Na
eleição, os escravos da palavra
*
Por José Ribamar Bessa Freire
As
promessas demagógicas de muitos candidatos nessas eleições de
outubro me fazem lembrar a reação dos escritores Antônio Callado e
Ana Arruda quando lhes contei, em 1978, num jantar na rua Aperana,
Leblon, uma história dos índios Tupinambá, que eu acabara de ler
nas crônicas dos capuchinhos Claude d’Abbeville e Yves d’Évreux.
Os dois padres franceses, que fundaram São Luís do Maranhão, em
1612, se gabam de haver “civilizado” esses índios, que fizeram
“tanto
progresso que era como se tivessem passado toda sua vida no meio dos
franceses”. Apresentam um
inventário desses "avanços":
-
“Há
dois anos os franceses ensinam os Tupinambá a tirar o chapéu ao
cumprimentar as pessoas, beijar as mãos, fazer reverência, dar
bom-dia, dizer adeus, ir à igreja, benzer-se, ajoelhar-se, juntar as
mãos, fazer o sinal da cruz, bater no peito diante de Deus, escutar
a missa, ouvir o sermão embora não entendam nada, usar o Agnus
Dei,
ajudar o padre a rezar missa, sentar-se à mesa, colocar o guardanapo
diante de si, lavar as mãos, pegar a carne com três dedos, cortá-la
no prato, brindar à companhia; em suma, fazer todas as outras
civilidades existentes entre nós” (D’Evreux,
p.159).
É
longa a lista das “boas maneiras” mencionadas por Yves d’Evreux,
cuja ideia de “civilização” e de refinamento consistia em
converter o “outro” em clone do “eu”, só faltou dizer que os
Tupinambá estraçalhavam um coq-au-vin acompanhado
de um vinhozinho Bordeaux e da exclamação: - “Ouh
là là. J’adore le vrai plaisir de la table!”.
Faltava, porém, algo para aqueles índios serem definitivamente “bem
educados”, como se constata na história que reproduzi para Ana e
Antônio Callado. Foi assim.
A
guerra
Os
Tupinambá da costa do Salgado, aliados dos franceses no Maranhão,
organizavam anualmente expedição à boca do rio Amazonas para
guerrear os Pacajá, seus tradicionais inimigos. Era um assunto
interno deles, uma espécie de Fla x Flu, mas os franceses, em 1613,
se ofereceram para acompanhá-los com suas armas de fogo, exigindo em
troca que os presos de guerra se tornassem seus escravos. Embora isso
não fizesse parte do ritual ancestral da guerra, os Tupinambá
aceitaram. Firmaram um compromisso que aqui recrio de forma resumida,
reelaborando o ajuste feito:
-
Quantas canoas de guerra vocês podem levar? Quantos paneiros de
farinha? Quantos guerreiros? Quantos remadores? – perguntaram os
franceses.
Os
Tupinambá responderam a todas as perguntas e os franceses agendaram
com eles o dia e o local de largada daquela grande expedição
intercultural e bilíngue, com centenas de canoas, remadores e
guerreiros, nunca antes vista na Amazônia. Um dia antes do
combinado, os franceses, metódicos e disciplinados, ancoraram suas
galeotas na praia de Tapuitapera e lá acamparam com artilharia,
arcabuzes, mosquetes e canhões, ansiosos, à espera da “farinha
de guerra que vinha misturada ao carimã para maior conservação.
(D’Evreux,
pg 116).
Mas
nada de os Tupinambá chegarem. Passou um dia, outro e mais outro, e
nem sombra deles. Os franceses, desenganados e aborrecidos,
decidiram, então, levantar acampamento. Eis que quinze dias depois
chegam os índios, cheios de alegria e entusiasmo, entoando cânticos
de guerra em suas canoas abarrotadas de farinha, remeiros e
guerreiros. A pedido do almirante François de Rasilly, que estava
furioso, o padre cobrou do morubixaba Japi-açu:
-
Vocês nos deram um cano. Não honraram a palavra empenhada.
-
Ei, padre, calma. Trouxemos tudo aquilo que prometemos – retrucou
Japi-açu.
-
Mas não chegaram no dia combinado – insistiu o capuchinho
- Du
calme, mon père! Só
demoramos um pouco porque no caminho pintou uma festa numa outra
aldeia. A gente falou que ia chegar antes? Falamos sim, mas e daí?
Nós não somos escravos de ninguém, não somos escravos nem das
nossas palavras – disse sabiamente o cacique.
Legado
histórico
Essa
foi a frase que encantou o casal de escritores, embora eu não saiba
se a Ana Callado ainda se lembra do episódio. A fala do cacique nos
revela que entre os índios existiam outras formas de conceber as
relações, sem se escravizar ao relógio que eles nem possuíam. As
regras estabelecidas pela cultura Tupinambá eram mais flexíveis. A
“pontualidade britânica” não era um valor cultuado por eles,
cuja medida de tempo era outra. Afinal, os Tupinambá não tinham que
“bater ponto” na entrada de suas roças.
Aliás,
suíços, alemães e japoneses ficam ainda hoje horrorizados com
alguns atrasos de minutos – graças ao bom Deus - nos horários de
partida dos trens na França. Portanto, du
calme, mon père.
As reverências, tirar o chapéu, beijar a mão, como o tempo mostrou
com o seu desuso, não são as únicas formas civilizadas de
cumprimentar as pessoas. Ainda mais que os franceses não estavam em
seu próprio território e, por cortesia, não deviam impor uma forma
de viver na terra que não era deles.
Quem
pode se aproveitar de episódio semelhante é um certo candidato para
quem os índios deixaram de herança aos brasileiros sua
“indolência”. Será que não “cumprir com a palavra” é
outro legado histórico que explica porque as promessas de campanha
eleitoral quase nunca são efetivadas? Ou isso é populismo barato, é
enganação, que nada tem a ver com ver com os índios?
Os
abolicionistas
As
promessas de campanha são apenas palavras que o vento leva. O circo
de horrores protagonizado por candidatos corruptos e mentirosos, no
caso do Rio - Garotinho, Eduardo Paes, Romário, Índio da Costa –
é uma herança da “velha política”. Indica que eles podem fazer
qualquer discurso mirabolante porque sabem mesmo que não é para
realizar. É para enganar o eleitor. Ali o único que, como vereador,
já comprovou ser “escravo da palavra” é o Tarcisio Motta
(Psol).
Da
mesma forma no Amazonas. O atual governador, Amazonino Mendes,
candidato a reeleição, há dez anos concorreu para prefeito de
Manaus, mesmo processado por crimes contra o sistema financeiro. Ele
resumiu seu programa na época em entrevista à Rádio Amazonas FM:
- “Vou
administrar Manaus de dentro de um ônibus, bem aparelhado, vou
transformá-lo em gabinete itinerante. Não é o povo que deve ir à
Prefeitura, a Prefeitura é que tem de ir onde o povo está. Vou
comprar unidades móveis de saúde com equipamentos modernos que vão
percorrer os bairros, oferecendo atendimento primário e distribuição
gratuita de remédios”. Amazonino
ganhou e governou quatro anos. Cadê o que prometeu? Necas de
pitibiribas!
Talvez
a retratação feita por um dos capuchinhos relatada ao casal Callado
nos ajude a entender o real interesse dos atuais candidatos e as
razões pelas quais se tornaram "abolicionistas da palavra":
“Os
Tupinambás vivem sem cuidado, sem preocupar-se com os bens
temporais, não dão tratos à imaginação para amontoar ouro ou
prata tanto mais quanto lhes desconhecem o valor. Por isso mesmo, em
vez de censuras, merecem louvores e se acham a si isentos de trapaças
e de fraudes, de roubos e de furtos, tão comuns no comércio (e
na política, acrescentamos nós).
Essa é a causa da felicidade dos Tupinambás e essa a vantagem que
levam sobre os outros”.
(D’Abeville, p 235)
Pois
é, né!
P.S.
- 1) Yves D'Évreux: História
das coisas mais memoráveis ocorridas no Maranhão nos anos de 1613 e
1614.
Rio. Fundação Darcy Ribeiro. 2009. 2) Claude d'Abbeville. História
da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras
circunvizinhas. São
Paulo / Belo Horizonte. EDUSP/ Itatiaia. 1975
*
Jornalista e historiador.
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