Acumulação de hóspedes
“O
céu e a Terra são uma hospedaria onde todas as coisas fazem uma
breve pausa. O tempo é a eterna acumulação de hóspedes”. Essa
constatação, óbvio, não é minha, mas de alguém muito mais
vivido e mais antigo que eu: do poeta chinês Li Po (que o dicionário
do computador insiste em grafar “Li Pó”). Trata-se de
personalidade das mais fascinantes, em torno da qual há muita lenda
e pouquíssima (ou nenhuma) certeza. Até mesmo a época que
viveu causa acesas polêmicas e ácidas controvérsias entre os
pesquisadores.
Há
fontes, por exemplo, que asseguram que seu nascimento ocorreu em 701
da nossa era. Outras, no entanto, situam-no por volta de 750. Quem
está certo? Dificilmente saberemos, se é que alguém conseguirá,
um dia, esclarecer, sem sombra de dúvidas, esse e outros aspectos da
sua vida e da sua obra, como, aliás, em geral acontece cá no
Ocidente sempre que se abordam fatos e personagens orientais.
Num
ponto, porém, os estudiosos são unânimes, até com base nos
magníficos poemas de Li Po que sobreviveram aos séculos e ao
conseqüente esquecimento (como estes versos que caracterizam o tempo
como “eterna acumulação de hóspedes” citados na abertura
destas considerações): o poeta chinês era obcecado pela lua, pelo
vinho e pela melancolia despertada pela solidão.
É
dele este poema, intitulado “Reunião de amigos”, que diz:
“Para
lavar velhas mágoas
é
preciso beber mil frascos.
As
belas noites são feitas para as palavras puras.
A
lua branca deve impedir o sono.
Ébrios
nos deitaremos na montanha deserta.
Céu
e terra nos servirão de colcha e travesseiro”.
Há
quem assegure (não sei baseado no quê), que o poeta persa Omar
Khayam, cujo nome completo era Ghiyath Al Din Abul Fateh Omar Ibn
Ibrahim Al Khayyam, autor do imortal “Rubayiat”, que viveu entre
1048 e 1131 e que também era matemático e astrônomo, teria sofrido
fortes influências do seu colega da China. Refiro-me, claro, ao
verdadeiro Khayam, não ao “genérico”, que andou recentemente
por aí, dando até entrevistas no Programa do Jô, na Rede Globo.
Tenho
lá minhas dúvidas se o persa, de fato, chegou ao menos a ler os
poemas do chinês. Existe, não nego, uma certa semelhança na
temática de ambos, embora um tanto remota. Pode não passar de mera
coincidência, o que é mais provável. Da minha parte, contudo,
prefiro a poesia afirmativa de Li Po. Ademais, não me empolgo com o
pessimismo que permeia a obra de Omar Khayam.
Mas
voltemos ao verso que diz que “o tempo é a eterna acumulação de
hóspedes”, tema destas minhas confusas e libérrimas
considerações. Essa afirmação de Li Po suscita-me uma série de
reflexões sobre a nossa fragilidade, a nossa efemeridade e,
principalmente, sobre a nossa inexorável transitoriedade. Por
exemplo: quantas pessoas já viveram no mundo desde o surgimento do
primeiro exemplar da nossa espécie? Quem foi esse pioneiro, esse
patriarca primitivo (e quem foi a respectiva matriarca, claro), cuja
prole se multiplicou exponencialmente e atingiu quantidades
insuspeitadas, que hoje ascendem a cerca de 6,5 bilhões de
descendentes, cujos genes todos nós temos em nossa constituição
orgânica? Foram 20 bilhões? Foram mais? Foram menos? Quantos?
Ninguém sabe e jamais saberá!
Todos
os dias, essa frágil e tão judiada “hospedaria” recebe milhões
de novos “hóspedes”, que são as crianças que nascem ao redor
do mundo, enquanto outro tanto de milhões de pessoas, de várias
idades – desde bebês recém-nascidos a provectos anciões, alguns
centenários – “encerra” suas contas e a deixa, em definitivo,
para nunca mais regressar.
A
imensa maioria será inexoravelmente esquecida, passados alguns
escassos anos (e, em certos casos, meros dias), sem que sequer seus
mais próximos descendentes se dêem conta da sua existência. Os que
deixarão seus nomes registrados, por algum motivo especial (não
importa qual) ou por alguma obra relevante, serão,
proporcionalmente, raros, escassos, raríssimos.
Este
é o meu maior susto, aquilo que mais me incomoda. Ou seja, a
possibilidade concreta de não deixar a mínima pegada, o mais remoto
rastro, o mais leve vestígio de que me “hospedei” nesse domo
cósmico, de que amei, odiei, lutei, sofri, gozei, tive alegrias,
tristezas, saudades e todos os outros sentimentos e emoções que
caracterizam os seres humanos. De que, enfim, existi.
Não
entro, aqui, no terreno da religião, no campo da fé, que se
caracteriza por uma crença cega e irrestrita no incrível, no
improvável e no que é impossível de comprovação. Minha educação,
extremamente cartesiana e racional, voltada para o lado prático da
vida, se rebela com essa probabilidade de desaparecer, sem deixar
minha marca. Se, ao cabo de uma existência de alegrias e de
sofrimentos, não importa de quantos anos, só nos restar o absoluto
e inescapável esquecimento, será, convenhamos, um imenso, um
absurdo, um inexplicável e misterioso desperdício de energias e de
recursos. E não creio que a natureza (ou Deus?) seja tão
perdulária!
Boa
leitura!
O
Editor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário