As vinhas da ira
Iniciei
o texto de recente crônica com a seguinte afirmação: “Há livros
que, mesmo sendo de ficção, causam muito mais impacto do que
milhares de reportagens sobre determinado tema, principalmente se
escritos com alma e verdade e por escritores que realmente conheçam
o ofício”. Como exemplo, citei os romances “Les miserables” e
“Notre Dame de Paris”, de Victor Hugo, mas me detive, sobretudo,
em “As vinhas da ira”, de John Steinbeck.
No
que esta obra se distingue das demais, de outros escritores, ou mesmo
deste? Na verossimilhança com a realidade da história narrada. Na
convicção com que o autor trata de assunto tão delicado (tanto que
os originais manuscritos não têm quase rasuras, acréscimos e
cortes, o que demonstra que a história foi escrita como que num
único “sopro”). Na linguagem sóbria e equilibrada de Steinbeck.
Eu poderia enumerar ainda uma dezena de virtudes, mas não o farei.
Deixo isso por sua conta, na leitura desse memorável romance.
“As
vinhas da ira” foi escrito em 1939, quando os Estados Unidos
começavam a se recuperar, posto que lentamente, da Grande Depressão,
que sucedeu ao “crash” na Bolsa de Valores de Nova York, em 1929.
Foi um período duríssimo, caracterizado pelo desemprego em massa e
por suas perversas sequelas.
O
livro denuncia a exploração (a que ainda são submetidos
trabalhadores itinerantes e sazonais, os bóias frias dos
norte-americanos), através da história da família Joad. Premida
pela necessidade, após a perda de suas terras em Oklahoma para os
grandes banqueiros, por não poder honrar o pagamento da hipoteca em
decorrência de uma safra desastrosa, despejada sumariamente de sua
casa e sem ter para onde ir, ela migra para a Califórnia.
Esse
Estado, que no século XIX havia presenciado a “corrida do ouro”,
era, então, tido e havido como a terra da promissão, dos sonhos dos
deserdados da fortuna, uma espécie de Jardim do Éden. E agora não
mais por causa do precioso metal, mas dos seus pomares verdejantes e
seu clima ameno. Era para ali que uma imensa multidão de
norte-americanos empobrecidos seguia, em busca de vida melhor.
Esse
tipo de migração em massa realmente ocorreu ao longo da década de
30 do século XX. Como os descendentes de mexicanos, que hoje
representam a mão de obra barata explorada pelos grandes fazendeiros
produtores californianos de frutas, em sua ânsia de lucros a
qualquer custo, e são chamados, pejorativamente de “chicanos”,
na ocasião eram, sobretudo, os pequenos agricultores de Oklahoma que
constituíam essa massa de manobra e eram tratados (igualmente com
deboche e desprezo) de “oakies”.
Mas
os migrantes só perceberam a “roubada” em que se meteram quando
chegaram à Califórnia. Poucos conseguiam emprego e quem tinha essa
“sorte”, era tratado em regime de semiescravidão. Seus
acampamentos, miseráveis e insalubres, eram como campos de
concentração. Eram norte-americanos explorando, impunemente, outros
norte-americanos (ao contrário do que se faz hoje em relação aos
latinos).
Steinbeck
despertou, de fato, com seu romance, a consciência nacional para
essa tragédia humana. Mas pagou preço duríssimo, diria proibitivo,
por sua ousadia. A maneira como concluiu “As vinhas da ira”
exemplifica toda sua magistralidade, ou melhor, genialidade. Poucos
escritores teriam a coragem de terminar um livro dessa forma. E os
que se arriscassem, dificilmente deixariam de resvalar para a
pieguice.
Nos
parágrafos finais do romance, Steinbeck narra que a família Joad –
esfacelada e desfalcada pela morte dos avós, pela fuga de Tom, que
para defender um trabalhador, agrediu um guarda que o espancava e se
tornou foragido da justiça, e pela morte do bebê, que Rosa de
Sharon deu à luz – abrigava-se, precariamente, da enchente que
atingia a região e afetava, sobretudo, os acampados, em um barracão
abandonado.
Os
refugiados “oakies” não tinham para onde ir e sequer o que
comer. Muitos morriam de fome, outros estavam doentes e alguns
agonizavam Num canto, um deles estava morrendo de inanição.
Rosa
de Sharon havia acabado de ter o bebê, que morrera a seguir. Estava
com os peitos repletos de leite. E não teve dúvidas. Em
cumplicidade com a mãe, teve um gesto de suprema abnegação e
solidariedade. Deu os seios para o moribundo mamar e dessa forma
conseguir sobreviver. Steinbeck descreve assim a dramática e solene
cena, com que encerrou o romance:
“-Sciu! – fez Mãe. Lançou
olhares a Pai e tio John, que estavam contemplando o doente. Olhou
Rosa de Sharon, envolta no cobertor. Seus olhares fugiram dos de Rosa
de Sharon e tornaram a encontrá-los. E as duas mulheres liam tudo
nas respectivas almas. A moça ofegava, respirava com um ritmo curto
e apressado.
Ela
disse:
-
Sim.
Mãe
sorriu:
-
Eu sabia. Eu sabias que tu me compreendeu. – Olhou as mãos
enlaçadas com firmeza sobre o colo.
Rosa
de Sharon disse baixinho:
-
Saiam vocês todos... por favor. – A chuva fustigava fracamente o
teto.
Mãe
inclinou-se sobre a filha e com a palma da mão afastou as mechas
revoltas que lhe caíam sobre a testa e lhe deu um beijo na testa.
-
Bom, andem depressa, vão saindo – disse Mãe, pondo-se de pé. –
Fiquem aí fora um pouquinho.
Ruthie
abriu a boca para dizer qualquer coisa.
-
Sciu! – fez Mãe. – Fica quieta e vá saindo, - Empurrou-a porta
afora, e o mesmo fez com os outros. Por fim, pegando o menino pela
mão, também saiu, fechando a porta guinchante atrás de si.
Por
um minuto, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no centro do galpão, em
cujo teto cochichava a chuva. Depois ergueu-se pesadamente,
enrolando-se mais no cobertor. Lentamente, dirigiu-se ao canto escuro
e quedou-se a olhar o rosto sofredor do desconhecido, lendo-lhe nos
olhos arregalados e cheios de temor. Então, com vagar, dobrou os
joelhos e deitou-se ao lado dele. O homem esboçou um movimento
negativo com a cabeça, um movimento fraco e muito lento. Rosa de
Sharon desfez-se do cobertor, deixando os seios desnudos.
-
Tem que ser – falou, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a
cabeça a si. – Assim – disse. Apoiou-lhe a cabeça com a direita
e seus dedos lhe sulcaram suavemente os cabelos. Ergueu os olhos e
seu olhar percorreu o galpão escuro e seus lábios cerraram-se e ela
sorriu misteriosamente”.
Ufa!
É de tirar o fôlego! O que dizer, depois de ler uma descrição
como essa? É coisa de gênio! Só mesmo um escritor genial, como
John Steinbeck (que se confessava admirador do russo Fedor
Dostoievski) consegue dar absoluta verossimilhança a uma cena e,
principalmente, a uma atitude tão inverossímil e improvável como
esta! Qualquer comentário a mais seria supérfluo e redundante.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Nenhum comentário:
Postar um comentário