segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Réquiem para Samuel - Francisco Isolino Siqueira


Réquiem para Samuel
* Por Francisco Isolino de Siqueira
Se pudesse recomeçar a vida, eu procuraria fazer meus sonhos ainda mais grandiosos, porque a vida é infinitamente mais bela e maior do que pensava, mesmo em sonho. Ela toda se faz e se qualifica através destes seres esplêndidos e imensuráveis, os irmãos de cotidiano — aqueles todos que se revelam, minuto a minuto, meus autênticos deuses-lares. Repetirei sempre, em cansativo estribilho, que eu existo porque você existe e sou fruto da mais estreita e esplêndida convivência e que minha riqueza pessoal se conquista, em todos os momentos, à medida que alimento minha consciência de participação. De todos os serviços que prestei, das tarefas que me couberam nesta já longa vida, das profissões que utilizei, às mais das vezes por estrita necessidade financeira — de tudo isto, se recomeçasse e me dessem recursos de sobrevivência, nada mais seria, se não e apenas, o jornalista que vive em mim. Por isto, neste canto de coluna, devo recompor as lembranças que perambulam em minha alma insone, desperta permanentemente, atrás das memórias agradecidas, do reconhecimento que devo a homens que me formaram e me informaram, nesta vida maravilhosa e que se traduz, pelos mais extraordinários recursos e tesouros da comunicação social que é o jornalismo — e começo pelo primeiro, o meu professor de primeiras letras, meu pai.

Hildebrando Siqueira, meu pai, tomou-me as mãos e eu tinha menos de 18 anos, e redigiu, comigo, o “meu jornal” e depois levou-me, consigo, para os arcanos da tipografia, fez-me compor os seus artigos, rever as suas provas, escrevinhar as primeiras crônicas, e, de repente, ele se foi, silenciosamente, sem avisar. E deixou-me amigos, inúmeros, como João Rodrigues Serra, meu primeiro redator-secretário, ali, na A Defesa, e aquele homem que me lançou as águas lustrais ou o fogo do primeiro batismo, mais a confiança injustificada que depositava em mim, Nelson Omegna, redator-chefe do mesmo jornal. Gustavo Stuart, A. J. Hermenegildo Filho, João Galerani e, finalmente, Luso Ventura — eis os nomes que jamais esquecerei e aos quais devo o muito pouco que sou, mas a riqueza imensa de amar o jornalismo, de vivê-lo mesmo nas outras profissões que procurei conduzir, segundo os reclamos do mundo e os apelos do estômago.

Mas, ainda de repente e nada mais do que de repente, convida-me Samuel Wainer, para o seu jornal Última Hora, como se fora mesmo a última e que, à luz meridiana, se tornara a primeira, a hora matinal, a revisão dos processos jornalísticos — a composição nova, a paginação ventilada e clara, a audácia da notícia, não simplesmente repetida, mas analisada, quase que digerida para o leitor comum, na oferta madrugadora dos primeiros gestos e dos pronunciamentos afetivos. E os sinais evidentes da insatisfação, de busca diária, de recomposição mesmo dos quadros humanos, dos próprios valores do século, mas tudo isto a partir de jornalismo dinâmico, abusivo, agressivo, curioso — vejam bem! — cheio de curiosidade pelos próprios resultados obtidos, pela reação popular, pela fixação do pensamento que orienta e define, como a ofertar o direito que o homem tem à notícia que o instrua e conduza. E sentia-se a sua angústia de qualificar, como homem-diálogo, em garantir aos irmãos de cotidiano o direito ao fato — ao conhecimento da realidade, ela mesma, toda inteira, para que pudesse, o leitor, ter os olhos abertos — ver em essência — para a certeza que lhe permitisse amar e ser amado pelos tempos e pelos homens. Este foi meu último professor de jornalismo, porque depois dele, ainda uma vez, as vozes intestinas do consumismo foram mais incisivas e aqui estou, à margem da vida efetivamente jornalística, escriba de terceira classe, a aguardar a promoção póstuma — sem estrelas ou crachás — comprometida, ela mesma, pelo amor que se assusta na despedida necessária e formal.

* Francisco Isolino de Siqueira foi advogado e jornalista, fundador da Academia Campinense de Letras e Artes.


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