Genialidade e simplicidade
A
cultura, em seu verdadeiro significado, é a soma da informação com
a vivência e a experiência. Não se restringe, portanto, como
erroneamente se supõe, ao acúmulo de conhecimentos enciclopédicos,
mal entendidos e pessimamente digeridos. Ou mesmo que bem
assimilados, não importa. Não é necessário que um indivíduo
galgue os degraus acadêmicos, frequente universidades, faça cursos
e mais cursos de pós-graduação, colecione diplomas, para ser
verdadeiramente culto. Temos exemplos em profusão a esse respeito. O
mais conhecido é o de Machado de Assis, que jamais cursou qualquer
escola, e no entanto foi, sem favor algum, o maior dos nossos
escritores. Foi um aplicado autodidata que soube o que fazer com
aquilo que aprendeu.
Há
mais de meio século, no início dos anos 60, em São Caetano do Sul,
onde passei parte da minha juventude, antes de me fixar nesta
Campinas que tanto amo, conheci uma pessoa assim e que se tornou
marcante em minha vida. Apesar de nos tornarmos amigos, nunca soube
seu nome completo. Ele nunca o revelou. Era simplesmente o João.
Tendo cursado apenas o primário, tinha uma cultura vasta,
vastíssima, diria até massacrante. Citava, por exemplo, os
clássicos da literatura mundial com uma familiaridade que só os que
os frequentaram assiduamente (e os entenderam) poderiam fazer. Tinha
um nível de informação muito superior à média. Estava em dia com
a política, com os filmes em cartaz, com as peças de teatro que
estavam sendo apresentadas, com o panorama internacional, com os mais
recentes lançamentos de livros no País e no Exterior, com a
ciência, com os esportes, de todas as modalidades conhecidas e
muitas coisas mais. Era, enfim, uma enciclopédia ambulante.
Mas
não era desses intelectuais arrogantes, que olham a todos do alto de
uma pseudo superioridade, a citar, pedantemente, conceitos
inacessíveis à maioria. O João era humilde, com uma humildade
genuína e digna. Tinha consciência do seu valor. Apenas não
desmerecia os semelhantes e achava que todos estavam no seu nível.
Tanto, que se dizia um "apedeuta".
Esperem
aí! Não se trata de nenhum palavrão impublicável! Antes que
alguém que desconheça o significado da palavra, ou que não se
disponha a consultar o dicionário, comece a pensar bobagem, é
necessário um esclarecimento. O termo não designa qualquer doença
nova e nem rotula alguma tendência sexual anormal. Significa somente
"pessoa ignorante, sem instrução". Exatamente o que o
João não era. Essa fonte de sabedoria costumava citar Ruy Barbosa a
esse propósito. O insigne tribuno iniciava um de seus célebres
discursos dizendo: "Eu, mísero apedeuta..." Claro que o
gênio baiano não era isso. Muito pelo contrário! E o João
afirmava que se Ruy Barbosa se confessava nessa condição, ele se
sentia muitos furos abaixo dela. E pelo seu olhar, pela sua
expressão, pelo seu procedimento, percebia-se que não estava sendo
falsamente modesto.
Um
dia, propôs às pessoas do nosso grupo – poetas, jornalistas,
professores, artistas plásticos, músicos, estudantes universitários
e toda a sorte de intelectuais – a criação do "Clube dos
Apedeutas". Chegou a esboçar os estatutos e as regras dessa
insólita entidade. Seu objetivo seria basicamente o estudo, o mais
universalista possível, através da troca de experiências dos seus
componentes. Entendia que somente através desse contato mais
estreito, todos os membros conseguiriam ampliar seus horizontes
culturais, ao ponto de deixar essa condição de "ignorância".
Cada qual buscaria passar aos demais, de forma clara e inteligível,
a essência da sua especialidade.
Um
sonhador, esse João... Sobretudo, um crédulo. Acreditava que as
pessoas seriam capazes de abrir mão, por breves momentos que fossem,
da sua imensa vaidade. Cria que esses intelectuais boêmios – a
maioria bem-sucedida em suas atividades e alguns, inclusive, hoje com
renome nacional – fossem humildes o suficiente para assumir que
eram apedeutas. Claro que a ideia do clube acabou não dando em nada,
para a sua frustração (e a minha também). Aquele grupo provou que,
pelo menos na ocasião, dispunha da informação, mas não de
cultura. Carecia da vivência e da experiência, que apenas os anos
posteriores confeririam aos seus membros. Hoje, quem sabe, é até
possível que a ideia desse sábio anônimo, simplesmente João (com
nome, mas sem sobrenome), vingasse.
Boa leitura!
O Editor.
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