Amor
ao livro
O
livro – e não importa seu formato; se o atual, tão prático e
funcional, ou se o antigo, escrito em papirus, em placas de barro
cozido, em peles de carneiro etc.etc.etc. – é, sem dúvida, uma
das maiores invenções do homem. Hoje, já o temos em versão
eletrônica e podemos lê-lo quer na tela do computador, quer, o que
é mais prático e funcional, em um reduzido tablete
ou num smartphone.
Evoluiu, pois, quanto à apresentação, sem perder, no entanto, seu
caráter utilitário. A humanidade não pode prescindir de livros. Ao
contrário, precisa mais, e mais, e mais deles.
É
através deles que se torna possível transmitir, geração após
geração, o que há de mais característico e distintivo no Homo
Sapiens: sua inteligência. Conhecimentos colhidos através de
estafantes e ingentes experiências deixam de se perder, registrados
em suas páginas. Meditações, especulações, crônicas de
acontecimentos, emoções e tudo o mais que caracteriza nossas vidas
fica encerrada entre suas capas à disposição de quem se interesse
em conhecê-las. Tudo isso e muito mais permanece como patrimônio da
humanidade.
Estima-se
que atualmente existam, em bibliotecas particulares, públicas e nas
prateleiras de livrarias, pelo menos 20 exemplares diferentes por
habitante do Planeta. Ou seja, há cerca de 140 bilhões de obras
distintas, versando sobre todo e qualquer assunto que se possa
imaginar. Há livros tratando desde a base teórica da ciência até
a magia negra. Há desde os mais profundos e eruditos tratados de
filosofia aos que registram meras receitas culinárias.
Romances,
poemas, novelas, ensaios, contos, crônicas, biografias, a História
dos povos, compêndios científicos e uma infinidade de assuntos
estão, pelo menos potencialmente, à disposição dos mais de sete
bilhões de habitantes do Planeta e dos outros tantos que vierem a
nascer. E isso tudo redigido em cerca de 2.500 línguas e dialetos
diferentes falados pelos homens. Pode-se dizer, sem nenhum receio de
errar, que tudo o que alguém já pensou, sentiu ou fez, em qualquer
tempo ou lugar, pode ser encontrado em algum livro.
Os
temas a serem explorados, contudo, estão longe de se esgotar. Há
uma infinidade de assuntos sendo, a cada instante – e que
certamente ainda o serão em algum dia – tratados por alguém, em
algum lugar. As mudanças constantes, políticas, econômicas,
sociais, comportamentais e até geográficas, seguem sendo
registradas e tendem a continuar a ser enquanto nossa espécie povoar
a Terra.
Como
não há limite para o conhecimento, por conseguinte, sempre haverá
a necessidade que as novas descobertas e novas criações sejam
igualmente registradas em livros, para que a transitoriedade humana
não extinga o conhecimento que a espécie conquistou e reuniu e que
precisa ser preservado para as gerações que vierem a
suceder a atual.
Tanto
por este caráter utilitário, portanto, quanto pelo companheirismo
que este objeto tão simples, mas tão precioso, proporciona, ele
desperta imenso amor nas pessoas que convivem com ele e têm a exata
compreensão da sua importância. Em alguns casos, esse apego
irresistível transforma-se em paixão. E esse sentimento é
manifestado de formas as mais variadas. Por exemplo, conservando esse
amigo silencioso e versátil sempre ao alcance da mão, na cabeceira
da cama em nosso criado-mudo, na escrivaninha de trabalho, nas
estantes da biblioteca, na mala de viagens, em nosso carro etc. Ou
seja, em todos os lugares onde possa estar disponível para consulta
e para leitura.
Há,
entretanto, os que mantêm essa relação de amor ainda mais estreita
e personalizada. Deixam em seus livros sua marca pessoal, a prova de
sua estima, uma espécie de “anel matrimonial”, consubstanciando
uma ligação “até que a morte os separe”. São os que
personalizam seu acervo com os chamados “ex-libris”, selos de
propriedade adotados quer por colecionadores particulares, quer por
bibliotecas públicas. No primeiro caso, muitas dessas coleções,
contendo raridades bibliográficas preservadas e muito bem
conservadas, passam de pai para filho, não raro por quatro ou cinco
gerações, e sempre com acréscimos no acervo.
Todavia,
em certos casos, premidos pelas circunstâncias, esse elo de amor
familiar pelos livros é desfeito abruptamente. Quando isso ocorre,
volumes e mais volumes, de extrema raridade, não raro únicos,
acabam sendo vendidos para sebos a preços irrisórios, aos quilos,
como papéis velhos, para “desocupar lugar”, por herdeiros
indiferentes e néscios, que não sabem identificar os tesouros que
têm em mãos.
A
revista semanal editada pelo jornal espanhol “El País”, em sua
edição de 27 de abril de 1986 (que tenho em mãos) trouxe
interessante reportagem sobre “ex-libris”. A certa altura, relata
o caso de uma pessoa que adquiriu, em um sebo de Barcelona, preciosa
coleção, de volumes raríssimos, que trazia, em uma das capas, essa
marca de propriedade do antigo dono.
Raciocinemos.
A biblioteca de determinada pessoa diz muito sobre sua personalidade
a quem saiba interpretar esses “sinais”. Permite que se desvende,
por exemplo, sua maneira de agir, o que pensava, quais eram suas
aspirações individuais e sociais e outras tantas coisas. Afinal,
foram os livros que leu que lhe fixaram na mente boa parte dos
conceitos que a nortearam; foram eles que a ajudaram a corrigir
determinadas deficiências de caráter e, provavelmente, foram eles,
também, “estopins” de sua criatividade (literária ou não).
Ao
se desfazer dessa biblioteca, que provavelmente herdou (dificilmente
o proprietário original se desfaria dessas preciosidades por
qualquer motivo), esse sujeito “tapado” de Barcelona, que colocou
à venda “os sonhos e a sabedoria” que alimentaram a alma do seu
ancestral, desrespeitou, profundamente sua memória. Desnudou,
publicamente, o que o avô (ou o pai) pensou, sonhou, sentiu e quis.
Eu me sentiria – caso de alguma forma pudesse prever que alguma
coisa parecida ocorreria com minha biblioteca – profundamente
decepcionado e ofendido. Quanto aos “ex-libris”... voltarei,
oportunamente, a tratar do assunto.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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