2,5 litros ao adversário.

O jogo começou com certa vantagem para o time do Cabeça, que logo no inicio marcou dois gols. Além da abertura do placar, os problemas de se realizar aquele jogo no meio da rua também começaram, apesar de já ser praxe. O primeiro episódio aconteceu com a Dona Odete, conhecida como “Índia” pelo pessoal do bairro. Ela passava até com certa distância do campo de jogo. Porém, no calor do jogo, e sem medir as conseqüências, durante um ataque do time do Cabeça, o Gordo, zagueiro do time do Carlinhos, afastou a bola para fora do campo com um “bicão” para cima. E, com uma falta de sorte danada, a bola caiu na cabeça da Índia, vindo a derrubar os seus óculos. Por sorte nem arranhou. Os xingamentos “ofertados” pela Dona Odete paralisaram a partida por alguns instantes, porém, logo foram esquecidos e jogo recomeçou.

O placar marcava 6 a 3 para o time do Cabeça quando o jogo sofre nova paralisação, desta vez por causa de uma “batida”. Foi em uma disputa aérea pela bola, no meio “do campo”, o Banana e o Maninho chocaram-se de cabeça. O Maninho nada sofreu, mas o Banana não teve a mesma sorte. Um corte abriu-se na nuca. Uma grande quantidade de sangue escorreu, o que assustou a todos. O Juca da Barbearia, que fica na esquina da rua, o conduziu até o hospital.

Passado o susto, o jogo reinicia, e logo no primeiro lance, novamente o zagueiro Gordo ricocheteia a bola de canela, e ela acaba subindo. Sobe tanto que acaba batendo nos fios de luz. Foi aquela correria! Como os fios se tocaram, um princípio de curto-circuito iniciou, saindo grande quantidade de faísca.

Tranqüilizados por não terem interrompido o fornecimento de energia elétrica na rua, o jogo recomeça com a vantagem no placar para o time do Cabeça, com a diferença de um gol, 14 a 13. E essa aproximação no placar acirra os ânimos no “campo”. Faltas violentas, reclamações e discussões começam entre os dois times. E em uma dessas faltas, cometida pelo Cabeça sobre o Carlinhos na ponta-direita, durante a reclamação pela marcação, indignado, o Cabeça chutou a bola para o lado. Com uma precisão impressionante, a bola passou por dentre dois galhos de uma árvore e atingiu certeiramente o vidro da janela da sala do Seu Floriano. Quando os jogadores ameaçam correr, o Seu Floriano aparece na janela e apazigua – Eu sei como é. Já tive a idade de vocês! Com o perdão do Seu Floriano, a bola foi colocada no local da falta e voltou a rolar.

O Sol já desaparecia no horizonte. A partida estava próxima do fim. Foi então que aconteceu o lance polêmico. O Carlinhos driblou três jogadores do time do Cabeça e chutou. A bola tomou certa altura e passou no alto dentre os dois tijolos (goleira). Como as “goleiras” não tinham travessões, o critério para validar um gol, neste caso, era subjetivo. Dependia da altura, que ninguém sabia qual era a correta. Para uns foi gol, para outros não. Gol esse que se validado empataria a partida. Daí iniciou-se a confusão! Foi aquele bate-boca, empurra daqui, ameaça dali, e com as provocações, o Carlinhos e o Cabeça começaram a brigar, com os demais jogadores apenas “incentivando”. Trocavam socos no meio da rua quando apareceu na janela de casa a mãe do Carlinhos, gritando – O que é isso Carlos! Passa para dentro! Vamos acabar com esse jogo. Onde já se viu brigar na rua! Passa para dentro!

E como o Carlinhos era o dono da bola, a partida se encerrou sem se definir o placar. Mas um novo jogo já foi marcado para semana que vem...

* Jornalista e cronista