Simulação da vida
Os sonhos são uma espécie de simulação de uma vida paralela à real, que nunca existiu no plano concreto, feita pelo nosso cérebro, às vezes com requintes de extraordinário realismo. Dizem os especialistas que uma pessoa normal sonha durante várias horas em todas as noites. Nós é que não nos lembramos da grande maioria. Não posso garantir que seja assim. Um ou outro, apenas – em geral os que temos nos segundos que antecedem o despertar – é que ficam na memória, difusos, sem detalhes, sem nuances, como uma coisa muito vaga. E mesmo estes acabam sendo esquecidos para sempre horas depois que levantamos, pois não pensamos mais neles. Alguns, raríssimos, talvez na proporção de um em um milhão ou mais, nos impressionam de tal forma, que jamais os esquecemos. Basta que fechemos os olhos para que os rememoremos, e na íntegra, como um filme gravado em vídeo.
Lembro-me,
por exemplo, nitidamente de um sonho que tive há cerca de vinte
anos, envolvendo um lugar belíssimo, onde nunca estive, e sequer sei
se existe. Tratava-se de uma colina, onde havia um bosque com árvores
de porte médio e flores, muitas flores. Lembro-me até mesmo do
cheiro das plantas, de um perfume delicioso. De onde eu estava,
via-se, a uns cinquenta metros abaixo, em um vale, um caudaloso rio,
de águas bastante límpidas, cujas margens continham pinheiros, por
onde navegava um desses barcos parecidos com os que levam turistas
para cima e para baixo através do Mississipi, nos Estados Unidos. No
sonho, eu estava bastante feliz (e não era para menos), numa espécie
de festa ao ar livre, ao lado de uma mulher de extraordinária beleza
e rara doçura, que não tinha as feições de ninguém que conheci.
Onde
meu subconsciente foi buscar a matéria-prima para a elaboração
desse enredo, com tantos detalhes? Aliás, apesar de haver um número
muito grande de estudos a respeito, tudo o que se refere aos sonhos
está cercado de especulação e crendices. Há os que juram que eles
são sempre premonitórios, avisos cifrados, alertas que captamos
subconscientemente e que, se formos capazes de decifrar, nos
preveniremos contra algum perigo futuro ou ficaremos atentos para
aproveitar alguma feliz oportunidade. Outros afirmam que não passam
de projeções de desejos reprimidos, de uma espécie de válvulas de
escape das nossas frustrações. Outros, ainda, asseguram que são
somente divagações, fantasias, "estripulias", molecagens
do cérebro, que permaneceria ativo enquanto o restante do organismo
repousa. Quem estaria certo? Todos? Ninguém?
Conclui-se
que ninguém sabe, com certeza, o que está dizendo ao se referir a
esse assunto. De qualquer forma, os especialistas garantem que os
sonhos são de fundamental importância para a saúde física e
mental das pessoas. Nisso estão com a razão. O interessante, no meu
caso, é que todos são em branco e preto. Não distingo as cores.
Mas gosto de sonhar. E mais ainda, de lembrar do que sonhei, mesmo
quando se trate de pesadelo. O dia seguinte parece que se torna mais
"leve", menos opressivo, menos assustador. Esse exercício
de projeção do cérebro no que eu chamaria de "transrealidade"
se presta, como seria de se esperar, à exploração dos poetas. O
galês Dylan Thomas, por exemplo, diz a respeito: "Nossos sonhos
de eunuco, infecundos sob a luz...enfeitam as negras noivas, as
viúvas da noite".
Já
Guilherme de Almeida escreve, em "Acalanto":
"Dorme.
Sobre
o teu sono há um pensamento
vindo
na asa de fuga do momento.
Mandaste
o olhar para não sei que exílios:
nem
o peso da luz pesa em teus cílios.
O
ponteiro parou contra o quadrante
seu
dedo de silêncio vigilante.
Dorme!
Há outros sonos estirados pelas
sombras,
no acampamento das estrelas.
Dorme
a noite da flor! Sonha a meu lado,
rosa
dormida à beira de um pecado".
Que
os sonhos sirvam de tema para poesias, é compreensível, já que
são, em si, uma metáfora. Mas compará-los a um poema é heresia.
Essa pintura de um quadro, essa projeção de uma visão, essa
reprodução de um desejo, esse registro de um estado emocional
feitos apenas com palavras, são atos, sobretudo, inteligentes. Mais
do que isso: sublimes. Para praticá-los é necessário contar com um
talento, com um dom, com uma aptidão divina, ao contrário das
divagações de um cérebro sem o controle do consciente. Nesse
aspecto, estou com Fernando Pessoa, que afirma: "Não pondero
sonhos; não me sinto inspirado: deliro". A poesia é isso:
delírio. E os sonhos? Mistério!
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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