sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Lula, o filho do Brasil, mais uma vez - Urariano Mota


Lula, o filho do Brasil, mais uma vez


* Por Urariano Mota


Ontem, quando pensei em escrever esta coluna, lembrei do filme “Lula, o filho do Brasil”. A lembrança veio a propósito do que passamos hoje com a prisão do maior presidente brasileiro.


Lembro que a maioria viu o filme com algumas ideias preconcebidas, porque nunca na história falaram tão mal de uma obra do cinema. Nos jornais, na televisão, nas revistas, antes da estreia se anunciava o filme como propaganda eleitoral, que não passava de vigarice, de uso desonesto da máquina pública do então presidente Lula. Depois, nos jornais, o filme mudou para a categoria de obra medíocre, indigna de ser vista. Nos textos e chamadas veio enfim a mensagem que não era mais subliminar, era explícita: ‘Grande público, corra desse filme’. Pois sim.

Já no começo da projeção, houve um choque no peito, que tomava conta da gente, enquanto via as cenas: terra seca, brasileiros partindo de pau de arara rumo a uma tentativa de vida melhor. Mas com a diferença, e daí vinha o maior choque, de saber que um desses brasileiros partiu da carência de tudo para se tornar o presidente mais popular do mundo. Era como se fosse uma fábula real. Melhor: era uma fábula verdadeira, um Andersen de final feliz, o patinho menos que feio que se transformava em muito mais que um cisne. Mas então a gente pigarreava, espantava a emoção, e caía em outras imagens comoventes. Por exemplo, as ideias dos pobres na crença do valor do trabalho. Em um tempo de tanta sacanagem, como eram e são bem-vindas essas lições/ideias. Havia uma cena irresistível, quando o Lula adolescente suja com óleo o macacão limpo para se exibir à vizinhança e à mãe. Ele queria dizer: “Eu sou um trabalhador, mãe. Eu agora sou gente”. Ela sorria. E vinha crescendo com Lula, a partir daí, até ser ultrapassada pela vida do rebento, a pessoa dessa mãe. Ela, ali como aqui, ali como em todo lugar, era uma fundadora de personalidade. No entanto, não existia apelação, apelo sentimental, sentimentalismo em “Lula, o filho do Brasil”. Os olhos mais impiedosos, frios e críticos já haviam observado que o filme não possuía ritmo ou tensão dramática. Ou seja, nele não havia um conflito básico, ou conflitos cruciais desenvolvidos à emoção veloz e com paciência multiplicados. Nem mesmo, o que seria a propaganda pura, dentro da “gloriosa” tradição de Hollywood: o herói sozinho contra o resto do mundo, o self-made-man típico, que se fez sozinho. É inesquecível a cena do discurso no estádio, quando um megafone coletivo é construído pela multidão de sindicalistas, que gritam em sucessivas ondas o discurso de Lula.

(Tão presente, tão agora)

No filme não havia tampouco o cara de moral incorruptível. Pelo contrário, em mais de uma oportunidade vemos a sobrevivência esperta a favor do humano. Assim, um filho engana o pai analfabeto e escreve o contrário da vontade do pai, quando escreve à mãe que venha para São Paulo. (“Venha para não morrer”, sabemos.) Ou quando Lula, um secretário do sindicato, usa de toda a argúcia para ganhar o coração da mulher por quem estava apaixonado. (Dona Marisa, a brava companheira de jornada que seria para toda a vida) A verdade é que em mais de uma ocasião a gente via o personagem Lula transbordar das imagens, porque sabíamos algo da sua história e importância. Então sentimos, percebemos o personagem ir além das margens extremas da tela no cinema. Isso não se dava só pela duração do filme, pela quantidade de anos de vida selecionados – isso se fazia pelos momentos essenciais que ficavam ocultos. As coisas mais cruas e duras omitidas. Por exemplo, quando o Lula menino pegou da boca de um colega o chiclete mascado, pra saber o sabor que o chiclete tinha. Por exemplo, quando bebeu da água que até os animais rejeitavam. Ou a intensidade da dor de ver a mulher falecer de parto, como tantos pobres do Brasil já viram, e jamais conhecem a sua dor expressa. (Eu tentei, em “O filho renegado de Deus”)

Sempre é horrível o esquemático, o corte de qualquer filme na construção de um personagem. Os recursos com que a literatura conta não sobrevivem na cirurgia da montagem. Pior, a escolha no cinema nem sempre é a mais sensível: onde cortar, onde avultar, onde crescer. Lula, o personagem, sabíamos todos, e sabemos com mais certeza hoje, é maior que o PT, é bem maior que o sindicalismo, porque ele vem com a força da história, como uma encarnação da força que o povo tem. Dos muitos severinos, joões, marias e lindus. No fim do filme, na imagem imóvel da posse presidencial, ouvimos Luiz Gonzaga. Então nos levantávamos da cadeira, muito contra a vontade, com um pensamento: toda a luta, a luta toda valeu à pena. “Só trazia a coragem e a cara, viajando num pau-de-arara”, ouvimos. E concluíamos, em silêncio, ao sair do cinema: eu penei, mas aqui cheguei.

Assim foi em 2010. Mas a história da gente nunca está no fim, ou nunca chega ao fim como o esperado, porque há sempre um acidente que vem fora do script. Como podíamos ver, vir, antever o presidente mais popular do Brasil na cadeia? Como podíamos esperar que contra o maior líder do mundo se levantassem as vozes unidas do judiciário, da mídia e da representação mais corrupta do congresso? Como podíamos saber que os fascistas estavam chocando seus ovos de serpente e agora saem às ruas desbocados, despudorados, bestializados, como nunca deixaram de ser? Antes, eles estavam em silêncio, mas agora falam. Os animais falam no Brasil, como profetizou o Barão de Itararé. Pior, agem vestidos de juízes, ministros e comentaristas na grande mídia do capital.

A história faz uma atualização de um modo que não podíamos crer. Lula está preso. Mas antes no cinema, como agora além da tela, sabemos que a luta toda vale a pena. Este mal há de passar, como em outras vezes já passamos. Ou como tão bem expressou Graciliano Ramos, em Vidas Secas:
“- Tenho comido toicinho com mais cabelo, declarou Fabiano desafiando o céu, os espinhos e os urubus.
Não é? Murmurou Sinhá Vitoria sem perguntar, apenas confirmando o que ele dizia.
Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando”.

Já comemos toucinho com mais cabelo. Contra o céu da reação, os espinhos desta hora e os urubus togados, pouco a pouco uma vida nova há de se esboçar.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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