domingo, 31 de dezembro de 2017

Literário: Um blog que pensa


(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)


LINHA DO TEMPO: Onze anos, nove meses e três dias de existência.


Leia nesta edição:
Editorial – Metáforas e outros recursos.

Coluna Ladeira da Memória – Pedro J. Bondaczuk, crônica, “Futuro oculto”..

Coluna Direto do Arquivo – Anna Lee, crônica, “Um susto diante de si mesmo”.

Coluna Clássicos – Stanislaw Ponte Preta, conto, “O diário de Muzema”.

Coluna Porta Aberta – José Ribamar Bessa Freirei, artigo, “A indulgência de Natal: ata da assembleia dos bichos”.

Coluna Porta Aberta – João Alexandre Sartorelli, poema, “Smartphone”.


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Livros que recomendo:

Poestiagem – Poesia e metafísica em Wilbett Oliveira” (Fortuna crítica) – Organizado por Abrahão Costa Andrade, com ensaios de Ester Abreu Vieira de Oliveira, Geyme Lechmer Manes, Joel Cardoso, Joelson Souza, Levinélia Barbosa, Karina de Rezende T. Fleury, Pedro J. Bondaczuk e Rodrigo da Costa Araújo – Contato: opcaoeditora@gmail.com

Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com

A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com

Boneca de pano” - Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com

Águas de presságio”Sarah de Oliveira Passarella – Contato: contato@hortograph.com.br

Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.

A sétima caverna”Harry Wiese – Contato: wiese@ibnet.com.br

Rosa Amarela”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br

Acariciando esperanças”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br

Cronos e Narciso” – Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br

Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br





Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação. 
Metáforas e outros recursos


O ser humano, incrível animal que ama, odeia, chora, ri e... pensa, gerou (e continua gerando) tamanha quantidade de ideias, que as palavras, em todos os idiomas que existem, se tornaram insuficientes para que fossem (e sejam) expressadas com pureza e com clareza. Teve, pois, (e ainda tem) que recorrer a outros recursos, quer gráficos, quer sonoros, quer audiovisuais ou quer, até mesmo, semânticos. Neste último caso, vale-se de metáforas. As línguas, dinâmicas como são, estão em perpétua metamorfose. Gestam, a todo o momento, novas palavras, assim como abortam sucessivamente outras, que caíram em desuso, num processo que não tem fim. Há quem abuse, todavia, da criação de neologismos, por absoluta ignorância, por desconhecer palavras que dizem exatamente o que quer dizer e que, por isso, cria novas, e se sente “genial” por isso.

Sou contrário, no entanto, a esse procedimento. Não se deve criar neologismos, quando forem desnecessários. Boa parte dos que são criados é dispensável se atentarmos bem. Defendo, por outro lado, a utilização correta das palavras que já existem no nosso idioma, e de forma clara, objetiva e oportuna. Vou mais longe: sou a favor que sejam utilizadas, sempre, aquelas mais conhecidas pela população (diria que são umas duas mil, se tanto).

Tenho sempre em vista que escrever é um ato de comunicação, e mais complexo do que pode parecer aos desavisados. Mas para nos comunicarmos bem, temos, sobretudo, que ser entendidos por “todos”. Se alguém não entender alguma coisa que escrevermos, por causa de uma eventual mania de esbanjar erudição, fracassaremos rotundamente em nosso texto, por mais sonoro e bem-arranjado que nos pareça. A boa comunicação dispensa pirotecnia verbal. Tem, como condição essencial, o entendimento por parte de quem lê.

Roman Jakobson, um dos maiores comunicadores do século passado, se vivo, concordaria comigo. Afinal, foi ele que declarou, certa feita: “ Prefiro evitar hoje termos novos em excesso. Por acaso, eu que já criei inúmeros neologismos, livrei-me dessa doença terminológica”. Da minha parte, estou tentando, também, me livrar dessa mania.

Mas há ocasiões em que as ideias que se quer expressar são tão complexas, que não há palavras em nosso dicionário que as definam com exatidão. O que fazer então em nome da clareza? Deixar para lá e fazer de conta que não se pensou aquilo? Recorrer a expressões emprestadas de outras línguas, como o francês e o inglês? Age-se muito dessa maneira e os galicismos e anglicismos, mesmo encarados pelos puristas como erros de estilo, com o tempo e o uso findam por se incorporar ao nosso léxico.

E quando a ideia é tão complexa que nem em outros idiomas existe expressão que a expresse com precisão e clareza? Nessas circunstâncias, “empreste-se” um recurso característico da poesia, que muitos utilizam em prosa, sem nenhuma necessidade: a metáfora. O filósofo alemão, de etnia judia, Ernst Cassirer, criador de uma “teoria dos símbolos” para definir cultura, justifica assim o uso desse recurso, notadamente poético (embora não exclusivo): “O homem, quisesse ou não, foi forçado a falar metaforicamente, e isto não porque não lhe fosse possível frear sua fantasia poética, mas antes porque devia esforçar-se ao máximo para dar expressão adequada às necessidades sempre crescentes de seu espírito. Portanto, por metáfora não mais se deve entender simplesmente a atividade deliberada de um poeta, a transposição consciente de uma palavra que passa de um objeto a outro”. Concordo com Cassirer.

Aliás, há tempos isso vem ocorrendo. Por exemplo, afirmar que o coração é a sede e a origem dos sentimentos e emoções é, até certo ponto, metafórico. Ainda se fosse o fígado... haveria alguma lógica, embora literalmente se trate de equívoco. Até uma criança razoavelmente informada sabe que quem comanda nossos sentimentos e pensamentos é o cérebro. Nele está a sede do amor, do ódio, da esperança, da fé, da amizade e vai por aí afora.

O coração é importante, sim, (como ademais qualquer outro órgão do nosso corpo), pois tem a tarefa de bombear sangue, ininterruptamente, para todo o organismo, levando oxigênio e nutrientes para toda a parte e conduzindo gás carbônico para os pulmões, de onde é eliminado, como no processo (falando metaforicamente) de um escapamento de automóvel. Mas sempre que se quer expressar atração irresistível por uma pessoa, por exemplo, costuma-se dizer que o “coração tem amor por ela”. Óbvio que não tem. Quem tem é o cérebro. Quando se sofre uma frustração amorosa qualquer, dizemos estamos com “o coração partido”. Mas se alguém estiver nessa condição (literalmente)... é bom já ir providenciando o seu enterro.

Sobre a preponderância do fígado sobre o coração, encontrei este delicioso texto do poeta Pablo Neruda (que também não deixa de ser, por seu turno, metafórico) : “Enquanto o coração bate e atrai a partitura da mandolina, lá dentro filtras e repartes, separas e divides, multiplicas e engraxas, sobes e recolhes os fios e as gramas da vida, os últimos licores, as íntimas essências. Víscera submarina, medidor de sangue, vives cheio de mãos e olhos, medindo e transvasando em tua escondida câmara de alquimista. Amarelo é o teu sistema de hidrografia rubra, feiticeiro da mais perigosa profundidade do homem, ali escondido, sempre sempiterno, na usina, silencioso. E todo sentimento ou estímulo cresceu em tua maquinaria, recebeu alguma gota de tua elaboração infatigável, ao amor acrescentaste fogo ou melancolia; uma pequena célula equivocada ou uma fibra em teu trabalho, e o aviador se equivoca de céu, o tenor se precipita num silvo, ao astrônomo escapa um planeta”.

Na verdade, para ser honesto com você, paciente leitor, devo confessar que cheguei a esse texto por tabela. Não o encontrei diretamente em nenhum livro de Neruda como possa ter ficado implícito , mas transcrito por outro grande poeta (este, brasileiro, aliás mineiro), Paulo Mendes Campos, que fez essa citação na crônica intitulada “Bom humor”, publicada na coluna que assinou por muitos anos na Revista Manchete, da Editora Bloch, neste caso uma de 1966. Ficou claro? Espero ter dado com competência meu recado de hoje.

Boa leitura!

O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Futuro oculto

* Por Pedro J. Bondaczuk

O futuro está na iminência de, mais uma vez, metamorfosear-se bem diante de nossos olhos. Vai se tornar, numa fração de tempo tão ínfima que não pode sequer ser mensurada, presente e, sem aviso ou delongas, em seguida, se consolidar em caudaloso e infinito passado. Em poucas horas, mais um ano ficará na lembrança, com o surgimento de um novo a nos desafiar a preenchê-lo de alegrias, sucessos e felicidade.

Essa é, pois, excelente oportunidade para “filosofarmos”. Não, claro, com aquela filosofia dos jargões complicados e das variadas escolas, teorias exóticas e conceitos vagos e nebulosos, incompreensíveis à maioria. Mas com a simples, a ditada pela observação criteriosa dos fatos e madura reflexão sobre suas origens e consequências. Momento algum é mais apropriado para esse exercício racional do que o da passagem de um ano para outro. Ou seja, agora.

Não há quem não se ocupe, de uma forma ou outra, com o futuro. Essa preocupação, desde que moderada, é saudável e desejável. Contudo, é preciso ter em mente que o futuro não passa de abstração, de mero potencial, de simples vir a ser. Pode se concretizar rapidamente, transformando-se, em infinitésimos de segundo, no presente, como dissemos, ou pode nunca acontecer, em decorrência da nossa mortalidade. Sua matéria-prima, portanto, são os sonhos, as esperanças, as projeções da mente e da imaginação. A realidade é o momento presente, curtíssimo, mais rápido do que um piscar de olhos. E é, principalmente, o passado que, reitero, é caudaloso e extenso.

Há pessoas que garantem pensar no futuro – que nem sabem se terão (ninguém jamais sabe) – mas se esquecem das tarefas mais comezinhas, das obrigações mais simples do dia a dia. Descuidam de tudo: das finanças, dos amores, dos relacionamentos e até da saúde. Concentram-se, apenas, num eterno “amanhã”, que para elas nunca chega.

Trata-se, porém, de grave equívoco. Quem age dessa maneira, arruína a vida, sem sequer se dar conta. Compete-nos viver, da melhor maneira possível, um dia por vez, como se este viesse a ser o último. É a única forma honesta, sábia e eficaz de construir o futuro.

Encaramos esse porvir de formas diferentes, conforme nossa personalidade, formação ou circunstâncias. Para uns, ele é nebuloso e assustador. Para outros, é indiferente, por saberem que é desconhecido. Há, no entanto, os que o aguardam com confiança e gratidão, mesmo sem ter a mínima noção do que ele lhes reserva. Veem, nele, sem-número de oportunidades e se preparam para aproveitar cada uma delas.

Claro que essa postura não é garantia para o sucesso. Ninguém tem certeza de como será seu amanhã, se feliz ou tormentoso. O que importa é a postura. Uma atitude de confiança valoriza e multiplica as eventuais alegrias que o porvir nos reserva e previne e atenua as tristezas e sofrimentos.

O futuro é o que ainda não existe, certo? Errado! Nem sempre é assim. Não, pelo menos, em relação ao segundo seguinte ao que estamos vivendo. É consequência do que fizemos no passado e do que estivermos fazendo agora. Não surge, como por encanto, do nada.

Nosso futuro estamos construindo a cada momento, mediante atos, empenho e predisposição do espírito. Se perdermos tempo com temores exacerbados, inúteis lamentações e manifestações de pessimismo e mau humor, quando ele chegar, num piscar de olhos, será estéril, sem que tenhamos feito nada de útil e proveitoso para nós e para a espécie. O que você terá, pois, no futuro imediato, será consequência do que estiver elaborando agora, neste preciso instante.

A maneira de encarar esse tempo potencial, tanto do otimista, quanto do pessimista, é bastante parecida. Varia, apenas, de intensidade. O primeiro, por exemplo, tem “certeza” de que ele virá, e será brilhante e feliz, muito melhor que o presente. Já o segundo, manifesta, apenas, “esperança” que venha a ser assim.

Mas a mera preocupação com o futuro, mesmo que com otimismo, mas sem prévia ação, no sentido de construí-lo, achando que as coisas irão se concretizar por si sós, à nossa revelia, é uma estupidez sem tamanho. Se quisermos que nossos projetos se concretizem (e isso se os tivermos), reitero quantas vezes for necessário, temos que agir nesse sentido.

Precisamos estudar, trabalhar e nos preparar com método, organização e aplicação, dia a dia, anos a fio. Ainda assim, não há a menor certeza de sucesso (nunca há e para ninguém). Repito, pela milésima vez, o que já escrevi em inúmeras ocasiões: não temos sequer certeza de que amanheceremos vivos amanhã, quanto mais sobre os resultados dos nossos esforços num remoto e nebuloso futuro.

Todavia, se nos prepararmos adequadamente, se aprendermos todo o conhecimento a que tivermos acesso, nossas possibilidades de sucesso crescerão exponencialmente. O tão aguardado ou temido porvir será, pelo menos potencialmente, viável. Afinal, como constatou o filósofo inglês, Francis Bacon, “o futuro do homem está oculto em seu saber”. E, tenha certeza, pelo menos em termos potenciais, de fato, está. Portanto, caro leitor, feliz “metamorfose do futuro”! Feliz alma nova!


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk



Um susto diante de si mesmo


* Por Anna Lee


Era final de março, começo de abril, e chovia muito quando Gilberto desembarcou no cais, depois de o Jacuípe da Companhia Pernambucana ter lutado desesperadamente com as ondas bravas do Lamarão. Teria ficado perdido no meio do temporal se um carregador de malas não o tivesse praticamente empurrado por uma porta, que estava entreaberta:
- O senhor fica aqui até a chuva abrandar. Mais tarde, venho buscá-lo.

Gilberto só teve tempo de olhar para a tabuleta que informava: Hotel de França. E entrou.

A sala principal estava vazia. De um outro cômodo vinha uma voz de mulher num sotaque francês carregado. Ela falava alto e sem parar. Mas não o suficiente para interferir no transe em que o rapaz caíra ao se deparar com os enormes espelhos que desciam ao longo das paredes até o chão e cobriam quase toda a recepção. Espelhos que Gilberto só tinha conhecimento pelas descrições de romances.

Em Sergipe, nunca vira nada igual. Nem se enfileirasse todos os espelhos que havia em Aracaju, no litoral e no sertão, e também nas cidades velhas, jamais conseguiria reproduzir o que estava vendo. Na Bahia, onde estivera durante dois anos, tampouco encontrara coisa igual. Se bem que lá só morara em repúblicas. No máximo, frequentara casas de professores, jamais lugares de luxo.

A dona do hotel apareceu e disse:
- Bom dia, senhorrrr!, escancarando a porta por onde Gilberto entrara e uma outra também.

Um clarão invadiu a sala. A luz derramou-se nos espelhos de modo que ele pôde se ver não só de frente como de lado, multiplicado e ao mesmo tempo dividido em formas e pedaços mil. O que antes era deslumbramento agora era um espetáculo hipnotizador. Ele não respondeu ao cumprimento. A mulher, num gesto de compreensão, retirou-se.

Gilberto não tirava os olhos de si mesmo. Pela primeira vez, se via de corpo inteiro. Até então, só tinha se olhado em espelho pequeno, de parede, ou pequeníssimo, de bolso, que reproduzia apenas o rosto, quando muito, gravata e pescoço. Jamais assim... todo, paletó, calças, sapatos. Teve um choque.

Naquele exato momento tomou conhecimento da sua fealdade. Uma fealdade que o fez recuar. Era “aquilo”?! A cabeça, grossa e pesada, enterrava-se nos ombros, formando com o torso empinado um ângulo agudo. A queixada aproava num arremesso antipático. Surgia ali a inimizade pelo próprio físico, que carregou durante o resto da vida. Desde então, era ver-se diante de um espelho grande, sobretudo de perfil, para experimentar uma sensação brusca, quase um susto diante de si mesmo.

  • Trecho de O Sorriso da Sociedade.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.




O diário de Muzema


* Por Stanislaw Ponte Preta


MUZEMA É UM bairrozinho pequeno e pacato, ali pelas bandas da Barra da Tijuca. Pertence à jurisdição da 32ª Delegacia Distrital e nunca dá bronca. Ou melhor, minto… não dava bronca porque esta que deu agora foi fogo. Diz que o delegado da 32ª estava em sua mesa de soneca tirando uma pestana, feliz com o sossego, quando um bando de perto de 200 pessoas invadiu a delegacia, carregando no ar um coitado, baixote e magrinho, com a cara mais amassada que pára-choque de ônibus de subúrbio. E a turba fazia um barulho de acordar prontidão. O delegado, que era o Levi, deu um pulo da cadeira e berrou:
Chamem a Polícia!!! mas aí percebeu que ele mesmo é que era a Polícia e perguntou que diabo era aquilo. Logo todo mundo começou a berrar ao mesmo tempo, o que obrigou o Dr. Levi a berrar mais alto ainda, ordenando:
Um de cada vez, pombas! Aí um dos que carregavam o pequenino, ordenou que os companheiros pusessem “aquele rato” no chão (a expressão é lá do cara) e começou a explicar:
Nós somos moradores do bairro de Muzema, doutor Delegado.
Sim. E esse pequenino aí?
Pois é, doutor. Nós somos todos de lá e esse cretino aí também é. Imagine o senhor que ele tem um caderno grosso, que ele chama de “Meu Diário”, onde escreve as maiores sujeiras sobre a gente.
Como é que é? estranhou o delegado. Começou todo mundo a berrar outra vez e, enquanto um guarda dava um copo de água para o diarista arrebentado, o delegado viu-se outra vez a berrar mais alto:
Calem-se! Um só de cada vez! Foi aí que deram a palavra pro dono do caderno:
É o seguinte, doutor: eu tenho um diário. Ando muito lá pela Muzema e ninguém nunca repara em mim. Assim eu posso ver o que os outros fazem sem ser importunado. Mas acontece que eu não sou fofoqueiro. Eu vejo cada coisa de arrepiar. Ainda ontem eu vi a mulher daquele ali (e apontou para um sujeito do grupo) num escurinho da praça, abraçada com aquele lá (e apontou um outro sujeito no canto da delegacia, que, ao ser apontado, encolheu-se todo). Esta informação bastou para que o assinalado marido partisse pra cima do encolhido e o tumulto se generalizasse. Coitado do delegado, já estava quase rouco, quando conseguiu reimplantar a ordem na 32a DD.
Prossiga! Disse pro pequenino. O pequenino pigarreou e prosseguiu:
Como eu dizia, eu tenho o meu diário e anoto nele tudo que vejo. Não faço fofoca com ninguém. Tudo que está escrito é verídico.
Como é o seu nome? Onde você mora?
Edson Soares. Moro lá mesmo na Muzema. Lote “A”, casa 18. O Delegado Levi pediu o diário e folheou algumas páginas. Havia coisas mais ou menos assim, escritas nele. “Dona Jurema, do lote “B”, casa 75, estava saindo de madrugada da casa 67 do mesmo lote, onde mora o Sebastião, que tem um cacho com ela há muito tempo”. Ou então: “Lilico continua fingindo que é noivo da filha de Dona Júlia, mas se aquilo é noivado eu sou girafa. Como eles mandam brasa, atrás do muro da casa dela”. O Delegado Levi tossiu, embaraçado, e quis saber como é que os personagens daquele diário tinham descoberto o que estava escrito ali. O pequenino foi sincero:
Eu dei azar, doutor. Eu esqueci o diário num banco da pracinha e fui jantar. Quando eu voltei estava todo mundo em volta desse garoto aí (e apontou um garoto sorridente, que se divertia com o bafafá), e o miserável do garoto lendo em voz alta:”… o seu Osooo… Osório. Não: Osório. O seu Osório quando sai pra o trai… tralba… para o trabalho, devia levar a muuu… a mulher dele. Ela é muito assada… assada não… muito assanhada”.
Eu achei o diário dele falou o garoto, mas calou-se logo ao levar um cascudo de um gordão que devia ser, na certa, o seu Osório. Já ia saindo onda outra vez. O pessoal do bairro pacato estava mesmo disposto a beber o sangue de Edson Soares, o historiador da localidade. Sanada, todavia, mais esta tentativa o Delegado Levi perguntou ao dono do diário:
O senhor também é poeta?
Mais ou menos, né?
Eu pergunto esclareceu o delegado porque este versinho aqui está interessante, e leu no diário:

Para o José Azevedo
O futebol não cola
Pois se for cabecear
Na certa ele fura a bola”.

Pimba… mais uma bolacha premiou a cara do poeta. Ninguém conseguia segurar José Azevedo, residente na Muzema, Lote “J”, casa 77. O pau roncou solto e só quando chegou reforço é que o delegado conseguiu botar em cana uns quatro ou cinco, inclusive o biógrafo muzemense. O resto mandou embora, aconselhando:
Vocês vejam se não dão margem ao artista de se expandir tanto, em seu futuro diário, tá? O pessoal prometeu.


* Pseudônimo do jornalista, escritor, humorista e produtor Sérgio Porto.
A indulgência de Natal: ata da assembleia dos bichos



* Por José Ribamar Bessa Freire



Aos trinta dias do mês de dezembro do ano de dois mil e dezessete, reuniu-se, às catorze horas, na clareira desmatada da floresta amazônica, a Assembleia Geral dos Bichos (AGB), presentes aqueles cujas assinaturas constam na Folha de Presença. 

Vários bichos justificaram ausência, em função de dificuldades de deslocamento: o Cabra Cabral, o Porco, a Ave de Rapina, o Chimpanzé Perrela e Salim - o Tigre de Bengala.

O Chacal, presidente da AGB, deu o informe que antecedeu ao único ponto da Ordem do Dia: a indulgência de natal concedida a bichos que esfolaram, roubaram, receberam propinas, causando mortes e fome com o desvio de recursos da saúde e da educação.

O Chacal, revirando as patas dianteiras em permanente dancinha, informou aos presentes sobre a publicação no Diário Oficial da Floresta (DOF) do decreto do Indulto de Natal, de 22/12/17, que reduz a vinte por cento o tempo exigido de cumprimento da pena para o condenado indultado, perdoa o pagamento de multas relacionadas a crimes cometidos contra o Erário Público, liberta até mesmo os réus que estejam respondendo a outro processo ou cujos recursos ainda estão em andamento em instâncias judiciais.
- É assim que vamos estancar a sangria – aplaudiu a Raposa Felpuda.

O escaldado Gato Angorá, que tem medo de água fria da lava-jato e só permanece solto porque goza de “foro especial”, elogiou a parte referente ao perdão do pagamento de multas.
- Temos que manter isso, viu? – reafirmou o Chacal, pensando no seu futuro que ao Diabo pertence.

Manifestaram apoio ao decreto de indulto o Jacaré-na-lama, o Lobão Guará, o Asno Marun, o Zebra Xuxu, o Urubu Cabeça-de-Piroca e o Tucano Emplumado já indultado antecipadamente pelo Meritíssimo Hipopótamo Togado, membro do Supremo Tribunal da Floresta (STF).

O Flamingo Frederich, que veio lá da selva do Amapá, protestou, altaneiro, argumentando com sua voz inconfundível que o decreto era, na realidade, um auto indulto, em benefício do autor e de seus compinchas e que dessa forma estimulava a corrupção ao perdoar os criminosos de colarinho branco. Citou o caso do Tatu Argolo, que recebeu R$1,4 milhão do esquema de corrupção, condenado a 12 anos e 8 meses em 2015 e que já pode sair da prisão. Comunicou que vai recorrer à 3ª Vara Florestal em ação de anulação do decreto:
-  O Chacal legisla em causa própria – acusou o altivo Flamingo.

Instaurou-se acalorado debate na assembleia. O Capivara Jardim invocou “razões humanitárias” para justificar o indulto, o que provocou risadas generalizadas entre os presentes. A Onça Pintada estranhou que a palavra “corrupção” tenha sido banida do discurso oficial, que simplesmente finge ignorá-la, justamente no momento em que a floresta mergulha no seu mais alto grau de putrefação. Denunciou que nunca os autores do indulto de natal se preocuparam com a situação das mais de 700 mil feras pobres enjauladas na selva, vivendo como bichos em infectas penitenciárias de rios poluídos por esgotos.

O Chacal, sorridente, se apropriou da palavra para tranquilizar os presentes e afirmar que o indulto se espelha na indulgência concedida pela Igreja católica, destinada à remissão total ou parcial da pena temporal devida à justiça de Deus. Esse é o objetivo do indulto natalino: conceder indulgência ao pecador arrependido para reduzir penas severas e excessivas e evitar que depois de morto purgue suas penas no Purgatório. Em troca, o pecador retribuía com donativos piedosos, esmolas, jejuns, orações.
- Se até a Justiça Divina é indulgente, por que não sê-lo-íamos nós? – indagou o Chacal, benzendo-se e informando que indultaria os bichos que fizessem peregrinação ao Palácio do Jaburu no mesmo espírito do Papa Bonifácio VIII que no ano de 1300 concedeu indulgência extraordinária aos fiéis que efetuassem peregrinação à Roma e que rezassem certas orações como “Alma de Cristo, santificai-me, Corpo de Cristo, salvai-me, Sangue de Cristo, inebriai-me, Água do lado de Cristo, lavai-me”.

A Foca Jandira, vindo do mar, pediu aparte para condenar tal prática que incentivou a venda livre de indulgências plenárias por profissionais, com protesto na época de Martinho Lutero, o que levou o Concílio de Trento, em 1562, a tentar corrigir os abusos, sem sucesso.
- A medida não pode ser permissão para cometer pecado, nem o perdão do futuro pecado e nem pode ser concedida por qualquer mequetrefe. Um exemplo bíblico é o de Davi, culpado por homicídio e adultério, que mesmo depois de perdoado teve como pena a morte de seu filho. Por isso, o Papa Francisco, na Bula Misericordiae Vultus, estabeleceu que indulgência só pode ser concedida a quem demonstrar intenção de não cometer o mesmo pecado - disse a foca que é especialista em bulas de remédio por razões profissionais.

A Coruja entrou no debate, com firmeza, afirmando que o Chacal não é um papa da Idade Média e, portanto, “não tem poder ilimitado de conceder indulto. Se o tivesse, aniquilaria as condenações criminais, subordinaria o Poder Judiciário, restabeleceria o arbítrio e extinguiria os mais basilares princípios que constituem a República Constitucional Brasileira”. A Coruja disse que, por essa razão, acabara de ingressar com ação no Supremo Tribunal da Floresta questionando o indulto natalino que, se mantido, sepultaria a Constituição Florestal e aumentaria o descrédito da sociedade nas instituições.
- A sociedade perde. O infrator, o transgressor da norma penal, será o único beneficiado com o indulto. A possibilidade de livrar o detento do pagamento de multas relacionadas aos crimes cometidos é uma forma de renúncia de receita por parte do poder público. Se o decreto for mantido, será causa de impunidade de crimes graves e de estancar o combate à corrupção sistêmica – escreveu a corajosa Coruja.

A Carneira Benta, presidente do Supremo Tribunal da Floresta, concordou surpreendentemente com sua colega Coruja e ali mesmo, na assembleia, concedeu liminar suspendendo o decreto, sob o argumento de que “o indulto é um instrumento que beneficia aquele que, tendo cumprido parte do débito com a sociedade, obtenha o reconhecimento de que seu erro foi assumido e punido, sendo lhe dado nova chance para reparar esse erro”.
- Indulto não é nem pode ser instrumento de impunidade. Indulto não é prêmio ao criminoso, nem tolerância ao crime. Nem pode ser ato de benemerência ou complacência com o delito, mas perdão ao que, tendo-o praticado e por ele respondido em parte, pode voltar a reconciliar-se com a ordem jurídica – disse Benta Carneira.

Foi respaldada pelo relatório da ONG Transparência Internacional que aponta o estímulo à corrupção como uma das consequências desse tipo tendencioso de indulto. Nenhuma dessas mutretas constava da minuta original do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária da Floresta (CNPCPF), amplamente debatida, que buscava humanizar a situação dos presos. Apesar de encaminhada com antecedência ao Capivara Jardim, foi desconsiderada pelo Chacal, que oportunisticamente, perfidamente, acrescentou outros pontos para favorecer a corrupção.  
- Fi-lo porque que quilo – contra-atacou o Chacal, irredutível, confiante na apatia dos bichos.

A Assembleia decidiu remeter o assunto ao STF que vai apreciar o decreto em fevereiro de dois mil e dezoito, com o hipopótamo já afiando os cascos, esperando que os bichos da Floresta continuem apáticos, submissos e não saiam às ruas para apoiar quem teve útero para enfrentar o Chacal.

Nada mais havendo a tratar, o Chacal encerrou a reunião e eu, Macaco Prego, lavrei a presente ata que vai assinada só por mim, para não ser censurada. Aproveito a data para desejar Feliz Ano Novo ao desocupado leitor que chegou a ler esse textão, com votos de maior combatividade em 2018. Os que até aqui chegamos, não podemos perder a esperança de continuar a luta por uma floresta com árvores, plantas, flores, bichos vivendo em liberdade, rios limpos, bosques floridos, a diversidade respeitada e incentivada, Nesta luta, como cantou o poeta, “todas las armas son buenas: piedras, noches, poemas”.  

ADENDO: A Ata não registrou o discurso de uma convidada especial: a Lhama andina Supa, que deu informe sobre o indulto de natal concedido pelo presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski (PPK) ao ex-ditador Alberto Fujimori. Processado por corrupção, PPK - o Pepeka - para não sofrer impeachment trocou o indulto por votos de congressistas fujimoristas em seu favor. Fujimori cumpria condenação por ser autor direto do assassinato de 25 pessoas em 1991, incluindo crianças, e de ser responsável pela morte de outras 70 mil, além de estar envolvido em escândalos de corrupção, conforme videos que comprovam subornos realizados por Montesinos, o Rocha Loures de Fujimori. O indulto, considerado um "insulto" por ser uma moeda de troca, gerou protestos de milhares de manifestantes em todo o país: "o peruano não vai se acovardar, fora PPK". 


* Jornalista e historiador. 
Smartphone

* Por João Alexandre Sartorelli

A solidão é uma escarpa
Cravejada de umbigos.
A meu lado tu estavas
Mas não estavas comigo.

* Analista de Sistemas por profissão e poeta por vocação


sábado, 30 de dezembro de 2017

Literário: Um blog que pensa


(Espaço dedicado ao Jornalismo Literário e à Literatura)


LINHA DO TEMPO: Onze anos, nove meses e dois dias de criação.


Leia nesta edição:

Editorial – Material e ferramenta.

Coluna Direto do ArquivoAliene Coutinho, crônica, “Ano novo, vida nova...”.

Coluna ClássicosLuíz Fernando Veríssimo, crônica,Crônica de Ano Novo”.

Coluna Porta AbertaFlora Figueiredo, poema, “Voltem sempre”.

Coluna Porta Aberta – Sílvia Schmidt, poema, “Novo ano, novo dia, nova vida”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo – crônica, “Todos os blues”.

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Livros que recomendo:

Poestiagem – Poesia e metafísica em Wilbett Oliveira” (Fortuna crítica) – Organizado por Abrahão Costa Andrade, com ensaios de Ester Abreu Vieira de Oliveira, Geyme Lechmer Manes, Joel Cardoso, Joelson Souza, Levinélia Barbosa, Karina de Rezende T. Fleury, Pedro J. Bondaczuk e Rodrigo da Costa Araújo – Contato: opcaoeditora@gmail.com

Balbúrdia Literária”José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com

A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com

Boneca de pano” - Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com

Águas de presságio”Sarah de Oliveira Passarella – Contato: contato@hortograph.com.br

Um dia como outro qualquer”Fernando Yanmar Narciso.

A sétima caverna”Harry Wiese – Contato: wiese@ibnet.com.br

Rosa Amarela”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br

Acariciando esperanças”Francisco Fernandes de Araujo – Contato: contato@elo3digital.com.br

Cronos e Narciso” – Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br

Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br




Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.