quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – Dois gritos do silêncio.

Coluna De corpo e alma – Mara Narciso, crônica, “Morte e vida de rato”.

Coluna Da Terra do Sol – Marco Albertim, conto, “Quarta-feira de cinzas e a Gorda”.

Coluna Personalidade e Atitude – Sayonara Lino, poema “Desejo”.

Coluna Porta Aberta – Marleuza Machado, poema “Conteúdo trancado”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, conto “Sangue e Coca-Cola”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Dois gritos do silêncio

O genocídio, ocorrido na década de 70, no Camboja, praticado pelo Khmer Vermelho, liderado por Pol Pot – um dos, proporcionalmente, mais sangrentos, absurdos, abomináveis e injustificáveis (como toda matança, do tipo ou não, sempre é) – foi denunciado ao mundo, em toda sua miséria, horror e covardia, primeiramente pelo livro “Os Gritos do Silêncio”, de Christopher Hudson. Com base nessa obra pungente foi rodado um filme, do mesmo nome, que foi estrondoso sucesso de bilheteria e valeu vários Oscars aos que participaram dessa produção.

Ficou claro para mim, embora eu nunca tivesse dúvida a propósito, que o papel da Literatura em nossa vida é muito mais importante do que os desavisados pensam e propalam. Além de divertir, ensinar e informar, pode (e deve), entre outras coisas, servir como instrumento de denúncia e de revelação de atrocidades e intoleráveis violações dos mais sagrados (e que nunca deveriam ser violados) direitos humanos. Nem sempre a imprensa cumpre esse papel, e por diversas razões, entre as quais, não raro, está o temor de “incomodar” os poderosos, para não sofrer represálias.

Claro que estou convicto da importância e da grandeza do jornalismo. Caso não tivesse essa convicção, não seria jornalista. Mas sou e com muito orgulho. É a profissão que sempre encarei como muito mais do que mera atividade profissional, como forma de assegurar o meu sustento e o da minha família, mas como missão de vida. Há já quase meio século vivi (e ainda vivo), respirei, “comi” e me alimentei de jornalismo. Por isso mesmo, por vivê-lo tão intensamente, senti na carne as dificuldades para o seu exercício pleno, como deve ser de fato exercido. Tive que conviver com vetos a determinadas matérias, com imposições da chefia, com temas tabus que jamais deveriam existir e vai por aí afora. Já na literatura... Não encontrei tantas restrições.

O que abomino (e condeno, óbvio), não é, portanto, o jornalismo, mas certa forma distorcida, medrosa, omissa, quando não desonesta de exercê-lo, sem a necessária, rigorosa e indispensável isenção e sem que se restrinja, intransigentemente, à exatidão dos fatos, sem nada acrescentar, subtrair ou distorcer. Apesar de tudo isso, não posso negar que sem essa importante atividade, o mundo seria muito mais perigoso e insalubre do que já é. É aquela história, “ruim com o jornalismo parcial e mal exercido, pior sem nenhuma forma de jornalismo”.

O livro “Os gritos do silêncio”, de Christopher Hudson, tem, como principal personagem justamente um jornalista. É o norte-americano Sidney Schanberg, acompanhado de seu assistente cambojano, Dith Pran. Ambos arriscam as vidas para levar ao mundo notícias de uma guerra que os respectivos governos de seus países teimavam em negar, de forma cínica e deslavada, que estivesse em andamento. No início da narrativa, o Khmer Vermelho ainda não havia assumido o poder. Estava em andamento a intervenção norte-americana no Camboja, para tentar destruir a “Trilha Ho-Chi-Mihn”, utilizada pelo Vietnã do Norte para abastecer os guerrilheiros vietcongs no Vietnã do Sul.

O jornalista e seu assistente sequer tinham certeza se as informações que colhiam e transformavam em matérias seriam publicadas ou não. Afinal, em casos de guerra sempre entra em cena a censura, em nome de uma falácia chamada “segurança nacional”. As notícias são filtradas por censores que decidem, a seu alvitre, o que pode e o que não pode ser divulgado. Foi assim na Guerra do Vietnã. Repetiu-se nas duas campanhas no Iraque. E é dessa forma que se age no interminável conflito no Afeganistão, a despeito de tantas e tantas negativas a propósito.

Portanto, neste caso (e em tantos e tantos outros), o “vilão” da história não é o jornalista. Ele não tenta esconder o que está acontecendo, muito pelo contrário. Mas o repórter, o fotógrafo, o editor etc. não são donos de jornais. São empregados de uma empresa. Têm que cumprir ordens superiores. E estas nem sempre são de sorte a atender a um interesse maior, o dos cidadãos, que têm no veículo sua fonte de informação que esperam (e crêem) seja rigorosamente segura e confiável. Nem sempre lhes cabe, portanto, o poder de decisão sobre o que pode ou o que não pode ser publicado e, principalmente, sobre o que de fato é.

Claro que não irei revelar o conteúdo do livro (nunca revelo quando comento uma obra), para não dar desculpas a ninguém de não lê-lo. “Os gritos do silêncio” vale a pena ser lido. Quanto ao filme do mesmo nome, abordarei numa próxima oportunidade.

Acrescento, porém até para dar coerência a estas reflexões, que tão logo o Khmer Vermelho assumiu o poder, ajudado por tropas norte-vietnamitas, Sidney Schanberg conseguiu escapar ileso de Pnhom Pehn, a capital do Camboja. Todavia, seu assistente cambojano, Dith Pran, não teve a mesma sorte.

O livro de Hudson trata, justamente, da saga do jornalista na tentativa de encontrar e de resgatar vivo seu companheiro. E, claro, a luta deste para manter-se ileso, em meio a tantas perseguições, torturas, execuções sumárias e outras tantas atrocidades, cujos resultados podem ser comprovados em uma simples visita ao “Museu do Crime Tuol Spleng”, no centro da capital cambojana. Quem assistiu o filme, sabe se Pran conseguiu ou não escapar ileso daquele inferno. Quem não o viu... recomendo que leia o livro, que é sensacional!

Boa leitura.

O Editor.




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Morte e vida de rato

** Por Mara Narciso


O seu Januário não sai mais só. Os filhos guiam seus passos nas suas precisões. De andar inseguro e trôpego, está lúcido, porém, os olhos embaçados vagueiam perdidos, mostrando não se interessar sobre o que falam a seu respeito, suas doenças e remédios. Como o seu andar, aos 85 anos seus dias rastejam preguiçosos. Não há nada a fazer ou a esperar. Não acontece nada. Os dias são miseravelmente iguais. É invisível para os demais, que o ignoram. Quando balbucia, num esforço, não o deixam falar, e se consegue dizer algo, sua opinião é desconsiderada.
Lavrador de profissão trabalhou debaixo do sol fervente do norte de Minas durante seis décadas. Agora as pernas e a memória o traem. A mente ordena gestos e ações, mas o corpo titubeia, o pulmão resfolega, e o movimento é hesitante. Os filhos mostram os papéis, os exames, as receitas. A lentidão é a sua doença. Responsabilidade do tempo que já deteriorou todo o sistema.
Viúvo de semblante apático, há dez anos parece triste, - ou seria indiferença? O único gosto que tem é fumar seu cigarrinho de fumo de rolo. O forte odor acre-doce exalado do seu corpo acusa essa verdade. Nem ele e nem ninguém acha importante largar o vício. Então fica como está. A esposa morta bebia cachaça. Quando estava sob efeito etílico dizia que ia se matar. Na casa da fazenda, de vez em quando se viam ratos cruzando a sala, e rápidos riscavam de um quarto ao outro. O veneno chamado “chumbinho”**era espalhado por lá. Os roedores davam sossego por um tempo. E foi assim, até a velha senhora, alcoolizada, ingerir o veneno e se auto-exterminar. Seu Januário enviuvou-se e entristeceu para sempre. Também foi definitiva a sua melancolia. Murchou o quanto conseguiu no peso e no rosto, que ficou chupado. As roupas dançam na sua silhueta caquética. Desde então, pouco falante, emudeceu. Passa o tempo em casa, amuado num canto, escondido nas sombras do quarto escuro. Vida de rato, sem a agilidade deste.
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A chamada adolescência é tempo efervescente de escola, festa, música e alegria. As primeiras paixões acontecem, o desbravamento do mundo desconhecido tem muito de mágica, de sonho, de idealização. Costuma ser a melhor parte de vida de meninos e meninas. Isadora, aos 14 anos, também teve seus sonhos. De família pobre, sonhava com uma oportunidade de ganhar dinheiro, mudar de vida, de cidade, ir para longe viver outra realidade. Precisava de apoio para estudar e se empregar. Eram duas irmãs. Isabella era a outra menina. Tinha oito anos. A mais velha irritava-se com as proibições da mãe, que implicava com seus namoros. Dava conselhos e vinha aquela falação que as mães têm. Repetem até as filhas decorarem. Quanto mais falam, menos são obedecidas.
A menina não aceitava o sermão e escapulia dos olhos dela, indo namorar do outro lado da cidade. Foi descoberta e uma vez levou uns tapas. As ameaças foram sérias, mas no outro dia lá estava Isadora, naquele namoro chegado, como era costume de se dizer quando o sexo estava prestes a se consumar.
A próxima etapa estava anunciada. A gravidez aconteceu e a criança nasceu quando Isadora fez 15 anos. Ela não gostou do parto. Fácil não foi. Depois, sendo ainda quase uma criança, foi obrigada a cuidar da outra. Mesmo com a ajuda da mãe, desesperava-se por ter de lavar a própria roupa e a do neném. Além de dar o peito de instante a instante, noite e dia. Tentou voltar às aulas, mas um dia, ao chegar da escola, achou o filho chorando aos berros no berço. Estava só. Achou estranho. Correu ao outro quarto e encontrou a mãe morta no chão. Ao lado do corpo estavam alguns granulados de “chumbinho”. Nenhuma palavra de despedida. O motor do suicídio poderiam ter sido ciúmes incontroláveis. A mulher contava 35 anos. Deixou as filhas com 15 e 9 anos, um neto de colo e o viúvo com 36 anos. Vida ruim para os quatro sobreviventes. Vida de ratos?

*O carbamato Aldicarb é substância agrotóxica e praguicida, cujo nome comercial é Temik150® e popularizou-se como raticida. Usado em tentativa de suicídio, mostra 50% de êxito por insuficiência respiratória.

**Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”-






Quarta-feira feira de cinzas e a Gorda

* Por Marco Albertim

No meio da Ladeira da Misericórdia, ela olhou para trás; apoiou-se na parede de uma das casas, sentindo falta de um corrimão. Da altura, ajuizou com precisão o ralo vaivém nos Quatro Cantos. Apreciara, nos quatro dias, a carneação pagã de moços imberbes, gays e lésbicas nutrindo-se na alforria própria. Ouviu um acorde de frevo, som vivo, sem cedência aos agouros do último dia. Deu-se conta da alegria fugidia, e moveu-se para frente. Passos pesados, medidos. Vestira bermuda de seda grossa, de um azul ralo, com furos invisíveis, filtrando a escassez do vento; blusa da mesma cor, mesmo algodão.
O Bacalhau do Batata acampara com estridência, no largo do Alto da Sé. Quis apressar os passos; não cruzaria as pernas feito um brincante fogoso, mas sacudiria os braços dando azo ao bulício do juízo. Nas calçadas, alívio, mas os degraus entre uma e outra de cada casa, um calvário. Em frente à Igreja da Misericórdia, sentou-se na balaustrada; as costas se refrescaram no vento soprado do sudeste. Tirou proveito das minúcias do barroco da igreja; nunca reparara na conversa muda entre as curvas das portas e janelas e o passeio das nuvens.
Súbito, só o vento assobiou nos seus ouvidos. O Bacalhau do Batata emudecera, surdos e clarins mudos! Levantou-se; as pernas endureceram, os passos sem temer a ingremidade do chão. Em frente ao elevador da Sé, viu Natalício; tão bojudo quanto ela, inda que com as pernas finas. Ainda com a blusa florida, o chapéu em forma de cone, cumprimentou-a com alegria curta.
- Gorda! Chegou adiantada para a Quaresma e atrasada para o Bacalhau.
A ladeira cavoucara o estômago. Resolveu, a Gorda, comer acarajé. Sentados num comprido banco de madeira, assuntaram sobre os quatro dias. Tão entretidos nas lembranças, comeram a fritura sem dó do fígado, dos intestinos. Os dois da mesma idade, 48 anos; casados e com filhas.
- A Ritinha? – quis notícias da filha de Natalício.
- Destampou o cabaço no carnaval...
- Como é que você sabe!?
- Saiu no sábado, voltou na segunda-feira. Em vez de pregar na cama, correu para o banheiro. Lavou o corpo, livrou-se das quizilas e enxaguou a calcinha. A mãe desconfiou, olhou pra ela... E Ritinha só fez baixar a cabeça.
Os sinos da Sé soaram; mesmo perto, não abafaram o vozerio residual do largo. A Gorda olhou para a igreja, viu o adro dar passagem a beatas com véus sobre os ombros, as cabeças; poucos homens, todos com os sentidos embotados às urgências das ladeiras. A Gorda não se imiscuíra no fuzuê dos becos, mas sentiu ingratidão com os santos por não ter balbuciado uma reza para, em troca, ter o benefício da purgação.
Cada um deu conta de sua despesa, sem culpas nem remorsos pelo pouco caso a agrados fingidos. Levantaram-se sem dizer para onde ir, posto que o juízo dos dois há muito tinham se acumpliciado a escolhas de ruas sem a menção de nomes.
Na esquina da Sé, a Gorda lembrou-se de sua mãe ajoelhada no adro, na porta da igreja, orando por si e para os santos, jurando jejuar por todo o dia. A velha morreu num domingo de carnaval, interditando os passos da filha na catação de blocos; dera tempo só de acompanhar O Cariri, na madrugada do Guadalupe.
Custa nada também orar; orou no mesmo canto onde a mãe pegara no costume; orou e não evitou um calafrio com a suspeita de que também morreria num domingo de carnaval.
Natalício, com outros urdumes, quis conversar com Pai Edu. O babalorixá cobrava pela consulta. Edu não se poupara de pingas; no rosto, tão tisnado quanto os pixains altos, cheios, os olhos eram dois lumes; vodum vivo, com promessas de castigos.
- Já sei de tudo... – disse a Natalício, debruçado no parapeito da janela de seu palácio.
- O quê!?
- Ritinha destampou o cabaço.
- E como soube?
- Em conversa com o pai de santo...
A Gorda terminara de rezar. Acenou para o Pai Edu. Desceu a ladeira, dando tempo de ouvir:
- Tá fazendo falta nas cerimônias.
Na Praça da Preguiça, inquiriu a um e a outro sobre o rumo do Bacalhau do Batata.
Resolveu cortar o caminho pela praça vizinha, nos fundos do Posto de Saúde. As barracas de bebidas, ainda desovando o que sobrara nas prateleiras, nas cozinhas. O Bacalhau estava na avenida, ouvia-se o estrépito da orquestra. A Gorda, ao passar em frente à barraca da esquina da rua do acesso à avenida, reparou numa bandeira vermelha, encarnada e sob a mira de seus olhos pasmos. O desenho luzidio de uma foice e um martelo; embaixo a costura da palavra comunismo, nunca pronunciada pelo arcebispo na missa.
- Cruz-credo!
Benzeu-se e saiu correndo.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.






Desejo

* Por Sayonara Lino

Que nenhuma desilusão chegue a anestesiar nossos sentidos
Que possamos sempre ver além
Que a delicadeza encontre terreno fértil para florescer
Que a cada dia renasça a esperança
Que o bem seja mais forte, embora tão sutil
Que saibamos sonhar, buscar, e mudar de sonhos sempre que necessário
Que o afeto torne a caminhada mais suave
Que o silêncio seja fonte inesgotável de equilíbrio
Que a sabedoria nos segure pelas mãos e nos conduza
Que continuemos a acreditar e confiar no curso da vida
Que não passemos pelo mundo sem realizarmos a viagem fundamental
Viagem essa que conduz ao encontro de nós mesmos.

• Jornalista, fotógrafa e colunista do Literário






Conteúdo trancado

* Por Marleuza Machado

Tranquei-me,
ou melhor,
meu coração tolheu-se...
Não para a vida,
mas, às palavras.
Foi compulsório.
Quando percebi,
frases não se agrupavam,
pensamentos se desligavam...

Vogais e consoantes tentaram seduzir-lhe,
na intenção de fazer expelir
a essência de um poema novo.
Sem êxito!
Apagaram-se as imagens,
refrearam-se os instintos,
a intimidade se perdera...

Meus dedos deslizavam,
sem tesão,
sobre o teclado,
sem paixão...

Usar de ficção?
Não!
De mim se verbaliza
o que sai do coração.

• Poetisa e jornalista


Sangue e Coca-Cola

* Por Clóvis Campêlo

Ao entrar na sala percebera na parede do lado direito a imagem de uma loira do tipo Marylin Monroe montada sobre uma imensa garrafa de coca-cola.
Os cabelos oxigenados e o largo sorriso da loira deixavam transparecer um ar de felicidade consumista e uma embriaguez que não combinavam com a tensão que experimentava.
A estampa da loira radiante, aliás, lembrara-lhe de uma cena cinematográfica onde uma imagem semelhante aparecia em néon ocupando toda a parede lateral de um prédio alto.
Não sabia, no entanto, porque todas estas lembranças lhe vinham à mente, naquele momento, já que de nada lhes serviriam.
Pode ver ainda que sobre o pequeno móvel, escuro e torneado, estavam inúmeras garrafas vazias do refrigerante. Como diria o Aires, seu amigo politizado, fosse quem fosse que ocupasse aquela sala era uma pessoa coca-colonizada.
Estranho aquilo. Como poderia alguém consumir impunemente tanto refrigerante assim? Como poderia alguém exercer qualquer atividade naquele cubículo escuro e infecto?
De início, percebera aquilo tudo com dificuldade considerando a pouca luminosidade existente no local. Agora, com a vista já adaptada, podia ver com mais detalhes o local.
Em frente, sob a janela fechada, estava uma escrivaninha repleta de livros, pastas e papéis, colocados sobre ela de forma desordenada.
Por sobre a janela, na mesma parede, estava um grande relógio parado, como a indicar que para aquela pessoa o tempo era um elemento com o qual não deveria se preocupar.
Sentia, no entanto, que parecia estar ali há séculos, a espera de algo que nem mesmo sabia o que era. Por que entrara ali, naquela porta entreaberta, naquele dia? Que impulso esquisito o levara àquela sala escura e suja? Isso, não poderia responder. Sabia apenas que agora era tarde demais para voltar atrás! Não mais havia tempo para arrependimentos tardios. Tinha que seguir em frente. Sabia que era assim e assim seria.
Na parede do lado esquerdo, havia duas prateleiras onde várias caixas pequenas se amontoavam ao lado de uma pilha de jornais. De longe, podia sentir o cheiro da poeira e do papel velho amarelado. Para que diabo serviria aquilo? O que haveria dentro daquelas caixas que pareciam não serem abertas há tanto tempo?
Sob as prateleiras, um pequeno sofá preto e rasgado. Sobre o móvel, uma pele de gato-do-mato curtida, onde os dois olhos mortos eram as únicas coisas que luziam naquele recinto escuro.
De repente, abre-se a porta espalhando uma claridade intensa e alguém entra na sala. De relance, ainda pode ver o brilho de surpresa e medo nos olhos do recém-chegado, antes de apanhar uma das garrafas vazias e estourá-la na sua cabeça.
Saiu em dispara pelo corredor, enquanto o corpo caia e o sangue se espalhava pelo chão sujo da sala.

• Poeta, jornalista e radialista

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – Rei que virou lenda viva.

Coluna À flor da pele – Evelyne Furtado, crônica, “Mulher à beira de um ataque de nervos”.

Coluna Observações e Reminiscências – José Calvino de Andrade Lima, crônica, “Recife & Olinda”.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Lunas de Julieta Viñas Arjona”..

Coluna Porta Aberta – Alberto Cohen, poema “Único Poema”.

Coluna Porta Aberta – Rubem Costa, crônica “Três paladinos de 19”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Rei que virou lenda viva

A
história contemporânea do Camboja é impossível de ser contada se quem se propuser a escrevê-la omitir a figura de Norodom Sihanouk. Esse personagem é tão importante, que mesmo após abdicar do trono, em 7 de outubro de 2004, em favor de um de seus 13 filhos (foi casado com sete mulheres), Norodom Sihamoni, continuou (e continua, aos 89 anos de idade) a influenciar decisivamente a política do seu país. Tanto que recebeu o título de “Pai da Pátria”, que ostenta com orgulho e que de fato merece, por tudo o que fez.

Sihanouk, que nasceu em 31 de outubro de 1922, filho do rei Norodom Siamant e da rainha Sisowatti Kossamak, foge completamente do estereótipo que há em torno da monarquia. Esteve no trono em duas oportunidades distintas.

A primeira vez que foi rei foi no período a partir de 1941 – quando o Camboja sequer era independente, mas integrava, ao lado do Vietnã e do Laos, a colônia francesa da Cochinchina, também conhecida como Indochina – até 1955, já após a independência, quando abdicou do trono em favor do pai, mas conservou o cargo de primeiro-ministro, ao qual cabia o governo de fato. Isso durou até ser deposto pelo golpe de Estado de 1970, comandado pelo líder do Khmer Azul, Lon Nol, oportunidade em que se exilou na China.

Na segunda vez que Sihanouk ocupou o trono do Camboja foi já depois do fim do regime do Khmer Vermelho e do genocídio comandado por Pol Pot, da ocupação vietnamita do seu país que se seguiu e da posterior restauração da independência, em 1993, reinado este que perdurou até 2004, quando abdicou a favor do filho. Todavia, mesmo nos anos em que não esteve exilado, e que não era oficialmente o rei, ocupou vários cargos políticos. Tanto que seu nome consta do Guiness Book, o célebre livro dos recordes. E sabem por que? Por ter sido o homem que mais cargos políticos ocupou no mundo.

Como se vê, quando se afirma que é impossível escrever a história do Camboja contemporâneo sem dedicar capítulos e mais capítulos a esse rei, que foge de todo e qualquer estereótipo de monarquia, não há nenhum exagero. A melhor caracterização de Sihanouk eu encontrei na enciclopédia eletrônica Wikipédia, que diz a seu respeito: “Norodom se tornou rapidamente famoso pelo seu estilo de vida extravagante e fora do comum. Compositor diletante e diretor de uma orquestra de jazz, era apaixonado por carros, além de grande amante de mulheres, tanto que teve seis esposas. A sua sétima e última mulher foi Mônica Izzi, de origem italiana, francesa e cambojana”.

Isso não é tudo. Foi um dos raros reis (se é que existe outro) simpatizante ferrenho do comunismo, a despeito dos contratempos que essa simpatia lhe trouxe, notadamente no período da Guerra Fria e na época em que a Guerra do Vietnã “incendiava” todo o Sudeste Asiático. Como se vê, contradição e extravagâncias foram e ainda são suas marcas registradas. Entre suas atitudes, digamos, “modernas”, cite-se que foi o primeiro político cambojano a ter um site pessoal na internet.

O ex-chefe do escritório da agência de notícias britânica Reuter em Saigon (atual Ho-Chi-Mihn), o neozelandês Nicholas Turner, em artigo que escreveu para a revista “Seleções”, publicado em julho de 1969, definiu dessa maneira o líder do Camboja, figura hoje lendária no imaginário popular: “Um rei exuberante que deixou o trono para ingressar na política, como ‘real-socialista’, entusiasta de basquetebol e voleibol, diretor de cinema que estrela seus próprios filmes, dor de cabeça para Washington e Pequim e líder amado de seu povo”. Vocês conhecem outro rei assim? Eu não conheço e nunca ouvi dizer que houvesse outro que sequer o arremedasse.

Turner, em seu artigo, descreveu da seguinte forma os esforços de Sihanouk para garantir a independência do seu país: “Procura proteger o Camboja de seus vizinhos tradicionalmente hostis, a Tailândia e o Vietnã, e evitar ser esmagado entre ‘o malho e a bigorna’ da América e da China Vermelha”. Realista quanto à precariedade de sua situação, o rei, que mesmo sem coroa nunca perdeu a majestade, observou, em certa ocasião, em conversa com correspondentes internacionais: “Quando dois elefantes estão brigando, a formiga tem que sair de perto”. Eu acrescentaria: “quando isso for possível”. No caso do Camboja não foi.

Entre outras coisas, Sihanouk não pôde evitar um dos maiores genocídios do século XX, e praticado, justamente, pelo regime a que serviu, mesmo que apenas na condição de chefe de Estado, função meramente decorativa. Explico. Em 1975, quando o Khmer Vermelho conquistou o poder, o rei sem coroa pôde regressar do exílio ao seu país.

Como aliado de Pol Pot, recebeu esse cargo, sem nenhum real poder político, do regime comunista radical. A pergunta que sempre se fez e ainda se faz é: Sihanouk não viu as atrocidades que estavam sendo cometidas contra o povo, que dizia tanto amar (e que sempre o amou, mesmo após o genocídio)? Não percebeu o intolerável “expurgo ideológico” em andamento, que resultou na morte de pelo menos 1,5 milhão de cambojanos? Se não percebeu, sua imagem de político atento e antenado fica arranhada. Se percebeu e nada fez, a situação é muito pior. Nessa hipótese, Sihanouk foi cúmplice, por omissão, das atrocidades de Pol Pot.

Os cambojanos, todavia, por alguma razão que desconheço, isentaram-no de culpa nos terríveis massacres denunciados tanto no livro, quanto no filme, ambos com o mesmo título e tratando do mesmo assunto, “Os gritos do silêncio”. Tanto que, quando a “tempestade” passou, quando o Camboja reconquistou a perdida independência após a invasão vietnamita ao seu território, foi, de imediato, reconduzido ao trono (em 1993), que deixou, apenas, no momento que quis, em 2004.

Norodon Sihanouk lembra, de certa maneira (guardadas as devidas proporções, claro), a figura do nosso primeiro imperador, Dom Pedro I, a quem o Brasil deve sua independência, principalmente quanto às suas estroinices, não características de membros da monarquia de qualquer parte do mundo. Lógico que o agora rei sem coroa do Camboja é muito mais culto e escolado do que o filho de Dom João VI. Todavia, Dom Pedro I leva vantagem sobre o cambojano num aspecto. Ao retornar a Portugal, do qual subtraiu sua mais importante colônia, combateu o irmão Dom Miguel, tornou-se rei português, com o título de Dom Pedro IV e, principalmente, não participou, por ação ou por omissão, de nenhum genocídio no Brasil. Mas a comparação, guardadas as proporções, reitero, procede.

Boa leitura.

O Editor.




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Mulher à beira de um ataque de nervos

* Por Evelyne Furtado


No consultório do analista, Carmem choraminga e diz que não agüenta mais sofrer.
- Não sei mais se ele me ama. Há duas noites não durmo, pois não paro de pensar nisso.
- Você poderia descrever o que sente? – pede o analista.
- Sinto o chão se abrir. Como se fosse acabar a alegria na minha vida e não fizesse sentido mais viver.

O profissional a observa. Ela esboça um sorriso tenso, encobrindo a emoção que sente. Uma sombra se instala sobre seus olhos. Ele fala:
- O que a leva a pensar que a vida não terá mais continuidade? Você é perfeitamente capaz de buscar outros caminhos e sabe disso. Já conversamos muito sobre o assunto.
- Eu sei, mas não posso me controlar. O medo vai aos poucos tomando conta de mim. Preciso desse amor, não sei viver sem ele.
- O que mais me impressiona é ver uma mulher tão inteligente se deixar levar assim pelas emoções. Você tem sangue espanhol, minha filha?
- Tenho sim, doutor. Por que o senhor pergunta?
- Nada importante, mas tive a impressão, olhando para você, que estava diante de uma personagem de Almodóvar. Uma mulher à beira de um ataque de nervos e sem nenhum motivo concreto para se encontrar assim.
- O senhor acha que não é um bom motivo ele não gostar mais de mim?
- Não é não, senhora! Deve ter muita gente que gosta de você e por mais que doa, não é por apenas uma pessoa não gostar de você que você deve desistir de viver.

Ela parece refletir. A sombra permanece no seu olhar. Endireita-se na poltrona, olhando para o psicoterapeuta e indaga:
- O senhor nunca sofreu por amor?
O médico não parece se assustar com a impertinência, mas leva alguns segundos para responder.
- Não estou sendo analisado, mas posso lhe dizer que já sofri, sim, mas não morri. Você está me vendo aqui.
- Ah, mas eu sou diferente – disse Carmem, parecendo uma menina mimada.
- Claro que você é diferente, porém tem tanta força como eu. Encontrará uma maneira de lidar com a situação. Eu lhe asseguro.

Ela deixa as lágrimas correrem por seu rosto. Sente-se uma menina abandonada e imagina o esforço que fará para superar mais uma perda. O terapeuta olha-a e diz que é importante encarar essa possibilidade, mas que tudo pode ser fantasia dela. Ele não enxerga com muita clareza as causas que a levaram a acreditar que o namorado não mais gosta dela. Enquanto o ouve, o rosto dela vai se iluminando aos poucos:
- O senhor acha mesmo?
- Acho sim. Espere e não seja tão ansiosa. Pode não ser nada disso.

Agora os olhos de Carmem já brilham de alívio. O sorriso ilumina seu rosto. Pensa que o analista pode ter razão. O tempo acabou, antes que o terapeuta pudesse dizer que não tinha certeza de nada. Que tudo poderia acontecer. Ele ainda tentou, mas a cliente decidida já se despedia.

Ela saiu do edifício com a alma leve e uma expressão inegável de alegria no modo como se dirigia ao seu carro no estacionamento. Dera uma pausa no sofrimento. Ufa!

• Poetisa e cronista em Natal/RN






Recife & Olinda

*Por José Calvino de Andrade Lima


Do Recife/ De Olinda/ Das pontes/ Das praias/ Dos coqueiros/ Das gaivotas// Dos carnavais/ Dos bares/ Das jangadas/ Das cirandas/ Dos amores// Do poema/ Da lua/ Do sol/ Dos arrecifes/ Dos morros/ Das cidades, cenário encantador, evoca Recife e Olinda.”

23 de dezembro de 2007. Um poema fora feito em parceria com um amigo, na praia de Pau Amarelo. Como é gratificante ter amigos... Fiquei emocionado com o seu estilo poético e com sua visão. Cenário encantador, ele evocava Recife e Olinda em tempo tão curto para uma elaboração mental e desenvolvimento de um poema tão bem escrito! Valeu, poetamigo, você se coloca nessa seqüência de imagens poéticas, sintetizando sua força criativa na construção da seqüência e seu caráter performático.

O uso poético contribui para o potencial da pintura, da fotografia, da filmagem, enfim, foi para mim uma investigação tecnológica, um ensinamento que retrata com sucesso o tema: Recife & Olinda. O mar de Pau Amarelo, leitoramiga, refletindo um céu azul luminosamente ensolarado, com uma brisa praieira, o jangadeiro rolando na praia a jangada pro mar... Pensei, se Dostoievski estivesse aqui, será que teria escrito Crime e Castigo? Acho que, no mínimo, O Pai do Chupa, esse poema Recife & Olinda, que retrata, acredito, o clímax entre essas duas cidades.

No final da tarde fui parar no Beco da Fome e fiquei ouvindo Azambujanra recitar “O frustrado”:

Se eu fosse adulador não viveria às portas da loucura ou da miséria; eu viveria na mansão Tibérica: Do ódio, da paixão e da porfia. Sem o meu sangue, vivesse a covardia de bajular o lodo da matéria; eu extrairia a principal artéria e esse sangue covarde morreria; se eu vivesse atrás dessa gentalha, eu venceria as principais batalhas melhor que Aníbal, César e Cipião. Mas como nada disso sei fazer; sou um frustrado e vivo a padecer... Sem escalar o Monte de Sião.”
(Do livro: O grande comandante, p. 103 – ed. 1981)

Azambujanra encerra recitando o Poema do Beco, de Manuel Bandeira:

“Que importa/ A paisagem,/ A glória, a baía,/ A linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco".


* Formado em comunicações internacionais, escritor, teatrólogo, poeta, compositor e rei do Maracatu Barco Virado. Como escritor e poeta, tem trabalhos publicados nos jornais: Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Folha de Pernambuco e em vários sites... Tem 12 títulos publicados, todas edições esgotadas. Blog Fiteiro Cultural: http://josecalvino.blogspot.com/






Lunas de Julieta Viñas Arjona

* Por Talis Andrade

Quando se foi o sol
Julieta no balcão
se fez poesia
esperando o rouxinol

As mãos de Julieta deslizam
pelas cordas de uma harpa
e seus dedos vão dando voltas
pela lua de Lorca

Seus dedos vão dando voltas
na lua de inúmeras faces
Seus dedos vão dando voltas
na luna violácea
donde unos poetas
beben cazalla
y otros traman nuevos despropósitos

Julieta no balcão
se fez música
amanhecia o dia
nem percebeu
a companhia
de uma cotovia

* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).






Único Poema

* Por Alberto Cohen

Meu único poema está dentro de mim.
Sei que é definitivo e possui a magia
das coisas que não foram ditas ou sonhadas,
mas aguardam apenas sonhos e palavras
que tenham o condão de enfim desencantá-las.

Muito maior que eu, meu único poema
é doce e feroz como um beijo e uma facada,
tem aquele recato do primeiro amor
e a devassidão dos ímpios lupanares.
Arcanjo protetor, demônio às gargalhadas.

Não será meu, jamais, meu único poema.
Mora no coração e a mente é tão pequena
que não pode abrigar a sua infinitude.
Impaciente ele espera o fim do tempo
para afinal voar liberto da clausura.

• Poeta


Três paladinos de 19

* Por Rubem Costa

Semana retrasada, fincado na coincidência de serem todos nascidos em 1919, falava eu de três figuras excepcionais que, viventes e atuantes na sociedade, edificam o ser, exalam certezas e convidam o homem a acreditar em si mesmo. Todavia, limitado pelo espaço da coluna, restou-me oportunidade apenas para traçar, "à vol d’oiseau" , o retrato de Georges Henry, um francês imensurável que vindo, há quase setenta anos, de Toury-Ferrotte, vive hoje aqui pertinho, em Amparo, cidade onde reside com a família e mora no coração do povo – gente que com ele aprende, diuturnamente, amar a música. É uma lenda viva à que se emparelham os dois outros grandes nomes da cultura. Ao todo, três nomes que pela ação me trazem à lembrança outra respeitável voz desta terra, o poeta Mauro Sampaio, vate sensível que, na transcendência da concepção cósmica do existir, interpretou o supremo anseio do homem em apenas três versos: - "Ser como estrela. / Cair nas águas de um poço/ E continuar estrela." - Aspiração infinita da perpetuidade do ser que fala à alma e alimenta os passos dos sonhadores.

Oswaldo Urban

Na década de 50 do século findo, exercia em Amparo o cargo de inspetor regional do ensino, quando conheci um jovem professor que aportara na cidade para reger a cadeira de pedagogia na Escola Normal. Moço que pela postura de mestre e ampla cultura desde logo granjeou o respeito da população. Comportamento sóbrio, competente, douto na disciplina de que era titular e discreto na conduta, nunca estadeou o conhecimento paralelo que possuía em larga escala sobre música e muito menos o pleno domínio da batuta que exercitava com maestria. Discrição de "gentleman" a respeitar a coisa constituída, visto que o educandário já possuía na matéria uma professora titular de canto orfeônico. Uma questão de respeito à competência alheia que só os espíritos nobres sabem cultivar. Logo depois, entanto, na senda do magistério, volveu a Campinas para lecionar psicologia e filosofia da educação na Escola Normal "Carlos Gomes" . Contudo, tamanha obrigação não lhe impediu de perseverar na vocação que trazia do berço – a música. Estava assim posto em trabalho, ensinando psicologia, quando circunstância eventual o coloca na regência do organismo musical que daí por diante seria a razão de sua vida – Coral Pio XI – um orfeão que já era e continua a ser uma oferenda de alegria e paz, canto votivo de vozes masculinas ecoando a Deus. E fixou-se ali, na regência, a mais emocionante das atividades desenvolvidas, aquela que lhe fala à existência e segreda ao coração - instrumento de querença, batuta de afeto que se agita em busca da grandeza da vida. Nessa empreita, revela-se Urban, um homem que além do Coral sabe dirigir o próprio viver. E essa sabedoria se reflete no decreto municipal nº 13.301 de 1999 que assim dispõe: - "Art. 1º - Fica oficializado o ‘hino do idoso’ no município de Campinas." - Art.; 2º - O hino do Idoso foi escolhido por meio de concurso público, resultando sua premiação de uma avaliação realizada por uma comissão oficialmente constituída sagrando-se vencedor o Maestro Oswaldo Urban, com a letra e música constantes dos anexos" . É dessa ordenação oficial que retiro os versos que, na sua singeleza, são uma manifestação imensa de sabedoria - "É tão gostoso envelhecer sorrindo / Ser bom exemplo de honradez e de virtude / Já ser idoso, velhice não sentindo / Este é o segredo da perene juventude" - Conselho de um homem sábio que na luta da existência aprendeu a edificação da vida.

Rosalvo Madeira Cardoso

Ser admitido ao vestibular de curso superior, sem jamais ter frequentado antes uma escola secundária regular? Hipótese difícil na primeira metade do século passado, quando as exigências para matrícula eram rígidas. Mas o quase impossível aconteceu. E o personagem central do episódio foi um mineirinho nascido em Rio Pomba a 18 de dezembro de 1919. Sonhador e irrequieto, ainda na adolescência, deixou a terra natal e gastou sola para conhecer o mundo. Andou por terras e mares até chegar a Campinas, depois de abandonar o emprego de telegrafista na Companhia Mogiana de Estrada de Ferro. Uma aventura que o fez surgir na PUC, ainda na década de 40, na casa dos vinte anos, com a decisão de estudar. Jovem que nunca frequentara escola, trazia na bagagem, como prova única do conhecimento que adquirira sozinho, um pequeno livro que escrevera nas horas de solidão - Átomos D’Alma. Volume magrinho em que, todavia, transbordava o talento de um poeta brilhante. Ousado, foi esse o título de formação educacional que apresentou para o vestibular de ingresso no curso de letras anglo-germânicas da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Contudo, as exigências oficiais para a inscrição requeriam – como documento fundamental – certificado de conclusão de curso secundário. Um impasse que seria impossível transpor, não fosse a clarividência de um espírito nobre que ocupava, então, a reitoria da Universidade. Percebendo a potencialidade cultural do moço, Monsenhor Salim desdobrou-se junto aos poderes oficiais competentes até obter a autorização pretendida. Foi assim que Rosalvo Madeira Cardoso iniciou a vida universitária que se iria espraiar na amplitude da cultura, revelando uma das grandes figuras que pela PUCC passaram. De aluno virou professor. Ao longo do tempo, instalou um currículo tão extenso que não dá para transcrever todo nesta coluna. Direi apenas que, formado também em direito, traz uma carteira de atividades recheadas de honrosos títulos: - Professor no ensino oficial do estado, através de concurso público, simultaneamente, nas cadeiras de português, inglês e sociologia, além de chefe do Departamento de inglês da Fundação Getúlio Vargas. Exerceu na própria PUC vários cargos de professor titular (Sociologia Geral, Sociologia da Educação, Economia da Educação, Coordenador de Estudos de Problemas Brasileiros. Diretor da Faculdade de Comunicação). Um universo de conhecimento que rompeu fronteira, rendendo-lhe a outorga nos Estados Unidos do título de cidadão honorário de Nashville. Ocupa a cadeira nº 7 da Academia Campinense de Letras.

Em apertada síntese, esse é, senhores, o perfil do moço que caminhou mundo em busca de um sonho. E, na esteira da longa jornada, parodiando Paulo de Tarso, pode dizer serenamente que combateu o bom combate, pelejou a boa peleja, guardou a fé.

• Rubem Costa é escritor e membro da Academia Campinense de Letras

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012







Leia nesta edição:

Editorial – Letras pungentes.

Coluna Lira de sete cordas – Talis Andrade, poema “Cantata do amor à primeira vista”.

Coluna Em verso e prosa – Núbia Araujo Nonato do Amaral, poema, “Suspiros”.

Coluna Portas Aberta – Leonardo Boff, artigo, “Como enfrentar a sexta extinção em massa”.

Coluna Porta Aberta – Elaine Tavares, artigo “O Egito real”.

Coluna Porta Aberta – José Ribamar Bessa Freire, artigo “Um certo pajé Lourenço”.


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Maravilha e flagelo

A história do Camboja (não a recente, mas de um passado já bastante remoto) – país que foi vítima, na década de 70 do século XX, de um dos maiores e mais cruéis genocídios da era moderna, perpetrado por Pol Pot, líder do Khmer Vermelho, retratado no livro e no filme do mesmo nome “Os gritos do silêncio” – está envolvida numa aura de profundo mistério, principalmente no que diz respeito ao súbito colapso de uma das mais prósperas e florescentes civilizações da Ásia.

Nesse aspecto, seu desaparecimento guarda semelhanças com outros tantos enigmas, de outras regiões do mundo, como, por exemplo, o do fim do império maia, nas Américas do Norte e Central. Ou da facilidade com que Fernão Cortez derrotou e submeteu os aztecas, no México. Ou da desintegração do Império Inca na América do Sul. Ou de outros tantos episódios do tipo, inexplicáveis à luz dos conhecimentos atuais, que intrigam os historiadores. Claro que todos esses casos têm lá suas explicações. Mas quais?

Por 600 anos floresceu, no território do atual Camboja, poderoso e notável império, o dos Khmers, cujos domínios estenderam-se do Sul do Mar da China ao Golfo de Sião, tendo em seu âmbito a área do atual Campuchea (nome oficial do país), além de parte da Tailândia, do Laos inteiro e do Vietnã reunifi8cado. Contava, além de inigualável poderio militar, com artistas de grande reputação e talento, poetas e artistas de todas as artes, que legaram, para a posteridade, obras admiráveis. Algumas sobreviveram ao tempo e permanecem vivas. Outras tantas se perderam para sempre. Seus exércitos eram tão bem armados e adestrados, que conquistavam, sem muito esforço, novos territórios, submetendo ao seu domínio os povos vizinhos.

De acordo com os historiadores, os Khmers foram, simultaneamente, “a maravilha e o flagelo” do Oriente. E por muito tempo, mais especificamente, por seis séculos consecutivos. Tratou-se da civilização mais notável e admirável que já surgiu na região do Sudeste Asiático. Não teve outra que rivalizasse nem antes e nem depois do seu surgimento. Em 1432, todavia, algo de muito grave aconteceu. O que? Ninguém sabe, embora haja uma infinidade de especulações. Nesse ano específico o todopoderoso Império Khmer, subitamente, entrou em colapso e... desapareceu, como fumaça que se perde no ar.

O que aconteceu? Mistério! Certeza, certeza mesmo, ninguém tem nenhuma. Foram levantadas, é verdade, muitas hipóteses, algumas lógicas e plausíveis, outras nem tanto, para tentar explicar o fato. Todas, contudo, carecem da devida comprovação.

Há quem afirme, por exemplo, que a região foi atingida pela pandemia de Peste Negra, que na ocasião causou a morte de um quinto da humanidade e chegou a ameaçar a espécie humana de extinção. É a possibilidade mais lógica e plausível, embora ninguém possa afirmar que foi o que aconteceu. O fato é que os khmers espalharam-se por toda a região, mas seu poderoso e florescente império ruiu.

Ficou, contudo, como prova do seu esplendor e grandeza, a magnífica cidade de Angkor Vat, ainda hoje perdida na selva, que causa assombro e admiração aos milhões de turistas do mundo todo que a visitam anualmente. Nela permanecem, quase intactos, mais de 300 majestosos e inigualáveis monumentos que, de açodo com especialistas, são um dos empreendimentos mais arrojados, perfeitos e espantosos já feitos pelo homem em qualquer época ou lugar, talvez desde a Torre de Babel (caso esta tenha, de fato, existido), que teria sido erigida no lugar em que hoje é o território do Yemen, na costa do Mar Vermelho.

Comparando as ruínas (muitas das quais restauradas ou em vias de restauração), já que a área foi tombada pela Unesco e declarada patrimônio cultural da humanidade, as maravilhas do Egito, da Grécia e de Roma se mostram rústicas e primitivas face à perfeição das esculturas e da arquitetura de Angkor Vat. Foi em torno dessa cidade que os khmers estabeleceram a capital do seu império, por volta do século IX da nossa era. Ali desenvolveu-se uma cultura peculiar, posto que com elementos religiosos marcantes, assimilados do hinduísmo e do budismo.

Os imperadores desse povo operoso, hábil, talentoso e disciplinado chegaram a escravizar populações vizinhas, dada a premente necessidade de mão de obra para suas notáveis e arrojadas construções. Afinal, rasgaram, por exemplo, cerradas selvas do vale do Rio Mekong, sumamente férteis, para plantar extensíssimos arrozais. Construíram vasta rede de estradas – várias delas pavimentadas numa época em que no Ocidente sequer se cogitava desse “luxo” – ligando os principais pontos do império e facilitando, sobretudo, o escoamento de suas fartas safras. Dotaram suas principais cidades de água potável, encanada, e de sistemas de irrigação da lavoura, entre outros tantos melhoramentos que na época eram novidades.

O que causa pasmo, todavia, é saber que tudo isso, e muito mais, desapareceu, sem que haja qualquer vestígio de violência ou mesmo de eventual catástrofe natural. A História é farta desses mistérios. O Império Khmer caiu, mas não em decorrência de guerras (outro ponto em que seu desaparecimento parece se igualar ao dos maias nas Américas). O que causou esse colapso e súbito desaparecimento? Foi alguma pandemia? Foi devastador terremoto? Foi outro cataclismo natural jamais registrado? Este é outro dos tantos mistérios que desafiam e certamente seguirão desafiando os pesquisadores sabe-se lá até quando.

O Camboja atual integrou – até 1953, quando foi desmembrado e se tornou independente – a colônia francesa da Cochinchina, junto com o Vietnã e o Laos. Uma das coisas de que os cambojanos mais se orgulham é desse passado glorioso, desse império que foi “a maravilha e o flagelo” do Oriente, do qual restaram, apenas, lendas, mitos, tradições e algumas cidades magnificentes, como Angkor Vat principalmente, posto que tomadas e engolidas, parcial ou totalmente, pelas selvas.

Boa leitura.

O Editor.




Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk






Cantata do amor á primeira vista

* Por Talis Andrade

Bem-te-vi, descobri:
era amor antigo.
Bem-te-vi, logo senti
o gosto da saudade
de tudo que não fiz.


* Jornalista, poeta, professor de Jornalismo e Relações Públicas e bacharel em História. Trabalhou em vários dos grandes jornais do Nordeste, como a sucursal pernambucana do “Diário da Noite”, “Jornal do Comércio” (Recife), “Jornal da Semana” (Recife) e “A República” (Natal). Tem 11 livros publicados, entre os quais o recém-lançado “Cavalos da Miragem” (Editora Livro Rápido).






Suspiros

* Por Núbia Araújo Nonato do Amaral

Por hoje nada a dizer
buscar talvez no último
suspiro, inspiração
para acolher
o dia seguinte.

* Poetisa, contista, cronista e colunista do Literário






Como enfrentar a sexta extinção em massa

* Por Leonardo Boff

Referimo-nos anteriormente ao fato de o ser humano, nos últimos tempos, ter inaugurado uma nova era geológica – o antropoceno – era em que ele comparece como a grande ameaça à biosfera e o eventual exterminador de sua própria civilização. Há muito quebiólogos e cosmólogos estão advertindo a humanidade de que o nível de nossa intervenção violenta nos processos naturais está acelerando enormemente a sexta extinção em massa de espécies de seres vivos. Ela já está em curso há alguns milhares de anos.

Estas extinções, misteriosamente, pertencem ao processo cosmogênico da Terra. Nos últimos 540 milhões de anos ela conheceu cinco grandes extinções em massa, praticamente uma em cada milhão de anos, exterminando grande parte das espécies no mar e na terra. A última ocorreu há 65 milhões de anos quando foram dizimados os dinossauros e outros seres vivos. Até agora todas as extinções eram ocasionadas pelas forças do próprio universo e da Terra a exemplo da queda de meteoros rasantes ou de convulsões climáticas.

A sétima está sendo causada e acelerada pelo próprio ser humano. Sem a presença do ser humano, uma espécie desaparecia a cada cinco anos. Agora, por causa de nossa agressividade industrialista e consumista, multiplicamos a extinção em cem mil vezes, diz-nos o cosmólogo Brian Swimme em entrevista recente no Enlighten Next Magazin, n.19. Os dados são estarrecedores.

Paul Ehrlich, professor de ecologia em Standford calcula em 250.000 espécies exterminadas por ano, enquanto Edward O. Wilson de Harvard dá números mais baixos, entre 27.000 e 100.000 espécies por ano (R Barbault, Ecologia geral 2011, p.318). Estes dados revelam que está em andamento uma assustadora extinção em massa.

O ecólogo E. Goldsmith da Universidade da Georgia afirma que a humanidade ao tornar o mundo cada vez mais empobrecido, degradado e menos capaz de sustentar a vida, tem revertido em três milhões de anos o processo da evolução. O pior é que não nos damos conta desse processo devastador nem estamos preparados para avaliar o que significa uma extinção em massa. Ela significa simplesmente a destruição das bases ecológicas da vida na Terra e a eventual interrupção de nosso ensaio civilizatório e quiçá até de nossa espécie humana.

Thomas Berry, o pai da ecologia americana, escreveu: ”Nossas tradições éticas sabem lidar com o suicídio, o homicídio e mesmo com o genocídio, mas não sabem lidar com o biocídio e o geocídio” (Our Way into the Future, 1990 p.104). Podemos evitar ou desacelerar a sétima extinção em massa já que somos seus principais causadores? Podemos e devemos.

Um bom sinal é que estamos despertando a consciência de nossas origens há 13,7 bilhões de anos e de nossa responsabilidade pelo futuro da vida. É o universo que suscita tudo isso em nós porque está a nosso favor e não contra nós. Mas ele pede a nossa cooperação já que somos os maiores causadores de tantos danos. Agora é o momento de despertar. O primeiro que importa fazer é renovar o pacto natural entre Terra e Humanidade.

A Terra nos dá tudo o que precisamos. No pacto a nossa retribuição deve ser de cuidado e de respeito ao seu alcance e a seus limites. Mas, ingratos, lhe devolvemos com chutes, facadas, bombas e práticas ecocidas e biocidas. O segundo é reforçar a reciprocidade ou a mutualidade: buscar aquela relação pela qual entramos em sintonia com os dinamismos dos ecossistemas, usando-os racionalmente, resgatando-lhe a vitalidade e garantindo-lhe sustentabilidade. Para isso necessitamos nos reinventar como espécie que se preocupa com as demais espécies e aprende a conviver com toda a comunidade de vida. Entende que deve ser mais cooperativa que competitiva e reconhece o valor intrínseco de cada ser. Ter mais cuidado que vontade de poder.

O terceiro é viver a compaixão não só entre os humanos, mas com todos os seres, compaixão como forma de amor e cuidado. A partir de agora eles dependem de nós se vão continuar a viver ou se serão condenados a desaparecer. Precisamos deixar para trás o paradigma de dominação que reforça a extinção em massa e viver aquele do cuidado e da reverência que preserva e prolonga a vida. No meio do antropoceno, inauguraremos a era ecozóica que coloca o ecológico no centro e assim nos dará a chance de salvar nossa civilização e a nossa Casa Comum.

* Leonardo Boff é teólogo e autor de “Tempo de Transcendência: o ser humano como projeto infinito”, “Cuidar da Terra-Proteger a vida” (Record, 2010) e “A oração de São Francisco”, Vozes (2009 e 2010), entre outros tantos livros de sucesso. Escreveu, com Mark Hathway, “The Tao of Liberation exploring the ecology on transformation”, “Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz” (Vozes, 2009). Foi observador na COP-16, realizada recentemente em Cancun, no México.


O Egito real

* Por Elaine Tavares

A terra dos faraós sempre foi muito forte no meu imaginário. Desde bem pequena as histórias de deuses e reis daquele distante lugar na África habitavam em mim por conta de uma “estranha” mania do meu pai, que era a de comprar livros de todos os vendedores que batiam às portas de casa. Naqueles livros vinham as mais loucas narrações dos mundos mais distantes, com seus mitos e belezas. Então, era essa terra que eu tinha na cabeça quando desembarquei no Cairo, três dias antes do aniversário da chamada “revolução” que depôs Hosni Mubarak depois de 30 anos de governo.

Muito do que vivia em mim foi fortalecido e outras tantas coisas se agregaram, misteriosas e fortes. O que ficou de saldo foi a certeza de que esse país milenário tem uma gente brava, corajosa, crédula e apaixonada. Nas ruas, homens e mulheres reais falam sobre seus sonhos, suas esperanças, seus medos e seus mais secretos desejos de amor. O grande território de Misr (nome original do Egito), de mais de um milhão de quilômetros quadrados, é um espaço de esperanças, mas sem ilusões. As gentes sabem que nada está dado. Há ainda muita coisa para conquistar. O que antes não se fazia.

A leva de turistas que esperava na entrada do Vale dos Reis, em Luxor, se via diante de uma novidade. O serviço de visitas estava parado. Os trabalhadores que dirigem os carrinhos que levam os visitantes até bem perto das tumbas faziam uma greve exigindo aumento no salário. Havia uma intensa algaravia, como se brigassem entre si, mas, que nada, é o jeito egípcio de protestar, falando alto e forte. Vinte homens fazem o serviço de carregar turistas durante todo o dia em carrinhos a motor, ganhando menos de 20 dólares ao mês, enquanto o estado arrecada um dólar por turista. A considerar que o número de visitantes pode chegar a cinco mil pessoas ao dia, eles entendem que é hora de levar uma fatia maior do quinhão.

“Isso aí era impensável antes da revolução. Agora os trabalhadores sentem que têm direito de protestar e lutar por coisa melhor. A cada hora estoura uma greve no Egito”, comenta Abdelaziz, que trabalha como guia. Mesmo a juventude que vive de vender postais, lenços e lembrancinhas – no trabalho informal – começou a fazer exigências. A região do Vale dos Reis é o mundo dos artesãos. Era assim no tempo dos faraós, quando dali saíam os mestres que deixaram ao mundo a beleza gravada nas pedras dos templos, e é assim agora. Cada uma das casinhas simples que se vê na paisagem arenosa é uma fábrica e a mesma arte das pirâmides segue sendo produzida dia após dia. A diferença é que antes faziam seu trabalho para os deuses, agora disputam os dólares dos turistas.

Naquele lugar a vida parece congelada, como se nada tivesse mudado, mas isso é só aparente. Enquanto talham pedras e fazem desenhos, os egípcios da região de Luxor buscam vida melhor. Foi assim com Karim, de 31 anos, que tão logo explodiu a luta no Cairo, em janeiro de 2011, deixou tudo para trás e se foi a protestar. “Havia um sentimento nacional contra Mubarak, a morte do blogueiro em Alexandria no mês de dezembro de 2010 foi o estopim. A mudança já estava em curso e toda a gente queria participar”. Agora, passado um ano o que parece é que o Egito ainda está alerta. “Nada está acabado. Vamos ter de esperar para ver o que fazem os irmãos muçulmanos e ainda há que ver Mubarak numa prisão de verdade”.

O sentimento de que se pode falar e dizer não ao sistema se expressa até nos lugares mais sagrados. Zizo, morador de um pequeno povoado da região norte, conta que outro dia, na mesquita, quando o imã (sacerdote muçulmano) falava mal dos jovens que haviam morrido nos dias de luta de janeiro de 2011, um rapaz que estava rezando se levantou e gritou: “ `não fale de política no púlpito. Limite-se às coisas de Alá´. Isso é coisa que nunca aconteceu, interpelar um imã. Agora acontece. Se pode falar”. Nos dias duros da revolução 84 pessoas foram assassinadas pelas forças de repressão. São mártires e ai daquele que ousar dizer que isso não é verdade.

Nada para celebrar

O dia 25 de janeiro é um feriado nacional no Egito bem antes da vitória da revolução – celebra-se o dia da vitória das tropas egípcias contra o exército britânico em 1952 – mas, hoje, o que era uma festa da polícia virou hora da ação popular. Daí que por todo o país se armaram protestos e aglomerações. As marchas começaram nesse dia e encerraram no dia 27, sexta-feira, que é dia de descanso para os muçulmanos, o que permite que todos possam sair às praças para protestar.

No Cairo milhões de pessoas foram às ruas, mas a movimentação podia ser vista em cada cidadezinha do país. As coisas ainda estão inacabadas e os motivos pelos quais morreram pessoas ainda não se cumpriram. Muhamad M. tem 33 anos e há 12 anos trabalha no comércio de Luxor. É formado em história, mas a carreira de professor no Egito é bastante amarga e ele decidiu atuar no turismo. Nos dias de convulsão do janeiro passado também fechou seu negócio e se foi ao Cairo. “Aqui no Egito existe um dado histórico bem interessante. A cada 100 anos fazemos uma revolução. A última foi em 1922, contra os ingleses, então era certo que algo haveria de passar agora”.

Ele conta que quando Mubarak assumiu o poder em 1981 o povo do Egito acreditava na sua proposta. As gentes ainda viviam em estado de guerra, por conta dos conflitos contra Israel (primeiro com Nasser, derrotado e depois com Al Sadat, vitorioso), muitos haviam morrido e tudo o que se queria era paz. E foi isso que Mubarak prometeu. “O fato é que os primeiros dez anos de governo foram bons. A guerra acabou, havia paz, ele começou a reestruturar o turismo, o dinheiro começou a entrar, havia contato com o povo, os professores, os jornalistas. Isso foi importante para nós”.

De qualquer forma todo esse desenvolvimento era promovido pelas instituições financeiras estadunidenses e também a dívida externa cresceu muito. Também havia o forte apoio político dos EUA uma vez que tendo Mubarak como aliado era fortalecida a política de ocupação estratégica da porta oriental. Em 1990, quando o Iraque atacou o Kuwait, os Estados Unidos cobraram a fatura e pediram ajuda ao então presidente. Ele imediatamente se colocou contra a invasão e mandou soldados para lutar com o Kuwait.

De repente Mubarak se viu procurado por vários chefes de estado, o Egito era um espaço estratégico na proposta de destruição do Iraque encampada pelos Estados Unidos, e começou a achar que era como um faraó, filho de deus. Nesse período a dívida externa de sete bilhões de dólares foi perdoada e ele se entregou totalmente aos interesses dos Estados Unidos. “Foi nessa época que ele começou a agir como dono do Egito e já aí começaram os protestos. A coisa começou a esquentar mesmo foi no ano 2000 quando Mubarak anunciou que estava preparando seu filho, Gamal Mubarak, para assumir a presidência. Ninguém queria isso, Gamal era muito jovem, sem experiência e havia outras pessoas no Egito mais capacitadas para o cargo. Foi desde aí que começou a se gestar a revolução”.

Ibrahim Y., 44 anos, é ativista político e está na luta contra Mubarak desde o final dos anos 90. Segundo ele, os protestos e as manifestações que eram feitas até janeiro de 2011 eram pequenos e restritos aos militantes socialistas ou ligados a movimentos mais radicais como a irmandade muçulmana – que hoje controla a Assembleia do Povo. “Nos anos 90 houve ataques radicais, muita violência do estado, e depois de 2000 já fazíamos protestos nas praças, mas éramos quatro ou cinco”.

Foi só depois de 2005 (ano da quinta eleição consecutiva de Mubarak) que, com a expansão da internet, uma juventude conectada começou a divulgar nos blogs e nas redes sociais as falcatruas do governo egípcio, tornando as informações que antes circulavam em ambientes restritos, internacionalizadas. Mubarak colocou em ação as forças de inteligência e de repressão até que, em dezembro de 2010, os militares invadiram um café onde estava um jovem blogueiro – Khaled Saaed, 28 anos – conhecido nacionalmente por seus escritos críticos, e o golpearam até a morte. Foi o estopim que detonou o processo revolucionário. Milhares de pessoas saíram às ruas em protesto contra a violência das forças do governo. “No começo foi um movimento de pura raiva. As pessoas saíam às ruas exigindo justiça pelo assassinato de Khaled. Depois, com a força que ia se formando na rua, o movimento começou a se politizar. O povo foi vendo que dava para exigir mais. Mubarak era um ladrão, estava esgotando o Egito. Desde aquele momento, os egípcios entendiam que era hora de ele deixar o poder”.

A revolução ainda não se cumpriu

O que se viu no Egito no mês de janeiro de 2011 o mundo todo acompanhou. Milhões nas ruas, acampamentos gigantescos, revide violento da ordem, até que em fevereiro, depois de muitas mortes, feridos e presos, a força popular logrou depor o homem que governara por 30 anos e que preparava seu filho mais velho para outra fase da “dinastia”. Desde aí o país foi se preparando para uma nova fase, com eleições diretas, escolha de uma Assembleia do Povo e preparação de nova Constituição. Mas, o que aparecia como uma grande vitória popular foi tendo outras feições.

Uma junta de governo provisória foi formada por militares, coisa que não agradou ninguém. Por conta disso os protestos voltaram a acontecer. Além disso, familiares dos jovens mortos durante o conflito seguem acampados na Praça Tahrir exigindo julgamento e condenação do ex-presidente. Mubarak, que já tem mais de 80 anos, foi preso, mas, como dizem os egípcios, está num “cárcere de ouro”, com todas as regalias. O processo de eleição dos membros da Assembleia do Povo foi demorado e só terminou neste janeiro com a instalação oficial.

O Egito é dividido em 27 províncias e em cada uma delas as eleições aconteceram separadamente em várias etapas. A eleição presidencial só virá em junho, embora haja muita manifestação pela antecipação do processo. Os egípcios não querem mais saber de ser governados por militares. Por outro lado, coisas muito sutis foram acontecendo durante o ano que passou. Por ser um partido bem mais organizado e com vida anterior muito presente na vida nacional, a Irmandade Muçulmana logrou maioria (71%) nas cadeiras da nova Assembleia do Povo que tem 508 membros, dos quais apenas dez são mulheres. Desse número, 100 serão escolhidos para preparar a nova Constituição e isso promete novos embates. Com a vitória avassaladora dos muçulmanos nas eleições e sua consequente hegemonia há o risco de o país entranhar na vida política nacional os pressupostos religiosos. Tanto que no dia da instalação da Assembleia, Mamdouh Ismail, membro do partido salafista Al-Asala fez o seu juramento dizendo: a Assembleia do Povo construirá uma nova constituição que será respeitada, desde que não se coloque contra o Corão (livro sagrado dos muçulmanos). Houve tumultos, gritarias, confusões e protestos dos liberais (que detêm 17% das cadeiras), o que mostra que esse não será um embate fácil.

Comenta-se que os muçulmanos teriam feito um acordo tácito com a junta militar garantindo que o parlamento vai interferir sobre os assuntos do exército e em contrapartida que o exército não interferiria na redação da nova Constituição. Isso não é desconhecido de boa parte dos militantes sociais, mas a maioria da população não tem acesso a essas “filigranas” do poder. Muita água vai passar por baixo dessa ponte. Entre os que estiveram nas ruas para depor Mubarak o sentimento é de esperança e esses “detalhes” não parecem importar, até porque as gentes são muito religiosas e não veem mal nenhum que o Corão comande a vida. “Nós já experimentamos o comunismo (Nasser), não deu certo. Al Sadat não deu certo. Depois tentamos Mubarak, também não deu. Agora vamos dar uma chance aos muçulmanos. Se eles não fizerem o que tem de ser feito a gente tira eles”, diz Muhamad.

Já entre os militantes de organizações sociais mais antigas o ceticismo é bem explícito. “O povo votou nos muçulmanos porque não teve como conhecer a ideia dos demais grupos. No Egito, o candidato precisa de muito dinheiro para fazer uma campanha política. Nossos grupos não tiveram como bancar. Como os muçulmanos estavam mais solidamente organizados, tiveram mais recursos. Foi a vitória do dinheiro”, diz Mustafa H. Além disso, os muçulmanos fizeram uma campanha vinculando-se a uma oposição ferrenha a Mubarak, coisa que não é bem verdade, conta Mustafa. “Durante o governo de Mubarak a irmandade fez muitos acordos, não é tão oposição assim. Mas, vamos ver o que vai dar. Aguardaremos vigilantes, prontos para atuar”.

De certa forma esse ceticismo se expressou muito claro nas manifestações do aniversário da revolução. No dia 27, quando a Praça Tahrir estava tomada por mais de quatro milhões de pessoas foi possível observar três grupos bem determinados. O dos muçulmanos, o dos civis/liberais e os socialistas. Sem sombra de dúvidas os dois últimos formavam maioria. Quando os líderes muçulmanos tentaram discursar falando em “celebração”, as vozes se ergueram. Não há celebração. Nada se cumpriu. Mubarak não foi condenado, não teve eleição presidencial, não tem Constituição. “O que há é o processo em curso”, insiste Ibrahim. “Nós não queremos cortar cabeças, nem o terror. Nós queremos paz, mas queremos que os responsáveis pelos massacres do povo sejam julgados e condenados. Há muitos generais de Mubarak ainda por aí, dentro do exército”. De fato, boa parte dos ministros e estado maior de Mubarak está encarcerada, mas muitos conseguiram fugir para os Estados Unidos ou outros países. Um dos mais odiados é Zahy Hawas, que durante 15 anos dirigiu o Museu do Cairo, e que está abrigado nos EUA. “Esse homem roubou muitas riquezas do nosso povo, é o rei dos ladrões. Nos dias de conflito na Praça Tahrir foram seus homens que atearam fogo no museu e foram eles que roubaram objetos valiosos. O que desapareceu do museu foram obras bem específicas, muito cotadas, coisa que só ele poderia saber. Ele fugiu para os Estados Unidos, o grande ladrão ocidental. Foram os homens de Mubarak que saquearam e incendiaram. Não foi o povo”.

Isso é o que conta Neder Y, de 43 anos. Segundo ele, nos dias de conflito Mubarak mandou soltar da prisão centenas de criminosos, os armou e os mandou atuar contra o povo. “Naqueles dias a gente montava barricadas em frente aos monumentos para protegê-los, os trabalhadores protegiam os hotéis, os turistas. O povo foi quem protegeu as riquezas do Egito. Os saqueadores foram os homens de Mubarak, inclusive foram eles que incendiaram a biblioteca. Tem provas. Nós aqui amamos nossa história, respeitamos o patrimônio cultural”. Essa proteção também foi organizada nesse janeiro de 2012 quando a Biblioteca de Alexandria e o Museu do Cairo estiveram fechados, guardados pelos guias de turismo e gente do povo, visando impedir qualquer ato de vandalismo pelas forças aliadas a Mubarak.

A história seguirá seu curso

O Egito é um gigante de riquezas e belezas. Sua cultura remonta há mais de cinco mil anos, tem um milhão de quilômetros quadrados de território bastante cobiçado, está numa posição estratégica, na entrada do mundo oriental. Detém o canal de Suez, tem saídas para dois mares, o Mediterrâneo e o Vermelho, é o quinto no mundo em produção de gás, tem bastante petróleo, possui centenas de minas de ouro, produz o melhor algodão do mundo, movimenta um fluxo de 14 milhões de turistas ao ano.

Dentro do país está o rio mais longo do mundo, o Nilo, detém a quarta maior represa e o maior lago artificial do planeta, o Nasser, com 500 quilômetros de largura. Dos seus 85 milhões de habitantes, 67% estão na faixa etária de 18 a 40 anos. É feito de gente jovem e ávida de mudanças. “Nós vamos dar uma chance aos muçulmanos. Vamos esperar dois anos. Ver o que fazem. Não vamos tolerar alianças com os Estados Unidos, eles roubam nossas riquezas e nos deixam dívidas. Nós queremos trabalhar, produzir, desenvolver o país. Queremos uma vida melhor para nossos filhos e netos. Esse é o desejo dos egípcios. Simples assim”.

Para os que ainda seguem vigilantes nos protestos, nas praças, nas ruas, é fato de que o Egito está vivendo uma nova fase, apesar de todas as incógnitas. “Nós mudamos tudo, tiramos os políticos, os jornalistas, os professores. Começamos uma nova época. Estamos ensinando nossas crianças a partir de novos pressupostos, vamos recomeçar, vamos fundar a Segunda República”, diz Ibrahim. Ele mostra que conhece a política internacional e diz gostar muito de Lula (ex-presidente brasileiro). “A nós, falta um líder como Lula, que unisse o país. Mas, ainda assim, se houvesse um, não permitiríamos que cometesse o erro que Lula cometeu. Lula deu dinheiro para os pobres (bolsa-família), e isso não é certo. Não somos animais para só comer. Precisamos é de oportunidade, trabalho. Garanta o trabalho e nós seguimos em frente”.

E assim segue o Egito, cheio de esperanças e contradições. Junho já está às portas, muitos são os pré-candidatos à presidência, mas a lógica eleitoral é bastante viciada. Como é o dinheiro quem dá as cartas parece quase certo que aqueles que comandaram o processo de mudança, inclusive dando as vidas, não serão os que hegemonizarão o poder. O que virá será uma nova experiência que os egípcios enfrentarão com a valentia de quem acredita no “maktub” (destino). Embora nas ruas se possa perceber claramente que existe uma juventude disposta a fazer o destino acontecer com as próprias mãos.

• Jornalista de Florianópolis/SC


Um certo pajé Lourenço

* Por José Ribamar Bessa Freire

Na cerimônia de formatura nesta quinta-feira, 23 de fevereiro, de alunos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), havia seis índios, cuja permanência no ensino superior foi apoiada pelo projeto Rede de Saberes, o que me fez lembrar um certo pajé indígena que viveu na Amazônia no século XVIII. Fiquei pensando no destino diferente desses jovens índios e do pajé Lourenço, cuja história merece ser lembrada.
Era assim que se chamava: Lourenço, um sábio, que na sua comunidade de origem "acumulava funções de caráter religioso e médico". Ele conhecia as plantas e ervas medicinais da Amazônia, cada uma por seu nome, sabia para que serviam, e usava esse saber para, com ervas e rezas, curar os enfermos. Por isso, foi preso como “feiticeiro”, em 1737, não se sabe onde, provavelmente no rio Japurá – acredita-se – já que ele chegou a Belém do Pará escoltado por uma tropa de resgate, que naquele ano havia subido aquele rio recrutando índios para o trabalho compulsório.
Quem nos fala do pajé é o historiador e padre português Serafim Leite (1890-1969) na sua monumental Historia da Companhia de Jesus no Brasil, de dez tomos e mais de cinco mil páginas. Ele fuçou os arquivos europeus durante algumas décadas, os de Portugal, da Itália e da Espanha, entre outros.
Apoiado em fragmentos de documentos, Serafim Leite reconstitui a vida de "um tal Lourenço", o pajé, que viveu 21 anos sempre como serviçal no Colégio de Santo Alexandre, em Belém, “com muito bom procedimento". O padre Lucas Xavier, em seu Diário de 1756-1760 citado por Serafim Leite, dá um atestado de boa conduta ao pajé: "Não era homem de mulheres nem de aguardente: só uma vez o vi um tanto alegre, que é muito para índios”.
Durante mais de duas décadas, Lourenço ficou proibido de exercer a pajelança. Escondeu o seu saber. No lugar de curar e de rezar, foi carregar água para o lavatório dos padres – “raras vezes faltava nele”. A outra obrigação era “cuidar do horto do Colégio, plantando legumes, cheiros e flores”. Lourenço morreu no dia 27 de setembro de 1758 e foi enterrado na própria igreja do Colégio de São Alexandre, “debaixo do estrado da banda de São Miguel”, sepultando com ele os saberes que foi proibido de exercitar.
Serafim Leite diz que registrou o caso do pajé Lourenço para ilustrar um ponto que ele acha importante de esclarecer, relacionado a dois tópicos geradores de tensão: de um lado, os conflitos entre as religiões indígenas versus o catolicismo apostólico e romano e, de outro, as contradições entre o uso da língua portuguesa e das línguas indígenas, o pajé era proibido de falar a sua língua materna.
O jesuíta português, que em sua adolescência viveu no Rio Negro, onde trabalhou como seringueiro e conviveu com os índios, tenta justificar o fato de aquele homem, que era um sábio indígena – “dotado de boas qualidades” – acabasse se transformando em um obscuro auxiliar doméstico. Não consegue esconder seu incômodo de historiador do século XX com o destino daquele pajé do século XVIII, que foi obrigado a abdicar de seus saberes e de sua língua para limpar penico dos missionários.
Por isso, Serafim Leite tenta justificar a ação missionária, argumentando que essa foi a alternativa mais correta para o Brasil moderno, alternativa que para ele excluía as demais:
- “O que seria melhor para o Brasil, continuar o pajé a ser o primeiro ou o segundo de sua Aldeia, mas pagão, ou o homem útil, trabalhador, morigerado, cristão em que se trocou? Se a primeira alternativa fosse a mais útil para a civilização brasileira, a conclusão seria que se deviam arrasar os arranha-céus do Rio de Janeiro e as fábricas de São Paulo e as Universidades do Brasil, para voltarmos todos à choupana da selva, a pescar à flecha e a contar pela lua...”
Ou seja, já que não se pode explodir os edifícios e fábricas, que se toque fogo, então, nas malocas. Da mesma forma que os colonizadores de ontem e de hoje, o padre e historiador não admite a possibilidade de, no Brasil, conviverem a aldeia e a cidade, a maloca e o arranha-céu, o conhecimento tradicional do pajé e o conhecimento acadêmico da Universidade, a língua portuguesa e as línguas nativas, a medicina indígena e a medicina ocidental. Não via que uma necessariamente não exclui a outra. Ignorava a diversidade, a convivência dos diferentes.
Por causa dessa intolerância, o pajé Lourenço teve de abdicar de sua própria religião e de sua língua. Sua história está cheia de lacunas: não se tem informações sobre sua identidade, etnia, língua materna, lugar preciso de origem, nem detalhes sobre sua relação com os padres da Companhia. Sabe-se, no entanto, que foi condenado como feiticeiro e que seu saber não foi reconhecido como legítimo.
As universidades brasileiras, ao longo da sua curta existência, trataram os índios como o Colégio Santo Alexandre, no Pará, tratou o pajé Lourenço: excluindo-os, a eles, suas línguas e seus saberes. Agora, a presença dos índios está beneficiando as instituições de ensino superior, que ganham muito com a presença deles em seus corredores, salas de aula, bibliotecas e laboratórios.
Essa abertura tem trazido, em alguns casos, mudanças significativas na grade curricular, com introdução de novas disciplinas e a criação de novos cursos como de agroecologia, línguas indígenas, educação ambiental e outros. Na Universidade Federal de Minas Gerais, o Curso de Formação Intercultural de Professores abrigou mais de cem índios, que foram submetidos a um vestibular, onde seus conhecimentos tradicionais tinham algum peso.
É que os índios que hoje freqüentam as universidades levam com eles para dentro da instituição um conjunto de conhecimentos. Foi assim com os Ticuna, Kokama, Kambeba e Kaixana da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) que se formaram no final do ano passado no Alto Solimões e que não foram obrigados, como o pajé Lourenço, a apagar de sua memória o que sabiam.
Foi assim também com os seis índios formados pela UEMS há três dias: Indianara Machado (Enfermagem), Leosmar Antonio e Mary Jane Souza (Ciências Biológicas), Jailson Joaquim (Física), Noemi Francisco (Letras-Inglês) e Genivaldo Vieira (Direito).
Esse dado historicamente novo representa uma tentativa de convivência de culturas, línguas e saberes tão diferentes, mas todos eles legítimos. Tudo isso baseado num princípio claro e cristalino que Marcos Terena gosta de enunciar: "Posso ser o que você é, sem deixar de ser quem sou".

Publicado no “Diário do Amazonas” em 26 de fevereiro de 2012.

• Jornalista