Barcas frágeis
O
leitor já se sentiu, alguma vez, um “estorvo” para alguém com
quem convivesse e de quem dependesse? Eu já, e posso assegurar que
se trata de uma situação horrível que, dependendo da intensidade e
do tempo de duração, deixa marcas indeléveis, e para sempre, em
nossa mente e nas nossas emoções! Há pessoas sem nenhuma
sensibilidade e que não escondem quando se sentem atrapalhadas, ou
“estorvadas”, pelos que têm a obrigação de cuidar, ou com as
quais tenham qualquer espécie de compromisso. Julgam-se vítimas,
quando na verdade são as agressoras, e das mais desumanas e cruéis.
São
pais, por exemplo, que não conseguem compreender filhos (que julgam
“problemáticos”) e que se desmancham em críticas e mais
críticas, contumazes, sucessivas e persistentes, sobretudo quando se
tratam de adolescentes, sem lhes apontar rumos a seguir e sem a
grandeza de elogiar um único ato positivo deles.
São
pessoas que tratam mal os idosos, jogando-lhes na cara que atrapalham
suas vidas, esquecidas de tudo o que estes lhes fizeram de bom quando
podiam trabalhar, e trabalhavam, sem tempo sequer para descanso e
lazer. Esse é o pagamento que recebem, num momento da vida em que
são, e se sentem vulneráveis, fragilizados e dependentes!
São
maridos ou esposas que manifestam arrependimento pelo mau casamento
que fizeram e que se tratam com hostilidade e com rancor. Criam, em
torno de si, um clima de ódio, agridem-se mutuamente, por palavras e
atos, e, não raro, podem chegar, até, ao extremo do homicídio. Os
jornais trazem, diariamente, casos e mais casos que têm esse
dramático desfecho.
São
mulheres que têm alguma gravidez indesejada e que, por essa razão,
hostilizam, quando não agridem, abandonam ou até mesmo matam o
fruto de uma transa desastrada. São incapazes de compreender o
milagre da concepção, não importa se desejado ou acidental. Com
isso, contrariam a própria natureza. Essas pessoas sequer parecem
humanas (e, de fato, não são, a despeito de aparentarem ser). São
piores do que os mais broncos e ferozes animais.
Como
se vê, as situações desse tipo são múltiplas, as mais diversas
possíveis e poderíamos citar milhares e milhares de exemplos que,
ademais, são desnecessários, pois certamente o leitor já viu
muitos casos desse tipo ao longo da sua vida.
Pior
é quando quem é considerado “estorvo” está fragilizado por
absoluta dependência ao indivíduo que o considera dessa maneira: é
criança, idoso, doente ou tenha alguma deficiência física (ou
mental), de locomoção, visão ou audição, não importa. Nesses
casos, a hostilidade e o menosprezo de que são alvos descambam para
a crueldade. Mas casos desse tipo são muito mais comuns e
corriqueiros do que se pensa.
E
como se sentem as vítimas dessa atitude? Sentem-se impotentes,
humilhadas, infelizes e desesperançadas. São atingidas, sobretudo,
no que têm de mais íntimo e precioso, seu amor próprio, que fica
em baixa. Quando (ou se) conseguem se livrar dessa incômoda e cruel
dependência, ficam com marcas indeléveis dessa horrível sensação,
a de serem “estorvos”, para sempre em suas mentes e em seus
sentimentos.
"Tudo
no mundo é vaidade", constatou Salomão nos últimos anos de
vida, ele que foi abençoado com sabedoria, beleza, fortuna e poder e
que, ao cabo da existência, percebeu o quanto de inutilidade havia
em tudo isso. Só quem sabe gostar de si mesmo, na medida certa, sem
descambar para os excessos, é capaz de amar alguém. Afinal, Cristo
colocou essa autoestima como parâmetro, ao ordenar: "ame o
próximo como a si mesmo".
Ao
recuperarem a autoestima, esses injustiçados, humilhados e
ofendidos, considerados “estorvos”, adquirem uma incrível
capacidade de amar. Mostram-se carinhosos, solícitos, fiéis e
leais. Claro que há os que nunca se recuperam. Estes, contudo, são
exceções, que existem em todas as regras. Quem considera seu
semelhante, por qualquer motivo, real ou imaginário, um “estorvo”,
é um insatisfeito.
A
insatisfação, destaquemos, desde que sadia e moderada, não é,
intrinsicamente, um mal. Pelo contrário. É a mola propulsora das
realizações humanas, seja em que campo for. É um dos raros
comportamentos do homem que atravessou todos os ciclos de civilização
e está mais vivo do que nunca.
Os
gregos, por exemplo, nunca se contentaram com suas extraordinárias
conquistas intelectuais. Com isso, criaram o teatro, a filosofia e a
poesia, desenvolveram a escultura e a arquitetura e produziram outros
tantos frutos do intelecto. Já a insatisfação romana era
basicamente sensorial. Mas, também, alcançava os comportamentos.
Resultou na criação de leis que se constituíram em bases, em
fundamentos do Direito, como o conhecemos hoje. A insatisfação dos
povos da Idade Média era espiritual, a da prevalência do espírito,
no sentido transcendental, sobre os sentidos. Legaram-nos, em
contrapartida, muitas e importantes reflexões espirituais.
E
o homem contemporâneo, é insatisfeito? Mais do que nunca! A este,
no entanto, materialista por excelência, nenhum bem satisfaz de
maneira suficiente. É essa insatisfação, aliás, que move a
economia, gerando necessidades (reais ou imaginárias), que as
pessoas empreendedoras e dinâmicas buscam, em vão, satisfazer.
Agora, estar insatisfeito com um semelhante e, pior, que esteja
fragilizado e, pior ainda, considerá-lo um “estorvo” (mesmo que,
de fato, seja) é um comportamento irracional, desumano, cruel e
doentio.
Pessoas
que se comportam dessa maneira, na verdade, estão insatisfeitas é
consigo próprias e, sobretudo, com a vida. Não dizem, mas
certamente consideram que são impotentes para conquistarem o
sucesso, a estima e, por consequência, a felicidade e lançam a
culpa da sua competência em quem não a tem. Têm, no fundo do
cérebro, piscando, como lâmpada de néon, o que Franz Kafka colocou
na boca de um personagem: “Minha barca é muito frágil”. E, de
fato é, como ademais a de todos nós, humanos.
Só
que a nau destes insensatos naufraga à primeira e mais leve borrasca
da vida, sem que saibam, ou queiram, fazer seja lá o que for para se
salvar. São fatalistas. Atribuem suas desgraças aos que os cercam,
quando não a um hipotético destino. E, por não se fazerem
merecedoras, raramente contam com qualquer espécie de ajuda. Não
sabem viver, são infelizes e só espalham ao seu redor, por onde
quer que passem, infelicidade, ressentimentos e rancor. Elas, sim,
são “estorvos”. Para si e para a humanidade. São a banda podre
da espécie.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Na transa desastrada, o homem tem o mesmo grau de responsabilidade da mulher. O restante das argumentações estão boas. Espero não ser um estorvo algum dia, mas acho impossível. A velhice e as doenças nos tornam dependentes.
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