sábado, 18 de agosto de 2018

Editorial - Acumulação de hóspedes


Acumulação de hóspedes



O céu e a Terra são uma hospedaria onde todas as coisas fazem uma breve pausa. O tempo é a eterna acumulação de hóspedes”. Essa constatação, óbvio, não é minha, mas de alguém muito mais vivido e mais antigo que eu: do poeta chinês Li Po (que o dicionário do computador insiste em grafar “Li Pó”). Trata-se de personalidade das mais fascinantes, em torno da qual há muita lenda e pouquíssima (ou nenhuma) certeza. Até mesmo a época que viveu causa acesas polêmicas e ácidas controvérsias entre os pesquisadores.

Há fontes, por exemplo, que asseguram que seu nascimento ocorreu em 701 da nossa era. Outras, no entanto, situam-no por volta de 750. Quem está certo? Dificilmente saberemos, se é que alguém conseguirá, um dia, esclarecer, sem sombra de dúvidas, esse e outros aspectos da sua vida e da sua obra, como, aliás, em geral acontece cá no Ocidente sempre que se abordam fatos e personagens orientais.

Num ponto, porém, os estudiosos são unânimes, até com base nos magníficos poemas de Li Po que sobreviveram aos séculos e ao conseqüente esquecimento (como estes versos que caracterizam o tempo como “eterna acumulação de hóspedes” citados na abertura destas considerações): o poeta chinês era obcecado pela lua, pelo vinho e pela melancolia despertada pela solidão.

É dele este poema, intitulado “Reunião de amigos”, que diz:

Para lavar velhas mágoas
é preciso beber mil frascos.
As belas noites são feitas para as palavras puras.
A lua branca deve impedir o sono.
Ébrios nos deitaremos na montanha deserta.
Céu e terra nos servirão de colcha e travesseiro”.

Há quem assegure (não sei baseado no quê), que o poeta persa Omar Khayam, cujo nome completo era Ghiyath Al Din Abul Fateh Omar Ibn Ibrahim Al Khayyam, autor do imortal “Rubayiat”, que viveu entre 1048 e 1131 e que também era matemático e astrônomo, teria sofrido fortes influências do seu colega da China. Refiro-me, claro, ao verdadeiro Khayam, não ao “genérico”, que andou recentemente por aí, dando até entrevistas no Programa do Jô, na Rede Globo.

Tenho lá minhas dúvidas se o persa, de fato, chegou ao menos a ler os poemas do chinês. Existe, não nego, uma certa semelhança na temática de ambos, embora um tanto remota. Pode não passar de mera coincidência, o que é mais provável. Da minha parte, contudo, prefiro a poesia afirmativa de Li Po. Ademais, não me empolgo com o pessimismo que permeia a obra de Omar Khayam.

Mas voltemos ao verso que diz que “o tempo é a eterna acumulação de hóspedes”, tema destas minhas confusas e libérrimas considerações. Essa afirmação de Li Po suscita-me uma série de reflexões sobre a nossa fragilidade, a nossa efemeridade e, principalmente, sobre a nossa inexorável transitoriedade. Por exemplo: quantas pessoas já viveram no mundo desde o surgimento do primeiro exemplar da nossa espécie? Quem foi esse pioneiro, esse patriarca primitivo (e quem foi a respectiva matriarca, claro), cuja prole se multiplicou exponencialmente e atingiu quantidades insuspeitadas, que hoje ascendem a cerca de 6,5 bilhões de descendentes, cujos genes todos nós temos em nossa constituição orgânica? Foram 20 bilhões? Foram mais? Foram menos? Quantos? Ninguém sabe e jamais saberá!

Todos os dias, essa frágil e tão judiada “hospedaria” recebe milhões de novos “hóspedes”, que são as crianças que nascem ao redor do mundo, enquanto outro tanto de milhões de pessoas, de várias idades – desde bebês recém-nascidos a provectos anciões, alguns centenários – “encerra” suas contas e a deixa, em definitivo, para nunca mais regressar.

A imensa maioria será inexoravelmente esquecida, passados alguns escassos anos (e, em certos casos, meros dias), sem que sequer seus mais próximos descendentes se dêem conta da sua existência. Os que deixarão seus nomes registrados, por algum motivo especial (não importa qual) ou por alguma obra relevante, serão, proporcionalmente, raros, escassos, raríssimos.

Este é o meu maior susto, aquilo que mais me incomoda. Ou seja, a possibilidade concreta de não deixar a mínima pegada, o mais remoto rastro, o mais leve vestígio de que me “hospedei” nesse domo cósmico, de que amei, odiei, lutei, sofri, gozei, tive alegrias, tristezas, saudades e todos os outros sentimentos e emoções que caracterizam os seres humanos. De que, enfim, existi.

Não entro, aqui, no terreno da religião, no campo da fé, que se caracteriza por uma crença cega e irrestrita no incrível, no improvável e no que é impossível de comprovação. Minha educação, extremamente cartesiana e racional, voltada para o lado prático da vida, se rebela com essa probabilidade de desaparecer, sem deixar minha marca. Se, ao cabo de uma existência de alegrias e de sofrimentos, não importa de quantos anos, só nos restar o absoluto e inescapável esquecimento, será, convenhamos, um imenso, um absurdo, um inexplicável e misterioso desperdício de energias e de recursos. E não creio que a natureza (ou Deus?) seja tão perdulária!


Boa leitura!

O Editor.


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