domingo, 29 de março de 2015

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 9 anos e dois dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Machado de Assis e a Questão Christie.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Busca de ideais”.

Coluna Direto do Arquivo – André Falavigna, crônica, “Pequeno Manual para Identificar Frescuras”.

Coluna Clássicos – Rosiska Darcy de Oliveira, crônica, “Lata d’água na cabeça”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica, “O milho de São José”.

Coluna Porta Aberta – Marleuza Machado, poema, “Evolução”.


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas”Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” Fernando Yanmar Narciso.
“Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br



Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.




Machado de Assis e a Questão Christie


A atuação de Machado de Assis como compositor – de letras, obviamente, e sempre em parceria com músicos famosos em sua época – posto que incidental (porquanto não consta que estivesse cogitando, sequer remotamente, em abandonar a carreira literária), é um aspecto da sua vida que me chama, em particular, a atenção. Pincei, em várias fontes (e há uma fartura delas), três ou quatro casos que no meu entender merecem ser contados e comentados com mais vagar, por terem, como panos de fundo, histórias que justificam sua decisão. Sobre o primeiro deles, apenas me reservo o direito de fazer menção, sem mais comentários, por haver tratado dele em texto anterior. Não quero ser redundante. Refiro-me à composição da letra do hino oficial da Arcádia Fluminense – sociedade litero-cultural fundada em 1865 por Machado de Assis – tendo por parceiro o músico espanhol José Zapata y Amat.

Todavia, esta não foi sua estréia como compositor. A primeira letra, pelo que apurei em minhas fontes, foi feita em 1863, para o “Hino Patriótico”, tendo como parceiro o maestro Júlio José Nunes, então na “crista da onda”, por haver regido, tempos atrás, a ópera “A noite do castelo”, de Antonio Carlos Gomes, na ocasião uma estrela em ascensão depois de haver caído nas graças do imperador Dom Pedro II. Pitoresco foi o fato de Machado de Assis, tido e havido por seus detratores como “antinacionalista” e que revelaria, tempos depois, em sua obra, inegável influência cultural inglesa, estrear na música, como compositor, justamente para defender o Brasil da então toda poderosa Inglaterra, senhora dos sete mares, império tão vasto que dele se dizia que em suas fronteiras o sol jamais se punha. E não se punha mesmo. Era a única superpotência da época, papel idêntico ao que os Estados Unidos exercem hoje.

Pois é, nosso país então sumamente “jovem”, com somente 39 anos de vida independente, que em termos de força militar não passava de humilde Davi diante do poderoso gigante Golias, estava em pé de guerra com o reino comandado pela Rainha Vitória, com o qual havia rompido relações diplomáticas. Tudo por causa do que passou para a História com o nome de “A Questão Christie”, Acho estranho o fato desse dramático episódio ser tão mal tratado nos dias atuais (creio que sempre foi assim) em nossas escolas. Raríssimos estudantes sabem do que se tratou. Bem, como esta não é uma aula de História, resumirei, rapidamente, sem dar muitos detalhes, no que o incidente consistiu.

A contenda com a Grã-Bretanha iniciou-se em 1861. Foi batizada com o nome do embaixador britânico no Rio de Janeiro à época, William Dougal Christie. O caso é que o diplomata reagiu com indignação à prisão de marinheiros de seu país acusados de arruaça no Rio de Janeiro – brigaram com marinheiros brasileiros por causa de mulheres, todos, provavelmente, bêbados feito gambás. Em nome de sua majestade, a Rainha Vitória, ele exigiu a demissão dos policiais responsáveis pelas detenções. Aproveitou o embalo para pedir, também, indenização pela carga de um navio recém-naufragado na então Província do Rio Grande do Sul, o Prince of Wales, supostamente saqueada pela população local.

A batalha diplomática, frise-se, durou anos. Ao fim e ao cabo, o Brasil venceu a questão. O rei da Bélgica, escolhido como árbitro para o “imbróglio”, deu ganho de causa ao governo brasileiro. Antes disso, porém, os ânimos se exaltaram, de parte a parte. A Marinha da Grã-Bretanha, então a mais poderosa do mundo, chegou a prender cinco navios mercantes brasileiros. E foi além: ameaçou bombardear o Rio de Janeiro, apontando seus poderosos canhões para a cidade. A população, claro, ficou em polvorosa. Foi tomada, sobretudo, de insensatos pruridos patrióticos, compreensíveis, mas nada práticos.  Para ajudar o país a enfrentar o superior Exército britânico, em uma eventual guerra armada (até então ela era, somente, diplomática) o povo brasileiro organizou gigantescas manifestações de protesto por todo o País, sobretudo na capital do Império. Várias promoções foram feitas para arrecadar fundos, visando a compra de armamentos para nossas Forças Armadas.

É nesse contexto que entra o “Hino Patriótico”, cuja letra foi composta por Machado de Assis. Uma das tantas manifestações, ocorridas já em 1863, teve como palco o Teatro Ginásio. Foi ali que a tal composição foi apresentada, com pompa e circunstância. Seus versos figuraram anônimos, em forma de anúncio, no periódico “Semana Ilustrada” de 18 de janeiro de 1863. Até o título foi outro: “Hino dos Voluntários”. O produto da venda de certo número de exemplares do jornal, com ilustrações do artista Henrique Fleiuss, seria destinado, pelos autores, à subscrição nacional em favor de armamentos. Machado, como autor da letra, foi identificado apenas mais tarde, e nas páginas de dois outros jornais, o “Diário do Rio de Janeiro” e o “Correio Mercantil” do dia 21 de janeiro e não do que organizou a promoção. No Teatro Ginásio, o hino foi, primeiro, recitado, e depois, cantado, pela atriz Emília Adelaide, então muito famosa no Rio de Janeiro. O estribilho dizia:

“Brasileiros! Haja um brado
Nesta terra do Brasil
Antes a morte de honrado
Do que a vida infame e vil”

E numa das estrofes, Machado de Assis identificou o inimigo pelo nome:

“Pela liberdade ufana
Ufana de honradez
Esta terra americana
Bretão, não te beija os pés”.

Quem disse, pois, que Machado de Assis era antinacionalista e que considerava ridículos os arroubos patrióticos, tanto os seus quanto os da população? Aos 24 anos, pelo menos, não era como muitos o pintaram e como alguns o pintam ainda hoje. Só se, por acaso, ele mudou e se tornou assim na maturidade ou na velhice, no que não creio. Era patriota sim. Mas da maneira correta, inteligente e lúcida: sem abrir mão, jamais. do senso crítico, pautando-se pela razão, em detrimento da selvagem e ingovernável paixão, ou seja da emoção sem pé e nem cabeça, que geralmente mobiliza as massas não pela compreensão, mas tomadas, somente, pelo tão conhecido “efeito manada”.

Boa leitura.

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk


Busca de ideais



* Por Pedro J. Bondaczuk


O homem não pode viver – no sentido mais amplo do termo, ou seja, o de ter uma vida "civilizada", com qualidade – se não tiver um ideal, por mais absurdo que este seja. Precisa de motivação, seja ela qual for – a imposição de uma fé, a obtenção de riquezas, a satisfação da carne, a conquista do poder ou o reconhecimento intelectual, não importa –  para que possa se empenhar, agir, fazer, ser. No confronto com a realidade, muitas vezes somos lançados em crises existenciais agudas ou crônicas, que podem durar uma hora, um dia, um mês, um ano ou mesmo até a hora da nossa morte, que não sabemos (felizmente) qual é. Compete-nos reagir contra a tentação de manter o tempo todo os pés no chão.

Precisamos da fantasia para sobreviver enquanto seres pensantes. Aquela que é a matéria-prima das artes e a consoladora mor dos homens. Ninguém resiste à realidade absoluta. É como olhar diretamente para o Sol. Ela nos cega e até nos mata. Há um poema de Raul Leoni que não me canso de citar em minhas crônicas, que diz, em determinado trecho: "O homem desperta e sai, cada alvorada,/para o acaso das coisas...E, à saída, /leva uma crença vaga, indefinida,/de achar o Ideal em alguma encruzilhada..." Alguns conseguem e abraçam-no ferozmente, para que não mais escape. Outros prosseguem nessa busca incansável, dia após dia, ano após ano, em vão. Mas a simples procura já lhes preenche a vida.

Há os que teimam em se ater ao real, ao concreto, ao absurdo que é esta existência, cujo objetivo verdadeiro ninguém conhece com certeza. São uns infelizes. São amargos, maldosos, mesquinhos. São dignos de dó. Para o quê o homem nasce? Para purgar hipotéticos pecados que, ademais, não pode ter cometido no ventre da mãe? Para através do sofrimento adquirir o direito a uma "vida eterna", alhures, em algum lugar do espaço, chamado, de forma vaga e indefinida, de "céu"? Para simplesmente existir, sem qualquer razão superior? Pode ser que sim...pode ser que não...

Certeza mesmo ninguém tem de coisa alguma. Precisamos sonhar para dar algum sentido a isto que aí está. Temos que "criar" a nobreza de uma suposta finalidade para a nossa vinda ao mundo. E isso tem que ser feito, principalmente, se não houver alguma e se não passarmos de frutos do acaso. Se não formos mais do que um, em milhões de espermatozóides, que venceu a corrida para fecundar um, dos múltiplos óvulos, e desta forma ganharmos o prêmio (ou castigo?) de existir.

A arte é o caminho para a conquista dessa grandeza. E esta nunca se faz com os pés no chão. Fernando Pessoa tem um texto extraordinário a esse propósito. Diz o escritor dos heterônimos: "Os realistas realizam pequenas coisas, os românticos, grandes. Um homem deve ser realista para ser gerente de uma fábrica de tachas. Para gerir o mundo deve ser romântico. É preciso ser realista para descobrir a realidade; é preciso ser romântico para criá-la".

Se a vida não tem qualquer sentido, nos compete lhe darmos algum. Se a religião não passa de mera projeção dos desejos humanos, assumamos a ilusão de que há algum tipo de Paraíso, de sobrevivência eterna, para o que convencionamos chamar de alma. Se a morte é definitiva, façamos tudo o que pudermos para preservar pelo menos nosso nome na memória das gerações vindouras, para que não desapareçam todos os vestígios da nossa em geral sofrida existência. É nosso papel darmos um sentido –  se de fato não houver algum –  à vida.

Sinto que os artistas do meu tempo estão perdendo a rota. Competem, por exemplo, com o jornalista, no afã de recriar a realidade através da sua ficção. Mesmo a poesia, que é sentimento, alma e emoção, se torna "concreta", feita de tijolo, cimento e asfalto. Agora é crua, amarga e dolorida. Não mais atinge a sensibilidade. Atém-se, simplesmente, à razão. Os poetas estão fazendo concessões à realidade. Com isso perdem a graça, o charme e o encanto. Trocam as asas do condor pelas inúteis patas dos répteis.

Mas Fernando Pessoa nos ensina: "A poesia encontra-se em todas as coisas – na terra e no mar, no lago e na margem do rio. Encontra-se também na cidade – é evidente para mim, aqui, enquanto estou sentado. Há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia no barulho dos carros nas ruas, em cada movimento diminuto, comum, ridículo, de um operário que do outro lado da rua está pintando a tabuleta de um açougue (...) É que poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito, diante das coisas. Como de alguém que conhecesse a alma das coisas, e lutasse para recordar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não sob aquelas formas e aquelas condições, mas de nada mais se recordando". Poesia é o meu ideal. É aquele que procuro encontrar, a cada manhã, em "alguma encruzilhada". A arte o é...O sonho o é...A fantasia o é...E o ópio da ilusão também...


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 



Pequeno Manual para Identificar Frescuras


Por André Falavigna



Vamos esclarecendo a coisa logo de cara: frescura e homossexualismo são duas coisas completamente distintas. Muitas vezes andam juntas, mas não se misturam necessariamente. Por exemplo: o sujeito que ler este parágrafo e acusar o termo “homossexualismo”, pedindo um “homossexualidade”, é, sem sombra de dúvida, fresco. Mas não precisa ser, por conta disso, homossexual, inclusive porque a burrice se distribui democraticamente entre todos os apetites sexuais conhecidos. Já a frescura não viceja a não ser em solo estúpido. Havendo burrice, poderá haver frescura. O homossexualismo não tem nada a ver com isso.

Ocorre que é difícil safar-se da frescura, porque ela, além de encontrar um ambiente adequado em quase todos os setores da atividade humana, tem características meio assim como as das trepadeiras. Vai se esticando e se enfiando em tudo quanto é buraco que aparece. Assim, a frescura que medra feliz pelos campos do jornalismo encontra-se, rápida e decidida, com a frescura que prospera sapeca pelas searas da medicina, só para ficar no exemplo que mais me vem à cabeça agora e que, mais tarde, voltará à baila neste mesmo texto. As redes de frescura vão então se ampliando e se imbricando umas nas outras, até o ponto em que todo o panorama do mundo visível é recoberto de frescura, frescura e mais frescura.

Por isso, urge criar alguns meios identificadores do que é frescura e do que não é, sob o risco de continuarmos recebendo e-mails com longas listas estúpidas enunciando bobagens a respeito do assunto. Outro dia, recebi um que dizia que se alguém conhece mais de não sei quantas cores, é porque é veado. Está claro que veado, aqui, é designação de fresco e não de homem que gosta de homem, coisa totalmente diversa. A confusão é clássica, mas não pode servir de desculpa. O importante é que há por aí uns tipos que estão desesperados, sufocados pela frescura reinante, e que acabam atirando para qualquer lado. Vamos estabelecer um ponto: conhecer cores, entender de vinhos, fumar charutos, identificar autores de quadros, gostar de teatro, ser alfabetizado, enfim, essas coisas todas, podem muito bem ser invadidas pela frescura, mas não são essencialmente frescuras. Eu sei que é muito difícil perceber quando o sujeito que gosta de cinema europeu é fresco e quando ele simplesmente viu filmes europeus de que gostou. É difícil porque temos que esperar o camarada dizer que “não assiste o circuitão comercial” para confirmar que, espiritualmente, ele é um sodomita dos mais ferozes. E é diante dessa dificuldade que me vejo obrigado a ensinar-lhes, por enquanto, apenas o básico de meu Manual de Identificação, Isolamento e Extermínio de Frescuras.

Não se preocupe em identificar as frescuras em si, no começo pelo menos. Identifique os frescos antes. Tudo o que um fresco faz, é frescura, mesmo que seja uma atividade típica de pessoas de bem (como a jogatina, por exemplo). Uma pessoa normal, quando viciada em jogo, vai ao carteado, no máximo a um vídeo-pôquer. O fresco vai ao Bingo e fica horas lá.

Um bom atalho é identificar os gostos esportivos do elemento a ser analisado. Se ele gostar de automobilismo e não for rico ou americano, tem grandes chances de ser uma bichona louca, no sentido moral da coisa. Vocês podem, inclusive, reparar no seguinte: quanto mais alternativa for a modalidade à qual o amigo for filiado, mas fácil é a identificação do, digamos assim, prurido típico que o acomete. Nesse sentido, os pendores pela Fórmula 01 estão até banalizados, ao passo que uma conversa sobre stock car, caso não envolva morte e mutilações, é caso perdido. Mesmo dentro do universo monolítico da frescura, há gradações. Se o “fã de esportes” gosta de Nelson Piquet, ainda passa. Se for daqueles que fica brava toda vez que alguém fala mal de Ayrton Senna, estejam certos: vocês estão diante de uma Rainha Mãe do cupinzeiro. Todo cuidado é pouco.

Os únicos esportes praticados no Brasil que se admitem numa conversa de pessoas normais são os seguintes: futebol, basquete, boxe, turfe, baralho, palitinho e dados. Em época de Olimpíada, admitem-se hipismo, atletismo e natação. Do resto, desconfie. Um esporte, em especial, serve como um sinal vermelho na testa de seu admirador: trata-se do vôlei masculino (nenhuma pessoa séria leva qualquer esporte feminino em consideração, para nada). Todas as equipes brasileiras que obtiveram sucesso no vôlei foram chamadas de “meninos do vôlei”. No vôlei não há indisciplina e todo mundo tem “garra” (deve ser para dar umas unhadas mais fortes). Os jogadores de vôlei comemoram tudo que dá certo, por mais idiota que seja, e ficam uns dando tapinhas na bunda do outros sem mais nem menos. A terminologia que envolve o esporte é repulsiva: block, deixadinha, manchete (meu Deus, o que é isso?), e todo mundo que joga vôlei sabe perder. Nunca, na História do vôlei, algum jogo acabou em pancadaria. A torcida de vôlei da seleção masculina é patrocinada por uma estatal. Tudo isso torna o vôlei um assunto de morde-fronhas.
       
Outro bom meio de identificar um fresco é sua alimentação. Todo homem que não compreende que o ato de comer é pura diversão e que não tem nada a ver com a saúde é, além de um fresco, um nazista e um filha de uma puta.  Há quem não coma ovo por conta do colesterol, há quem acredite que carne mal passada faz mal, há quem se julgue alérgico a todo tipo de coisa, desde o leite até o azeite. Eu acho muito engraçado. Mas há agora quem acredite que eu e você não devamos comer ovos moles com bifes gordos que espirrem sangue fervendo no olho de nossos vizinhos de mesa, porque estão preocupados com a saúde de todos nós. Aí temos um exemplo de como a frescura, além de irritante, pode ser perigosa. O fato mesmo de que médicos abram a boca para dar opinião sobre saúde pública já é um descalabro proveniente da frescura. O conceito de Saúde Pública é uma coisa bizarra: se não for para conter epidemias (daquelas clássicas, em que criaturas microscópicas nos sacaneam, e não dessas subjetivas, como obesidade), cuidar de mamães e distribuir vacinas, não consigo entender para que catzo sirva uma política pública de saúde. Deve ser para lotar o mundo de ex-fumantes mais insuportáveis do que qualquer fumaça de cigarro. Disso eu tenho certeza, porque nunca fumei: nenhum cigarro do mundo é mais inconveniente, chato e fedido do que um ex-fumante. O ex-fumante é um subproduto da frescura. Só o tabaco pode salvar-nos dessa gente.

Aliás, aqui temos mais um elemento identificador de frescos de todos os matizes: frescos sempre são muito preocupados em serem homens e mulheres de seu tempo. Se você quiser saber o que seria conveniente pensar para não parecer desalinhado, pergunte ao fresco. É por isso que a torcida do São Paulo está repleta de frescos: não é porque há um montão de homossexuais são-paulinos, coisa que até acredito que não haja. É porque, dada a capacidade da frescura de penetrar em todas as frestas da vida, é natural que ela precise de um lugarzinho só dela inclusive no futebol, no palitinho (ou porrinha, como queiram) e, por último mas não somente, até no homossexualismo mesmo.

O São Paulo Futebol Clube é, por uma série de motivos cuja exposição não cabe aqui (sobretudo agora, perto do final da crônica) o maior repositório de anseios afrescalhados de nossa crônica esportiva; ele é, portanto, aquele lugarzinho que a frescura encontrou no futebol. Daí ser tão fácil encontrar são-paulinos que acordam cedo, domingo de manhã, para assistir Fórmula 01 e choramingar a ausência de Ayrton Senna da Silva. Daí ser tão comum um sujeito alertar-nos à mesa acerca do que estamos comendo e, citando-nos a capa da última edição da “Veja”, glosar nosso cardápio, tudo isso entre um e outro elogio às coxas do Raí e aos cotovelos filantrópicos do Leonardo. Encontrar um são-paulino é, quase sempre, encontrar um fresco triunfalista.

O mais assustador disso tudo é que, constantemente, fazemos concessões à frescura. O fazemos justamente por conta da natureza afrescalhada dela, que não levamos a sério. Pois deveríamos. A frescura opera basicamente pela consideração histérica de hipóteses histéricas formuladas sobre aspectos superficiais do cotidiano. Todavia, os objetivos da tentativa de sistematização e institucionalização da frescura são sempre perversos. O Khmer Vermelho mandou muita gente para o espaço por motivos muito frescos. Usar óculos era uma sentença de morte. Quando os frescos de hoje em dia falam em alimentação saudável, aeróbica, planejamento e disciplina, eles estão falando disso mesmo: alimentação saudável, aeróbica, planejamento e disciplina. Eles querem tudo isso para você e para mim. E é aí que reside o Mal. A cada concessão que fizermos, teremos dado mais um passo em direção ao inferno: vamos todos acabar sendo obrigados a torcer pelos meninos do vôlei do São Paulo Vôlei Clube. Esperem e verão.

(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com diversas  publicações eletrônicas.

Lata d’água na cabeça


* Por Rosiska Darcy de Oliveira


Sessenta anos atrás, no carnaval do Rio, o povo cantava a falta d’água. Lá ia Maria que, “lata d’água na cabeça, sobe o morro e não se cansa, pela mão leva a criança", Maria que lutava pelo pão de cada dia e sonhava com a vida do asfalto que acaba onde o morro principia. Hoje, às voltas com a mesma lata d’água, não sei se ela sonha com a vida do asfalto já que, mais de meio século depois, no asfalto também falta água. Sensação de tempo circular, de eterno retorno. Pura sensação. Tudo mudou.

O carnaval chegando, à boca do povo voltam os versos carnavalescos que, na década de 50, contavam o que era o Rio de Janeiro, “cidade que me seduz, de dia falta água, de noite falta luz". A marchinha mereceu, na época, tradução para o inglês da grande poetisa Elizabeth Bishop, moradora do Rio que estabeleceu com a cidade ambígua relação de amor e ódio, estarrecida com a alegria — ou a leviandade — com que os cariocas cantavam seus males.

Os cariocas mudaram. Mudou o humor. Cenhos franzidos, desgosto, olhares para o céu à cata de nuvens, ninguém está achando graça nesse inferno. Calor sufocante e uma irritação profunda e generalizada ensombrecem os tempos pré-carnavalescos. E abrem alas para quem quer engrossar e pôr na rua o bloco dos descontentes.

Nesse mais de meio século, o Brasil mudou muito e para melhor, a água encanada chegou a tantos lares que é mais difícil hoje aceitar quando a torneira seca. A população já não transforma em sambas seu desgosto. Quer saber o que está acontecendo e os riscos que corre. O ilusionismo das palavras não vivifica a terra crestada no fundo das represas.

Os governantes devem ao país uma informação cristalina sobre o que está se passando e um detalhamento das ações de resposta à crise que não deixem a sensação de que, de novo, há algo escondido. O problema é técnico, de difícil entendimento? Não nos subestimem, aprendemos depressa o que é crise hídrica e volume morto: falta d’água para milhões de brasileiros, para a indústria e agricultura. E a proximidade do fundo do poço.

A política de ocultação que precedeu as eleições, impedindo as medidas preventivas necessárias, erro gravíssimo imputável a gregos e troianos, deu no que deu: agravamento do problema e desgaste da credibilidade de todos. Sem credibilidade, vai ser difícil pedir ajuda à população para diminuir o consumo, dividir com ela as responsabilidades no enfrentamento da crise. Sem a certeza de que os governos estão dizendo, enfim, a verdade, não haverá mobilização nacional. E é certo que ela será incontornável.

O ministro de Minas e Energia apelou para Deus que, segundo ele, é brasileiro. Por pouco não cantou “Alá-lá-ô, ô ô ô, mande água pra ioiô, mande água pra iaiá". Ora, Alá, meu bom Alá, anda às voltas com os horrores e barbáries que se cometem em seu nome e o Deus que nos protege não é só brasileiro. Seu ministro mandachuva, São Pedro, manda chuva também para outros lugares. Brasileiros mesmo, somos nós, e a conversa é conosco.

A crise, real e imediata, tem a virtude de ensinar a milhões de pessoas a responsabilidade pelo seu próprio futuro e a consciência de que viver melhor ou pior é, em boa medida, o resultado de nossas próprias escolhas. As crises são educativas e uma oportunidade para mudança de comportamentos.

Começando pelo comportamento de quem nos governa. É imperativo o entendimento entre a presidente da República e os governadores dos estados atingidos, acima das querelas partidárias. Em tempos de politicalha minúscula e picuinhas, de irresponsabilidade máxima, seria um alívio a união nacional em torno do interesse público, esse que é sempre a última das preocupações da classe política. Melhor seria se, reconhecendo os imensos erros cometidos — mentiras eleitorais, falta de planejamento, incompetência na gestão e atraso tecnológico — fossem os governantes capazes de unir forças para corrigi-los.

Resta o imponderável, a chuva. As florestas amputadas estão cobrando seu preço. A natureza tem história, uma história humana da natureza, e ela sempre acaba por mostrar quem tem a última palavra. No Sul Maravilha brotam angústias nordestinas. O sertão vai virar mar e o mar virar sertão? E se chover pouco ou nada no fim do período de chuvas?

Não adianta mais cantar, como nos carnavais de outrora, "Tomara que chova três dias sem parar". O cerne da questão é que não estamos, como poderia parecer, voltando ao passado. Estamos chegando ao futuro. Apertem os cintos para aterrissar na real. Água será um bem cada vez mais raro no mundo.

O Globo, 31/1/2015


* Escritora, jornalista e imortal da Academia Brasileira de Letras
O milho de São José

* Por Clóvis Campêlo


A minha infância, a partir do dois anos de idade, foi vivida no Pina. Ali, a vida me deu régua e (des)compasso. Ali, vivi até os vinte e poucos anos, quando os meus pais se separaram e seguiram rumos distintos.

Morávamos numa casa conjugada, com três quartos e um quintal relativamente grande, onde o meu pai costumava criar galinhas e plantar goiabeiras e bananeiras. Ele mesmo transportava as mudas das árvores. Ele mesmo fazia as cercas que dividiam a plantação da criação, pois as galinhas, com seu metabolismo acelerado, costumavam se alimentar do verde das árvores ainda em desenvolvimento.

No início do mês de março, já começávamos a juntar a madeira para a cerca da parte do terreno onde plantaríamos o milho da canjica junina. E no dia 19 de março, dia de São José, fazíamos as covas onde os milhos eram plantados. Depois, era só aguar e esperar que a pequena plantação crescesse e dela brotassem as espigas que comeríamos em junho, durante as festas do meio do ano. Se a produção fosse pequena – afinal, o quintal era bastante arenoso e um tanto quanto impróprio para o cultivo, bastava irmos na feira do bairro ou no pátio em frente a Igreja de Nossa Senhora do Rosário para complementar a cota necessária.

Naquela época, final dos anos 50 e começo dos anos 60, o Pina já era um bairro urbanizado mas ainda muito diferente do que é hoje. Ainda era um paraíso suburbano onde nós, os meninos de classe média, nas brincadeiras de rua e na praia, nos misturávamos tanto com os filhos da classe média remediada (os filhos dos doutores) quanto com os filhos dos operários, pescadores e até mesmo dos excluídos, aqueles pais sem emprego ou sem ocupação fixa e que viviam de biscates (o lúmpen proletariado).

Natural de Jaboatão dos Guararapes, cidade que hoje faz parte da Região Metropolitana do Recife, mas que no início do século passado tinha mais hábitos rurais do que urbanos, meu pai guardara a tradição, adquirida na infância, de fazer a plantação do milho no Dia de São José. Era quase um ritual familiar do qual nós, os filhos homens, participávamos, nem sempre com satisfação, e do qual a minha mãe desdenhava e não dava muita importância. Mas, éramos felizes e não sabíamos.

Lembro ainda que o meu pai era um homem pacato e laborioso, que gostava de cuidar da manutenção da casa. Ele mesmo, com a ajuda minha e do meu irmão mais novo, pintava as paredes e portas da casa, no final do ano, destinando para nós a pintura das partes externas, como o longo muro de frente e os muros laterais, um trabalho cansativo e extenuante, mas que nos enchia de satisfação com o resultado final.

Os serviços de casa por ele terceirizados, eram os concertos dos telhados e o esgotamento da fossa (naquele tempo o bairro ainda não era saneado), serviços geralmente feitos por seu Alfredo, um preto velho e biscateiro que nos ajudava nessa empreitadas.

A lembrança do Dia de São José, hoje, foi só um pretexto para voltar no tempo e viajar nas lembranças daquela época. Ainda hoje essas lembranças já fugidias, que insisto em complementar com a imaginação, mexem comigo e com o meu equilíbrio emocional. Ainda hoje sinto saudades do milho do Pina, que plantávamos no Dia de São José.

Recife, março 2015

* Poeta, jornalista e radialista, blogs:


Evolução

* Por Marleuza Machado

Sou jovem e bela
refletida no espelho.
Em singela análise
posso distinguir o eterno
e o que perece...
Os anos avançam,
o tempo diminui,
a alma cresce.


* Poetisa e jornalista

sexta-feira, 27 de março de 2015

A música na obra de Machado de Assis


A música é assunto onipresente na vasta e eclética obra de Machado de Assis, quer na ficcional (romances e contos), quer em suas crônicas e críticas de arte. Desconheço (embora não afirme que não haja) a existência de qualquer outro escritor (brasileiro ou não), que tenha atribuído tanta importância e tratado com tamanha insistência, em quantidade mesmo que remotamente parecida, dessa manifestação artística. Discordo, todavia, dos que caracterizam essa recorrência temática como “obsessão”. Não chega a tanto. E mesmo que fosse, seria louvável, não é mesmo? Afinal, o que seria do mundo, tão violento e perigoso, sem a existência da música? Seria, certamente, no mínimo, muito mais triste e sem graça do que já é.

Peço licença, ao paciente leitor, para fazer algumas citações que, creio, não somente ilustrarão como, sobretudo, esclarecerão o tema. Há tantas opiniões – convergentes ou divergentes à minha – e não apenas no que se refere a esse aspecto particular da obra de Machado de Assis, mas a tantos e tantos outros, que, mesmo a contragosto, me vejo induzido a citá-las. Creiam-me que não se trata de nenhum arroubo de vaidade de minha parte, muito menos de eventual exibição pedante de erudição, como posso ser acusado. Tomara que não seja. Feito o esclarecimento, vamos ao que interessa.

O professor, crítico literário e um dos maiores especialistas na obra machadiana, o inglês John Gledson, escreveu, na detalhada introdução do livro “Contos: uma antologia, Machado de Assis” (Companhia das Letras, 1998) que organizou: “Não chega a ser obsessivo, mas pode-se dizer que a música  é um tema recorrente na obra de Machado de Assis”. Como se vê, trata-se de conclusão convergente à minha, embora sua insistência leve muitos a desconfiarem que seja, mesmo, obsessão. No caso, mantenho a ressalva que fiz acima, ou seja, a de que, mesmo que se trate disso (o que, reitero, entendo que não é), não se seria algo ruim, doentio e maníaco.

A seguir, Gledson entra direto no assunto e cita alguns contos (no caso, trata, especificamente, desse gênero) em que Machado de Assis se refere à música para ilustrar seus enredos. Escreve: “Ora é na forma de um piano que o personagem toca; ora o machete (espécie de cavaquinho), ou mais genericamente uma melodia que perpassa e colore o ambiente onde os personagens ‘vivem’. Isso pode se constatar no conto ‘Cantiga de esponsais’, em que a obsessão de um virtuose toma a narrativa por inteiro, ou em ‘Marcha fúnebre’, em que um personagem simplesmente assobia uma polca ao atravessar uma rua; ou em ‘Trio em lá menor’,,,”. A seguir, analisa este último conto, todo ele construído em torno de “figuras musicais”, como “Adagio cantabile”, “Allegro ma non troppo”, “Allegro appassionato” e  “Menuetto”. Quem está familiarizado com música sabe, de sobejo, do que se trata. E certamente não deixa de ficar maravilhado com tão pitoresca e original analogia.

Há dezenas de outros contos em que a música, de uma forma ou de outra, se faz presente, como “Aurora sem dia”, “Um erradio”, “Vênus! Divina Vênus!”, “O programa”, “Uma por outra”, “A chinela turca”, “Um homem célebre”, “O machete” e vai por aí afora. Não pode, portanto, tratar-se de mera coincidência. Para escrever com tamanha constância, pertinência e desenvoltura a propósito, deduz-se que Machado de Assis deveria dominar muito bem o tema. Não consta, todavia, que ele soubesse tocar qualquer instrumento. Creio que não sabia e não tocava nenhum. Todavia, tinha profundo conhecimento de teoria musical. Se não tivesse, como poderia tratar com confiança e naturalidade do assunto? Não poderia!

Mas não é somente nos contos que a música se faz presente nos enredos de Machado de Assis. Encontramo-la, por exemplo, no romance “Esaú e Jacó”, quando a personagem Flora toca piano e, numa transcendência mental provocada pela melodia, une, em pensamento, os dois irmãos, Pedro e Paulo, antagonistas em todas as coisas e em todos os aspectos. Está presente em “Memorial de Aires”. E aparece, com muito mais força, em “Dom Casmurro”. Aliás, Machado de Assis dedica-lhe um capítulo inteiro desse romance, o IX, intitulado “A Ópera”, ao assunto. Nele apresenta, na fala do personagem Marcolini (tenor decadente e já “sem voz”), esta afirmação: “... A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano em presença do baixo e dos comprimários. Há coros numerosos, muitos bailados, e a orquestração é excelente...”;

Esclarecedora é esta observação do professor Leonardo Francisco Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais, na monografia “A ópera aberta”: “Na cosmogonia de Marcolini, Deus é o poeta que escreveu um libreto de ópera, do qual abre mão, por entender que tal criação não é própria de sua eternidade. Satanás é o jovem músico de grande futuro, mas que, ao tramar uma rebelião, é expulso do conservatório do céu. Ao sair, Satanás leva consigo, para o inferno, o manuscrito abandonado. Com o objetivo de provar o seu valor, ele compõe a partitura e a leva ao ‘Padre Eterno’, que se recusa a ouvir o trabalho. Todavia, após as intermináveis súplicas de Satanás, Deus, ‘cansado e cheio de misericórdia’, consente que a ópera seja encenada, mas fora do céu. Assim, ele cria um teatro especial – o nosso planeta – e inventa uma companhia inteira, com todas as partes, protagonistas e coadjuvantes’”. Este, como se vê, é um resumo muito bom do capítulo IX de “Dom Casmurro”.

O pensamento de Machado de Assis, sobre esta nobilíssima arte, fica perfeitamente explicitado nesta outra declaração, colocada na boca do tenor Marcolini: “Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera…” E não cabe?

Bem, que Machado de Assis manteve estreita relação com a música, creio ter deixado relativamente claro, nestes breves comentários. Que ela aparece, a todo instante, em seus contos e romances, regendo o ritmo da narrativa, também acredito que não restem mais dúvidas, embora haja muitas (e põe muitas nisso!) coisas a acrescentar. Que publicou nos jornais inúmeras críticas musicais e traduziu libretos de óperas, tudo isso também se sabe. Uma coisa, porém, que pouca gente sabe é que Machado escreveu letras para modinhas, valsas e outras formas de música popular da sua época. Ou seja, que foi compositor. E isso é tão pouco tratado, que merece capítulo a parte.

Boa leitura.

O Editor.

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O silêncio dos democratas


* Por Urariano Mota


Eu relutei, tive dúvida em relatar um fato desagradável acontecido comigo no mais recente dia 13 de março, aqui no Recife. Mas agora mudei pra não ser mudo. Vocês já vão entender a razão.

Para a defesa da Petrobras e do governo Dilma, antes de sair de casa no dia 13, aconselhei aos filhos e esposa:

- Olhem, vão acontecer provocações da direita. Mas a gente não tem olhos nem ouvidos para a provocação. Faz de conta que não vemos nem ouvimos, e vamos em frente.

Mas eu próprio não resisti a 2 minutos de insulto fascista. Assim se deu. Quando a passeata da multidão vestida de vermelho saiu da Avenida Guararapes, e dobrou para a avenida Dantas Barreto, antes da Igreja de Santo Antonio, notei que a minha mulher respondia a um senhor forte, de cabelos brancos. Dizia ela:

- Todos nós somos trabalhadores.

Então voltei e me acerquei dele. E ouvi:

- Era bom metralhar, fuzilar todos os petistas, tudo que é comunista.

- Como é? – perguntei.

E o animal:

- Tem que cortar a cabeça de todos eles.

- Que é isso? Que estupidez é essa? – perguntei.

E o animal, passando a mão na cintura me soltou mais um coice:

- Vou marcar a sua cara. Pra no dia em que a gente voltar... 

Olhem, entre as minhas raras qualidades não se encontram a coragem ou o desassombro. Mas diante daquela agressão verbal, pior, mais que verbal, diria, pela promessa que encerrava e cerrava, com c ou com s, a democracia, na hora me subiu uma onda que não pude segurar, um calor, um sangue quente veio, e respondi ao fascistão:

- Marque a minha cara, que eu marco a sua – disse-lhe com os dedos da mão direita em V sobre os meus olhos. – Marque a minha, que eu marco a sua. Mas vamos prum combate aberto, franco. Não de modo covarde, não na maior covardia, como vocês fizeram – e neste ponto eu lhe apontava o dedo, que eu desejava fosse um soco na sua carantonha criminosa – Não na covardia, como vocês fizeram com os presos políticos na ditadura. Vocês assassinaram pessoas algemadas, presas, desarmadas, sob torturas. 

Ao que o fascistão, réu confesso, sentindo-se identificado, saiu puxando a perna como um diabo coxo. Não sei, tive vontade de segui-lo, mesmo sabendo que entre nós a civilização estava morta, que palavras mais não se deviam pronunciar porque eram surdas e absurdas. Um companheiro que ainda não sei quem é, se acercou de mim e me tocando o ombro procurava me pôr de volta à sensatez:

- O que é que tá acontecendo com você? Relaxe, amigo.

A pressão estava alta e desnorteada, e eu não soube como reagir de modo mais sereno.

Contei isso agora porque uma ameaça maior veio na movimentação no dia 15, em São Paulo. A ótima coluna Notas Vermelhas já havia chamado a atenção para o vídeo que  “mostra manifestantes idolatrando o famigerado torturador e assassino Carlinhos Metralha, agente do DOPs que aparece orgulhoso de sua ‘atuação’ durante a ditadura e cercado por ‘admiradores’ ”.

Carlinhos Metralha, o cara que foi sócio do cabo Anselmo nos 6 assassinatos do Recife em 1973, aparece na passeata paulista como herói. Os caras não estão folgados. Estão mais que isso, estão livres, soltos e ameaçadores. Olhem o vídeo onde ele aparece com a cara obscena

https://www.facebook.com/video.php?v=10152760919021238&fref=nf ou aqui

https://www.youtube.com/watch?v=ebzEbjflXkM

No vídeo, ele mostra um cartaz onde se lê: “Quero ser ouvido pela “Comissão da Verdade”. Mas notem que o corajoso delegado Carlos Alberto Augusto, ou Carlinhos Metralha, herói dos coxinhas de São Paulo, foi convocado, no fim de 2013, para um depoimento na Comissão da Verdade de Pernambuco, e não quis vir. Por excesso de valentia, digamos.  Mas no vídeo, ele faz declarações orgulhosas dos seus crimes:

“Carlinhos Metralha foi o apelido que os comunistas me deram, porque me respeitam até hoje. Já andei infiltrado na organização terrorista VPR, conheci pessoalmente alguns desses delinquentes que estão aí, não metralhei porque não tive essa oportunidade. Se eu tivesse, faria com o maior prazer”. Mais adiante, aparece marchando com um velho. Impune. Os pés que ele bate ritmado no chão pisam sobre os democratas e o sangue de brasileiros assassinados pela ditadura.   A isso, a militante comunista Mara Loguercio respondeu por email:

“Isto já é provocação. Caberia, no mínimo, ao meu juízo uma ‘notitia criminis’. O cara dizer que não metralhou nenhum de nós porque não teve oportunidade, embora tenha participado do assassinato de vários, mas que se tivesse (a oportunidade) o faria com prazer, se isto não é crime eu jogo todo o material de estudo e prática de advocacia e magistratura no lixo!!!!

Se mais alguém topar a ideia, eu penso que nos caberia. Ou no mínimo, uma interpelação judicial ou uma representação para o Conselho do Ministério Público ou até para a Comissão da Anistia.

Não dá é para ficar inerte diante disto. Isso é mais do que passividade, passa a ser cumplicidade da nossa parte. É minha visão”.

É a nossa visão também. Porque em outro vídeo, a extrema-direita fala em gravação para pegar em armas, assassinar Dilma e seguidores:  

https://www.youtube.com/watch?v=lsB875X-0KA

Trata-se do ex-comandante da Policia Militar de Goiás, olhem só, ex-comandante de uma policia militar, o coronel Pacheco. No vídeo ele insulta a presidenta Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, além de ameaçar “pegar em armas” para destituir do poder o atual governo federal – eleito através do voto.

Exaltado, Pacheco chama Dilma de “chefe de quadrilha” e o ex-presidente Lula de “ladrão”. Ele diz, ainda, que não tem medo dos “guerrilheiros” da petista. Diz o fascistão, pago com o dinheiro de todos nós, civis, intelectuais e povo desarmados:

“Quero dizer pra você Dilma, pra você Lula ladrão, que eu não tenho medo dos seus guerrilheiros, e tenho certeza que as centenas de milhares de policiais militares dos diversos Estados desse País também estão prontos para ir para a luta armada para defender esse País”. E mais:

“Nós policiais militares da reserva, não aceitamos mais ser roubados e ainda por cima, agora, ser ameaçados e oprimidos. Nós vamos defender a nossa sociedade e estamos prontos para qualquer convocação, seja oficial ou não, para lutar contra os seus guerrilheiros”, completou Camilo, que informou ser coronel da reserva remunerada há três anos.

Observo que nunca é demais lembrar que, de um ponto de vista legal, a Constituição Federal em seu artigo Artigo 5º :

“XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

 XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;”

E então? Vamos continuar à mercê dos criminosos e torturadores, que mal satisfeitos com a impunidade dos seus crimes, nos ameaçam agora com novos assassinatos, a nós, que fazemos parte da civilização e da humanidade brasileira? É claro que deveremos reagir com medidas legais e com movimentos de opinião pública, com uma política de reassentamento da democracia real. Para que se levem a sério as novas ameaças dos fascistas.

Ou iremos todos para o suplício como novos cordeiros para o sacrifício final. Em um novo silêncio dos democratas, que não viram a tempo a aberração da existência desses velhinhos dos quarteis.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.




O ovo


* Por Eduardo Oliveira Freire


Vocês não estão vendo, como assim? Está diante de seus olhos e ninguém faz nada? Por quê? Cometem um crime horrível e ninguém percebe! Como são cruéis! A violência é atávica em vocês!

Gente, esse ovo cozido é vida! É origem de tudo e vocês querem comê-lo. Não ouvem o pranto do ovo, ele chora por dentro. Deixem o ovo viver com sua ancestralidade.

Como podem ser tão irresponsáveis! Graças a Deus, eu me alimento de luz! Sou um ser especial, que não mata um ovo para satisfazer meus impulsos mais primitivos.

O ovo é universo! Ele é mais que vocês todos juntos! O ovo é Deus! Queria ter um ovo mítico em Brasília ao invés de políticos.

O ovo com sua brancura ilumina a escuridão do caos. Não veem isso? Não adianta chamar a polícia! Não deixarei que toquem em sua divindade.

Ele é tudo-nada e nada-tudo. Senhor! Perdoe essas pessoas que não sabem o que fazem. São bestas famintas que, mesmo ao comer o ovo, nunca encontrarão sua inteireza.


* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural e aspirante a escritor - http://cronicas-ideias.blogspot.com.br/