Catopelando
*
Por Mara Narciso
Nos
anos 1960, a nostalgia fala: não havia decoração pública nas
Festas de Agosto de Montes Claros. Nem esse nome havia. Quando meava
o mês ventoso -“agosto chega como a ventania, cálice bento e
abençoado, a dor do povo de São Benedito, no mastro existe para ser
louvado” (Tino Gomes e Georgino Júnior) - os dançantes saiam para
a rua. O Congado, nossa mais ardorosa tradição, tem na devoção a
São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e ao Divino Espírito Santo
o motivo da festa. As violas dos marujos de vermelho e azul
(uma dissidência é branca) e dos caboclinhos com arcos, flechas e
tangas de penas de galinha circulavam pelo centro da cidade. Ano após
ano, podia-se ouvir a batida dos pandeiros, caixas e tambores dos
catopês, com sua dança cadenciada, indo e voltando em fila indiana,
com os estandartes e uma fé candente. Eram grandes em sua coragem e
veneração aos santos, mas minguados em número. Na verdade, o
Segundo Terno de Catopês de Nossa Senhora do Rosário, tinha à
frente o grande Mestre João Faria, desde os 17 anos, e uma dúzia de
homens e meninos, quase todos descalços, nem mesmo sandálias de
borracha possuíam, trajavam roupas brancas surradas e empoeiradas,
com minguadas fitas coloridas nos capacetes, traços que marcam o
grupo, e uma dolorida cara de sofrimento. Não dá para tirar isso
nem da História e nem da letra da música “Montesclareou” cujo
verso diz “meus olhos cegos de poeira e dor”.
A
antiga Igreja do Rosário, no meio da praça, foi derrubada pelo
progresso e outra moderna com formato de barco passou a abrigar os
dançantes em seus rituais, debaixo da quentura abafada do lugar. Lá
se vão décadas e a festa mudou, recebeu o apoio de políticos, da
população e especialmente da classe média, que aderiu e apoiou
financeiramente, com jantares coletivos e doações, mesmo sem verbas
oficiais. Sem contar os príncipes e princesas e quase toda a corte,
que são provenientes da classe abastada, onde estão os festeiros
que organizam o almoço dos participantes. Sem isso, a Festa dos
Catopês, Marujos e Caboclinhos, negros, brancos e índios,
respectivamente, este ano em sua 179º edição, 18 anos anterior à
emancipação de Montes Claros, poderia ter desaparecido. Quem vê
sua grandiosidade hoje, coligada ao Festival Folclórico – 40ª
edição, apoiada e admirada pela plasticidade da sua dança, beleza
e longevidade, nem sonha como já foi.
A
classe média entrou nos ternos seguindo um ritual complexo, a
começar pela exigência de fé, respeito às tradições e
comparecimento aos ensaios. Chegou com trabalho e participação no
cortejo. Não pode descaracterizar os rituais nem os figurinos. Os
capacetes dos catopês mudaram, adquirindo pedrarias, penachos de
pavão, e fitas coloridas até o chão. As faixas transpassadas no
peito mostram a graduação dentro do reinado. Os chegantes estão,
obviamente, sob o comando dos mestres e muitos se apresentam há
décadas. São importantes na manutenção da festa, mas há
discordantes veementes, que querem apenas os dançantes de raiz no
desfile. Dentro dos limites estipulados, a manutenção dessa
infiltração respeitosa é bem-vinda. A discussão e palpites são
antigos, e alguns olhares externos querem expurgar o Festival
Folclórico e dizer como os dançantes devem se comportar.
As
Festas de Agosto, quer gostem ou não, valorizem ou pensem que sejam
artificiais e aculturadas, mobilizam a cidade durante quatro dias e
quatro noites, tumultuando o centro e trazendo vida e alegria ao
sofrido povo da cidade.
Muitos
querem ver, fotografar e filmar o desfile que começa na Praça Dr.
João Alves e desce até a Praça Portugal na direção da Igreja do
Rosário. A cacicona Maria do Socorro Pereira Domingues, no comando
dos caboclinhos, é a única mulher a ocupar esse cargo. O Mestre
Zanza – João Pimenta dos Santos, catopê da velha guarda, tem 85
anos, desfila desde o nascimento, e esse apelido foi-lhe dado pela
mãe, porque ficava “zanzando” pela casa. Firme no cortejo até
hoje, tem recebido homenagens e honrarias. O Mestre João Faria, um
carroceiro na vida real e um rei na vida de sonho e sua inconfundível
marcação de ritmo, partiu aos 74 anos, em 10 de janeiro de 2018.
Nesta festa, a passagem do seu Terno, comandado pelo neto Yuri Farias
Cardoso, de 19 anos, arrancou lágrimas dos mais sensíveis,
inconformados com as perdas definitivas.
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Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia
Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de
Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
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