Ressurreições diárias
A
vida é uma sucessão de pequenas mortes, sucedidas das respectivas
ressurreições, até o dia em que ocorre a extinção inexorável e
definitiva, da qual não conseguimos mais retornar. E não se trata
de metáfora. O processo é literal. Periodicamente, todas as nossas
células, sem nenhuma exceção, se reproduzem. As matrizes, após a
reprodução, morrem. As novas, recém-geradas, assumem suas funções
e sustentam a vida do conjunto. Somos, pois, a simulação do
universo. Somos vidas compostas de muitas outras vidas, até certo
ponto autônomas: as nossas células, que nascem, se alimentam,
excretam, se reproduzem e morrem, para que o ciclo recomece por dias,
meses, anos e décadas até.
“Ah!,
peguei você, Pedrão! Você não escreveu outro dia que a
ressurreição é uma impossibilidade biológica? E agora se
contradiz e afirma exatamente o contrário!”, deve estar pensando,
agora, aquele sujeito chato, que vive vigiando meus textos para neles
detectar contradições. Ora, ora, ora, nós, humanos, somos todos
contraditórios por natureza, posto que, não necessariamente o tempo
todo. Ademais, distingo a intensidade da morte. Melhor diria, das
mortes. Há aquelas pequeninas, simbolizadas pela desaparição das
células envelhecidas, substituídas por suas descendentes jovens. E
há a grande, a imensa, a definitiva, quando todo o organismo entra
em colapso e começa a se decompor. Desta não há, de fato, como
ressurgir.
Aliás,
a esse propósito, um dos meus poetas favoritos, do qual tive o
privilégio, orgulho e honra de privar da sua amizade, Mauro Sampaio,
compôs um poema basilar, que partilho com vocês tratando do
assunto. É intitulado, justamente, de “Ressurreição”, e diz:
“Na
ressurreição da minha saudade, quanta chuva!
Árvore
ao longe!
Mais
além, muito além da linha do futuro,
o
passado nítido como um dia de sol!
Hoje
é dia de festa.
A
ressurreição dos sonhos em minha saudade!
A
ressurreição da vida em meus sonhos!
E
a mágoa, não sei de quê é uma saudade estranha.
E
as angústias tão veladas que lancei à vida,
estão
chegando em ciranda com a vida!/
hoje
o dia é de ressurreição.
Rondo
o meu passado/e vou tão distraído e tão a gosto
que
escorrego e caio por inteiro dentro dele!”
Viver,
meus amigos (e inimigos) é uma arte. Após a grande morte, aquela
definitiva e inexorável, não ressurgimos das cinzas (ou do pó),
como aquela ave mitológica (que consta do brasão da minha cidade,
Campinas, e do logotipo da academia de letras da qual faço parte, a
Campinense), a fênix. Enxergamos as coisas, via de regra, de forma
distorcida, com a lente focada ao inverso que, em vez de aumentar,
diminui o tamanho do que é focalizado e, por isso, acabamos por nos
dar mal. Abominamos, por exemplo, a rotina e achamos que quando
entramos nesse diapasão, estamos em decadência. Ledo engano. O
filósofo espanhol Julián Marias, considerado o principal discípulo
de José Ortega y Gasset, de cujas ideias comungo, escreveu, em um
ensaio publicado em 5 de dezembro de 1987 pelo Caderno de Sábado do
“Jornal da Tarde” de São Paulo: “Precisamente a vida cotidiana
é que é importante. A vida é cotidiana, primariamente cotidiana. O
excepcional, portanto, tem sempre menos importância. O que dá vida
a um país, em todos os aspectos, desde a compostura à felicidade, é
justamente a vida privada cotidiana, a vida de cada dia”.
Marias,
por sinal, tocou em um conceito que poucas pessoas compreendem e que
por isso definem com extrema ambiguidade: a felicidade. O que é ser
feliz? Como atingir esse estado de bem-aventurança? É possível
perpetuá-lo? São questões feitas ao longo do tempo e do espaço e
respondidas ora de uma forma, ora de outra, ora de uma terceira e
assim por diante, com respostas rigorosamente opostas umas às
outras, sem que se chegue a qualquer conclusão. Uma das melhores
definições que já li a respeito foi dada não por algum filósofo
que tenha se debruçado sobre o tema por toda a sua vida e feito
fundamentais descobertas a respeito. Seu autor é um romancista. Mais
especificamente, brasileiro. Mais especificamente ainda, gaúcho (meu
conterrâneo). Foi Érico Veríssimo.
Um
dos livros mais marcantes desse escritor (e que não é o mais citado
das dezenas que escreveu), é “Olhai os lírios do campo”. É um
tratado de filosofia, mas sem aquele jargão enjoado de que os
filósofos se utilizam. As lições são transmitidas de maneira
simples, direta, e objetiva, na linguagem cotidiana do povão, bem
coloquial, sem perder, todavia, a beleza literária. Já perdi a
conta de quantas releituras fiz desse livro e cada vez que o releio,
descubro coisas novas, que me passaram despercebidas em releituras
anteriores.
Sobre
o conceito de felicidade, Érico Veríssimo coloca as seguintes
palavras na boca de um dos personagens (na página 284, parágrafo 4º
do capítulo 24): “Felicidade é a certeza de que a nossa vida não
está se passando inutilmente. São estes intervalos entre um
trabalho cansativo e outro trabalho cansativo, estes intervalos em
que a gente pode conversar com um amigo, brincar com os filhos, ler
um bom livro... O erro é pensar que o conforto permanente, o bem
estar que nunca acaba e o gozo de todas as horas são a verdadeira
felicidade. Como agora eu vejo claro! É preciso o contraste...”
E
Érico não está certo? Aliás, com outras palavras, disse a mesma
coisa que o filósofo Marias. Ou seja, que a essência da vida está
no cotidiano. Que o ideal seria que, a cada ressurreição do que
convencionei chamar de “pequena morte”, devêssemos ressurgir
melhorados, se não fisicamente, pelo menos no aspecto espiritual.
Porque, como Mauro Sampaio (e provavelmente todas as outras pessoas
sensíveis e de bom-senso), “rondo o meu passado/e vou tão
distraído e tão a gosto/que escorrego e caio por inteiro dentro
dele!”
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
“Felicidade é a certeza de que a nossa vida não está se passando inutilmente". Dá desespero ver a vida passar inutilmente. Deve ser por isso que todos querem ser felizes.
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