quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Editorial - O celeiro da várzea


O celeiro da várzea



O futebol brasileiro abasteceu-se de craques, durante muitos e muitos anos, no farto celeiro do que se convencionou chamar de "várzea". São inúmeros os jogadores que serviram à Seleção Brasileira, e alguns até que foram campeões do mundo, que começaram jogando em times amadores, desses sem sede fixa, tendo como patrimônio somente um jogo de camisas, onde as pessoas pagam para jogar.

Muitos outros deixaram de ser aproveitados pelos clubes profissionais por uma questão de circunstância ou por burrice de treinadores, ou por cegueira dos dirigentes esportivos, os famosos "cartolas". É o caso de alguém que conheci em São Caetano do Sul.

Chamava-se Celso. Jogava no Flamenguinho da Vila Paula, uma dessas equipes formadas debaixo de um poste de iluminação, mas que dentro do campo mostrava uma técnica que não se vê a todo o momento no profissionalismo.

Sua "sede" social, emprestada, ficava nos fundos do "Bar do Baixinho", onde guardava suas taças e troféus, dispostos em quatro prateleiras de um enorme armário, além dos seus posters, faixas e medalhas. O segredo desse time, além do talento de grande parte dos jogadores, era a união. Era formado, exclusivamente, por pessoas do bairro, por operários, que tinham no futebol sua diversão de fim de semana. Treino, nem pensar.

O Celso era meia-esquerda, como Pelé, de quem, por coincidência, tinha alguns traços. Possuía um drible fácil, curto, rápido, progressivo e uma agilidade como a do Robinho, que o fazia escapar sempre ileso das botinadas dos zagueiros adversários. Raramente se machucou em algum jogo. E não por lealdade dos que o marcavam (pelo contrário), mas pela rapidez de raciocínio que tinha.

Era virtualmente um jogador perfeito. Além de driblar como ninguém, tinha uma visão de jogo rara. Sabia abrir espaços nas defesas, mas não era "fominha". Servia invariavelmente os companheiros em melhor colocação para o arremate. Tinha um chute preciso, potente, seco e com as duas pernas. Embora de estatura mediana – não mais do que um metro e setenta – sua impulsão extraordinária o levava a fazer praticamente a metade dos seus gols de cabeça.

O ano de ouro do Celso foi 1963, quando o Flamenguinho se sagrou o campeão amador da cidade. E apesar da ciumeira existente no time – isso existe em qualquer atividade e lugar – todos foram unânimes em atribuir-lhe o sucesso. E não foi para menos.

Nosso meia-esquerda (eu era o técnico da equipe na ocasião), foi o artilheiro não somente nosso, mas do campeonato, que era disputadíssimo e causava verdadeiras guerras entre vilas, com brigas generalizadas ao final de cada jogo.

Caso tivesse uma chance real no profissionalismo, teria ido longe. Não havia quem não se encantasse com o seu futebol. Era o homem invariavelmente visado pelos adversários. Até no gol, quando preciso, o Celso jogou, e muito bem, numa determinada partida em que o nosso goleiro foi expulso.

Em meados de 1963, através do ex-zagueiro Nena, o jovem jogador foi encaminhado para treinar na Portuguesa de Desportos, no Canindé. Mesmo não recebendo a devida atenção que um craque desse porte mereceria, se destacou de imediato. Não tardou para que começasse a ser escalado no time de aspirantes. No banco de reservas não chegou a ficar, porque naquele tempo não havia substituições durante a partida.

Mas treinou muitas vezes na equipe de cima, ao lado de Ivair. E não decepcionou. Ocorre que o tempo foi passando, e nada do garoto (então com 21 anos) se profissionalizar. A família, como é lógico, começou a pressioná-lo para arranjar emprego ou voltar a estudar. Sequer sua passagem para ir aos treinos era paga pelo clube paulistano. Só havia despesas, sem qualquer vantagem. E as pressões em casa aumentavam.

Um dia, o Celso voltou ao Flamenguinho. Decidira largar a Portuguesa. O futebol brasileiro perdeu, sem nenhum exagero, um novo Pelé. Talvez hoje, com 76 anos de idade e avô, ele ache que tenha feito um bom negócio ao arranjar um emprego na General Motors de São Caetano do Sul, onde aposentou-se.

Os que o viram jogar, e principalmente a turma da Vila Paula onde cresceu, entendem o contrário. A GM ganhou um excelente torneiro mecânico. Mas o futebol brasileiro perdeu, com certeza, mais um gênio desse esporte em que, apesar da desorganização e do desperdício de talentos, o País é o único pentacampeão do mundo.


Boa leitura!

O Editor.



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Um comentário:

  1. Fiquei aqui pensando que nunca escrevi sobre meu pai,Alcides Alves da Cruz, que, segundo me contaram, no Cassemiro de Abreu, onde jogou aqui em Montes Claros, tinha as características desse jogador, inclusive por ter 1 m e 68 cm, vestir a camisa dez e fazer a maior parte do gols de cabeça.

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