sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Dom Quixote - Ivan Junqueira


Dom Quixote


* Por Ivan Junqueira


Vai a passo Dom Quixote
em seu magro Rocinante.
Sancho Pança o segue a trote
pela Mancha calcinante.
Tudo é pedra, arbusto seco,
erva má, ermas masetas.
Não se escuta nem o eco
do vento a ranger nas gretas.
O que buscam o fidalgo
e o seu álacre escudeiro?
Peripécias, duelos, algo
que lhes recorde o cordeiro
quando abriu os sete selos
e fez soar as trombetas?
Buscam o quê? O que fê-los
ir tão longe em suas bestas?
Pois esse Alonso Quijano,
ao deixar a sua aldeia,
só buscava – áspero engano –
exumar o que, na teia
de suas tontas leituras,
eram duendes, hierofantes,
castelos, leões, armaduras,
dulcinéias, nigromantes
e uma Espanha onde a justiça,
há tanto um tíbio sol posto,
fosse um bem que só na liça
pudesse ser recomposto.
Mas do triste cavaleiro
era tanto o desatino
que na cuia de um barbeiro
vira o elmo de Mambrino,
nas ovelhas ao relento,
uma tropa de meliantes,
e nos moinhos de vento,
uns desgrenhados gigantes.
Dom Quixote nunca via
o que aos seus pares narrava,
pois que só lia e mais lia,
e ao ler é que se encantava.
E assim do texto as imagens
saltavam – bruscas centelhas –
no amarelo das paisagens,
no ocre encardido das telhas.
Foi quando então, claro e fundo,
percebeu que o que ia vendo
nada tinha com o mundo
sobre o qual andara lendo.
Ilusão e realidade,
heroísmo e covardia,
sensualismo e castidade,
prosa pedestre e poesia
eis os pólos do conflito
que somente se harmoniza
no humor de um cáustico dito
que nos fustiga e eletriza.
E o que redime o manchego
não é tanto aquilo que ama,
e sim o dom de si mesmo
no amor que doa a uma dama,
sem nenhuma recompensa
que não seja a do fracasso
ou da estrita indiferença
de quem sequer viu-lhe um traço.
De fala mansa e discreta,
que ao calar é que se escuta,
seu percurso é a linha reta
entre o que tomba e o que luta.
Vai a passo Dom Quixote,
ya el pie en el estribo.
A morte agora é seu mote.
Vai a sós. Vai só consigo.


* Poeta e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário