quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Editorial - Simulação da vida



Simulação da vida 


Os sonhos são uma espécie de simulação de uma vida paralela à real, que nunca existiu no plano concreto, feita pelo nosso cérebro, às vezes com requintes de extraordinário realismo. Dizem os especialistas que uma pessoa normal sonha durante várias horas em todas as noites. Nós é que não nos lembramos da grande maioria. Não posso garantir que seja assim. Um ou outro, apenas – em geral os que temos nos segundos que antecedem o despertar – é que ficam na memória, difusos, sem detalhes, sem nuances, como uma coisa muito vaga. E mesmo estes acabam sendo esquecidos para sempre horas depois que levantamos, pois não pensamos mais neles. Alguns, raríssimos, talvez na proporção de um em um milhão ou mais, nos impressionam de tal forma, que jamais os esquecemos. Basta que fechemos os olhos para que os rememoremos, e na íntegra, como um filme gravado em vídeo.

Lembro-me, por exemplo, nitidamente de um sonho que tive há cerca de vinte anos, envolvendo um lugar belíssimo, onde nunca estive, e sequer sei se existe. Tratava-se de uma colina, onde havia um bosque com árvores de porte médio e flores, muitas flores. Lembro-me até mesmo do cheiro das plantas, de um perfume delicioso. De onde eu estava, via-se, a uns cinquenta metros abaixo, em um vale, um caudaloso rio, de águas bastante límpidas, cujas margens continham pinheiros, por onde navegava um desses barcos parecidos com os que levam turistas para cima e para baixo através do Mississipi, nos Estados Unidos. No sonho, eu estava bastante feliz (e não era para menos), numa espécie de festa ao ar livre, ao lado de uma mulher de extraordinária beleza e rara doçura, que não tinha as feições de ninguém que conheci.

Onde meu subconsciente foi buscar a matéria-prima para a elaboração desse enredo, com tantos detalhes? Aliás, apesar de haver um número muito grande de estudos a respeito, tudo o que se refere aos sonhos está cercado de especulação e crendices. Há os que juram que eles são sempre premonitórios, avisos cifrados, alertas que captamos subconscientemente e que, se formos capazes de decifrar, nos preveniremos contra algum perigo futuro ou ficaremos atentos para aproveitar alguma feliz oportunidade. Outros afirmam que não passam de projeções de desejos reprimidos, de uma espécie de válvulas de escape das nossas frustrações. Outros, ainda, asseguram que são somente divagações, fantasias, "estripulias", molecagens do cérebro, que permaneceria ativo enquanto o restante do organismo repousa. Quem estaria certo? Todos? Ninguém?

Conclui-se que ninguém sabe, com certeza, o que está dizendo ao se referir a esse assunto. De qualquer forma, os especialistas garantem que os sonhos são de fundamental importância para a saúde física e mental das pessoas. Nisso estão com a razão. O interessante, no meu caso, é que todos são em branco e preto. Não distingo as cores. Mas gosto de sonhar. E mais ainda, de lembrar do que sonhei, mesmo quando se trate de pesadelo. O dia seguinte parece que se torna mais "leve", menos opressivo, menos assustador. Esse exercício de projeção do cérebro no que eu chamaria de "transrealidade" se presta, como seria de se esperar, à exploração dos poetas. O galês Dylan Thomas, por exemplo, diz a respeito: "Nossos sonhos de eunuco, infecundos sob a luz...enfeitam as negras noivas, as viúvas da noite".

Já Guilherme de Almeida escreve, em "Acalanto":

"Dorme.
Sobre o teu sono há um pensamento
vindo na asa de fuga do momento.

Mandaste o olhar para não sei que exílios:
nem o peso da luz pesa em teus cílios.

O ponteiro parou contra o quadrante
seu dedo de silêncio vigilante.

Dorme! Há outros sonos estirados pelas
sombras, no acampamento das estrelas.

Dorme a noite da flor! Sonha a meu lado,
rosa dormida à beira de um pecado".

Que os sonhos sirvam de tema para poesias, é compreensível, já que são, em si, uma metáfora. Mas compará-los a um poema é heresia. Essa pintura de um quadro, essa projeção de uma visão, essa reprodução de um desejo, esse registro de um estado emocional feitos apenas com palavras, são atos, sobretudo, inteligentes. Mais do que isso: sublimes. Para praticá-los é necessário contar com um talento, com um dom, com uma aptidão divina, ao contrário das divagações de um cérebro sem o controle do consciente. Nesse aspecto, estou com Fernando Pessoa, que afirma: "Não pondero sonhos; não me sinto inspirado: deliro". A poesia é isso: delírio. E os sonhos? Mistério!


Boa leitura!

O Editor.

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Nenhum comentário:

Postar um comentário