Moça
alegre e moço triste
*
Por Henrique Fendrich
E
então ela começou a falar sobre como estava se sentindo bem. Depois
de muito tempo, ela podia olhar para trás e dizer que havia superado
uma das piores fases da sua vida. Parecia que agora as coisas estavam
entrando nos eixos. A sua vida profissional havia finalmente
deslanchado e, pela primeira vez, a sua condição financeira era
favorável. As dores que tinha pelo corpo, sem que médico algum
atinasse com a causa, haviam desaparecido. Já não precisava de
nenhum remédio para dormir. Estava feliz no seu relacionamento e
começava a projetar o casamento. Na semana passada, havia encontrado
o seu pai e foi capaz de perdoá-lo. E até de alguns hábitos,
defeitos que todos temos e achamos que nunca deixaremos de ter, ela
havia conseguido se livrar recentemente.
Quando
pensava em tudo aquilo que passou, ela não lamentava nada. Sentia-se
até mesmo grata. Foram sinais de que havia alguma coisa errada e que
precisava ser mudada. Ela prestou atenção em todos os sinais e
procurou mudar. Conseguiu. Por isso ela hoje se sente tão bem, por
isso sente uma felicidade tão grande. Sim, hoje ela é outra pessoa,
melhor do que já foi, alguém que superou coisas muito difíceis e
hoje está aí para dar testemunho da sua superação.
Ele
devia estar feliz com isso também. É o seu amigo, alguém a quem
ela sempre contou tudo que se passava com ela. Era sempre bom contar
com um amigo que estivesse disposto a ouvir, e que fazia até mais do
que isso, alguém que sabia aconselhar e que a fazia refletir, até
chegar a uma resposta positiva. E o amigo sabia que devia ficar feliz
com as novidades, e talvez uma parte dele estivesse mesmo, mas a
outra não. A outra parte antevia que daquela felicidade e daquela
autossuficiência ainda adviria a separação.
Porque
ele sabia que, já nos últimos tempos, não era mais procurado como
antes. Muitos dias se passaram sem que conversassem, porque ela
estava muito ocupada colocando ordem na sua vida. Havia conseguido se
livrar do vício do celular, e se livrar do vício do celular era
igual a falar menos com ele. E então ela descobre que consegue
vencer o vício do celular. E então ela descobre que já não
precisa mais falar com ele todos os dias, como era antes. E um dia
chegará em que não precisará falar mais nada.
Uma
parte dele se sente esmagada pela vitória da amiga. Porque, ele
próprio, não venceu nada até agora. Ele próprio tem as suas
crises, seus fracassos, e a maior parte deles lhe parece
irremediável. E então ele vê os outros vencendo, subindo,
superando, e ele fica para trás, sem conseguir sair do lugar. A
amiga, no tempo das crises, era, ao menos, companheira de infortúnio,
alguém com quem trocar misérias. Agora ela tem outro status, já
chegou a outro nível, e não poderá olhar para ele a não ser com o
olhar de quem está em cima e tenta ajudar alguém que ainda não
conseguiu chegar lá. Ele tem dúvidas se algum dia chegará
lá, mas a tudo a sua amiga refutará com o exemplo da sua própria
trajetória. Ele não pode ser negativo demais, porque ela agora
descobriu que essas pessoas fazem mal e devem ser evitadas.
Não
é o primeiro, não é o último caso em que circunstâncias
semelhantes o afastam de pessoas que eram suas amigas. Ele se
pergunta o que pode haver de errado com ele, por que é que ele não
supera as coisas como todo mundo? Mas nada disso aparece ao falar com
ela, ao dar os parabéns pela sua vitória. Ela está feliz e ele se
sente desnecessário e isolado.
*
Henrique Fendrich é jornalista, escritor e pesquisador. Mantém a
“RUBEM”, única revista digital sobre crônica, e é autor dos
livros “Brasília quando perto” (2013) e “Deus ainda não
acabou com tudo” (2014), ambas coletâneas de crônicas. É
organizador do blog literário “Vida a Sete Chaves”. Também
escreve livros de história e genealogia, além de textos para os
jornais “Folha do Norte” e “Evolução”, de São Bento do
Sul/SC.
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