O
jornalismo que não vê e se omite
*
Por Luiz Cláudio Cunha
O
Brasil ficou chocado com os 84 segundos de imagens em preto e branco
que assistiu nos principais telejornais do país em 28 de agosto de
2017. Mostravam as cenas violentas de um assalto à luz do dia numa
avenida movimentada de São Bernardo do Campo, SP, quando o ladrão
esmurra o vidro de um carro, arranca a motorista que o dirigia, joga
a mulher no chão e arranca com o veículo.
A
omissão: aos 59 segundos surge alguém para ajudar, enquanto os
carros passam sem parar. Foram
cenas captadas às 8h da manhã do sábado anterior, 22, pelo sistema
de segurança da prefeitura, num trecho da avenida José Fornari, no
bairro Ferrazópolis, e divulgadas pelo jornalABCD
Maior. Repetida
exaustivamente, a sequência impressiona pela brutalidade, que todo
mundo vê. Os telejornais viram e reprisaram. Mas, o jornalismo
fracassou em sua missão básica ao não ver, ali, o que devia ter
visto, registrado e denunciado.
Um
homem de menos de 30 anos aproveita o trânsito parado, circunda por
trás de um Honda Fit, como se fosse cruzar a avenida, e aos 10
segundos da gravação se volta de repente em direção à porta da
motorista. Com inesperada violência, começa a esmurrar o vidro. O
carro tenta arrancar. O primeiro murro acontece aos 15 seg. Aos 16
seg, um segundo murro. Aos 17, o terceiro. Ele força a abertura da
porta aos 18, que se abre no segundo seguinte.
Com
violência, puxa para fora a motorista, uma senhora de 64 anos, e a
joga sobre o canteiro central da avenida, aos 25 segundos. Ele toma o
lugar da motorista e arranca com o carro. Outra mulher, que estava no
banco de passageiro, consegue sair pela porta direita, pega uma bolsa
caída na avenida e vai ao encontro da amiga, caída sobre o canteiro
central. Aos 59 seg, enfim, um homem cruza a avenida ao encontro das
duas mulheres, para prestar algum socorro.
A
motorista de 64 anos, a psicopedagoga Rosa Maria Costa, deslocou o
tornozelo e sofreu quatro fraturas na perna direita. O ladrão acabou
capotando o carro na Via Anchieta e, no acidente, ainda atropelou um
homem de 65 anos. Um carro parou para socorrer, o motorista desceu e
o ladrão roubou o outro carro, desaparecendo. Um fato nada estranho
na Grande São Paulo, onde acontece um roubo ou furto de carro a cada
quatro minutos. Entre janeiro e julho, na maior região metropolitana
do país, 74.129 veículos foram surrupiados por bandidos.
O
que mais espantou na cena de violência em São Bernardo, que todo
mundo viu, foi a cena que a imprensa não viu, não comentou ou
desprezou. Ninguém da TV, rádio ou jornal, nenhum colunista, nenhum
blogueiro, nenhum militante das ubíquas redes sociais destacou o
vergonhoso espetáculo coletivo de acovardamento, omissão,
negligência e falta de solidariedade que marcou o entorno da
agressão na avenida.
Está
tudo lá, gravado para sempre na câmera da TV e na consciência
envergonhada de quem tudo viu e nada fez. Ou fez errado. Como o
motorista do carro branco, provavelmente um Corolla, parado
imediatamente atrás do carro atacado pelo assaltante.
Quando
o agressor desferiu seu terceiro murro na porta, aos 17 seg, o
motorista do Corolla começa a dar ré no carro. Se tivesse feito o
contrário, acelerando em direção ao atacante, que não estava
armada, ele teria frustrado a agressão e afugentado o agressor. Em
vez disso, o carro branco recua uns dois ou três metros, lentamente.
No momento em que Rosa Maria é jogada na avenida, o Corolla vira à
sua direita e desaparece de cena atrás de uma van parada ao lado,
com um motorista, também inerte, à direção. O carro roubado, o
Corolla e a van arrancam quase ao mesmo tempo, enquanto a vítima
rolava na avenida.
No
canto inferior direito da tela, três homens passam pela calçada,
indiferentes ao drama das duas mulheres no canteiro central. Só aos
59 seg aparece um homem de jaqueta preta, que atravessa a avenida
para socorrer as duas mulheres. Durante os 84 segundos que dura a
cena gravada, o que se vê e ninguém comenta é um desfile
pusilânime de indiferença, de gente que não se importa, que não
vê, não olha, não para e não comete nenhum gesto de
solidariedade. Além da van e do Corolla que fugiram da cena do
crime, outros quatro carros, dois ônibus e um caminhão passaram
pelo local, no sentido do carro assaltado. Do outro lado da avenida,
no sentido inverso, passaram 21 carros neste curto espaço de tempo —
e ninguém parou, nem por curiosidade.
Nesta
sociedade cada vez mais integrada por redes sociais, cada mais
conectada por ferramentas como Facebook, Twitter e WhatsApp, cada vez
mais interligada por geringonças eletrônicas que deixam todo mundo
plugado em todos a todo momento, a cena brutal de São Bernardo
escancara o chocante estágio de uma civilização cada vez mais
desintegrada, mais desconectada, mais desintegrada. É uma humanidade
apenas virtual, falsa, narcisista, cibernética, egoísta, que se
decompõe em pixels e se desfaz na tela fria da vida cada vez mais
distante e desimportante.
Ninho
da omissão
A
polícia, sempre fria e técnica, recomenda não reagir em casos de
assalto, para evitar danos maiores. No episódio deprimente de Rosa
Maria, tratava-se não de reagir, mas de defender uma vida, de
proteger um ser humano, de cessar uma agressão, de impedir um abuso,
obrigação que cabe a todos e a cada um de nós. A reação de um,
um apenas, motivaria o auxílio de outro, e mais outro, numa sucessão
de atos reflexivos de autodefesa em grupo que explicam a evolução
do homem da caverna para o abrigo solidário da civilização.
Ninguém
fez isso — na hora certa, com a firmeza necessária, com a
generosidade devida, com a presteza impreterível. Esse espetáculo
coletivo de insensibilidade e de crua indiferença atropelou toda a
imprensa, em suas várias plataformas. Naufragaram até mesmo os
programas e apresentadores que vivem da violência explícita e
cotidiana de nossas cidades, grandes ou pequenas, com seu festival
interminável de ‘mundo cão’.
Os
programas das grandes redes de TV, que cruzam as manhãs e tardes do
País com a tediosa banalidade de sangue, morte e violência do
cotidiano, se refestelaram com a caso de São Bernardo, reprisando
várias vezes a cena da avenida. Como sempre, no estilo furioso e
mesmerizado de todos, despontou a tropa de elite da truculência na
TV, sob o comando de José Luiz Datena (Band), Marcelo Rezende
(Record) e Ratinho (SBT). Aos gritos, aos berros, no jeito gritado de
um e de todos, ecoaram como de hábito a visão policial e
teratológica da realidade, deixando de lado a preocupação social
de uma segurança pública falida e desarvorada pelas balas perdidas
da incompetência dos governantes.
Só
esqueceram do entorno, da cena explícita de covardia e indiferença
das pessoas que testemunham, assistem, presenciam, mas não
interferem, não intervêm, não reagem. Ninguém lembrou do exemplo
de São Bernardo para denunciar esta falsa sociedade compartilhada,
mais preocupada em seus interesses compartimentados, que nenhuma rede
social humaniza ou aproxima, a não ser virtualmente.
Um
jornalismo que não vê o que é necessário, que não percebe o
contexto além do texto, descumpre a sua missão. Esconde a
realidade, ao invés de revelá-la. O repórter fiel ao seu ofício
deve estar atento ao murro do assaltante no vidro do carro. Mas deve
prestar atenção maior ao Corolla branco e aos carros que passam por
ali, indiferentes ao que se vê e ao que acontece.
O
bom jornalismo sabe que é nesse ninho da omissão que cresce a
violência e prospera o fascismo.
*
Luiz Cláudio Cunha é
jornalista, é
autor de
Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008)
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