quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Moça alegre e moço triste - Henrique Fendrich


Moça alegre e moço triste



* Por Henrique Fendrich



E então ela começou a falar sobre como estava se sentindo bem. Depois de muito tempo, ela podia olhar para trás e dizer que havia superado uma das piores fases da sua vida. Parecia que agora as coisas estavam entrando nos eixos. A sua vida profissional havia finalmente deslanchado e, pela primeira vez, a sua condição financeira era favorável. As dores que tinha pelo corpo, sem que médico algum atinasse com a causa, haviam desaparecido. Já não precisava de nenhum remédio para dormir. Estava feliz no seu relacionamento e começava a projetar o casamento. Na semana passada, havia encontrado o seu pai e foi capaz de perdoá-lo. E até de alguns hábitos, defeitos que todos temos e achamos que nunca deixaremos de ter, ela havia conseguido se livrar recentemente.

Quando pensava em tudo aquilo que passou, ela não lamentava nada. Sentia-se até mesmo grata. Foram sinais de que havia alguma coisa errada e que precisava ser mudada. Ela prestou atenção em todos os sinais e procurou mudar. Conseguiu. Por isso ela hoje se sente tão bem, por isso sente uma felicidade tão grande. Sim, hoje ela é outra pessoa, melhor do que já foi, alguém que superou coisas muito difíceis e hoje está aí para dar testemunho da sua superação.

Ele devia estar feliz com isso também. É o seu amigo, alguém a quem ela sempre contou tudo que se passava com ela. Era sempre bom contar com um amigo que estivesse disposto a ouvir, e que fazia até mais do que isso, alguém que sabia aconselhar e que a fazia refletir, até chegar a uma resposta positiva. E o amigo sabia que devia ficar feliz com as novidades, e talvez uma parte dele estivesse mesmo, mas a outra não. A outra parte antevia que daquela felicidade e daquela autossuficiência ainda adviria a separação.
Porque ele sabia que, já nos últimos tempos, não era mais procurado como antes. Muitos dias se passaram sem que conversassem, porque ela estava muito ocupada colocando ordem na sua vida. Havia conseguido se livrar do vício do celular, e se livrar do vício do celular era igual a falar menos com ele. E então ela descobre que consegue vencer o vício do celular. E então ela descobre que já não precisa mais falar com ele todos os dias, como era antes. E um dia chegará em que não precisará falar mais nada.

Uma parte dele se sente esmagada pela vitória da amiga. Porque, ele próprio, não venceu nada até agora. Ele próprio tem as suas crises, seus fracassos, e a maior parte deles lhe parece irremediável. E então ele vê os outros vencendo, subindo, superando, e ele fica para trás, sem conseguir sair do lugar. A amiga, no tempo das crises, era, ao menos, companheira de infortúnio, alguém com quem trocar misérias. Agora ela tem outro status, já chegou a outro nível, e não poderá olhar para ele a não ser com o olhar de quem está em cima e tenta ajudar alguém que ainda não conseguiu chegar lá.  Ele tem dúvidas se algum dia chegará lá, mas a tudo a sua amiga refutará com o exemplo da sua própria trajetória. Ele não pode ser negativo demais, porque ela agora descobriu que essas pessoas fazem mal e devem ser evitadas.
Não é o primeiro, não é o último caso em que circunstâncias semelhantes o afastam de pessoas que eram suas amigas. Ele se pergunta o que pode haver de errado com ele, por que é que ele não supera as coisas como todo mundo? Mas nada disso aparece ao falar com ela, ao dar os parabéns pela sua vitória. Ela está feliz e ele se sente desnecessário e isolado.



* Henrique Fendrich é jornalista, escritor e pesquisador. Mantém a “RUBEM”, única revista digital sobre crônica, e é autor dos livros “Brasília quando perto” (2013) e “Deus ainda não acabou com tudo” (2014), ambas coletâneas de crônicas. É organizador do blog literário “Vida a Sete Chaves”. Também escreve livros de história e genealogia, além de textos para os jornais “Folha do Norte” e “Evolução”, de São Bento do Sul/SC.

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