Leituras
de Marx no Brasil
*
Por Lidiane S. Rodrigues
Alguém
em sã consciência ignora que a leitura tem uma história e toma
formas sociais diversas? Não. E, no entanto, o trabalho de
organização social dos leitores tem sido subestimado pelos
interessados no destino da obra de Karl Marx. O livro "Nós que amávamos tanto 'O Capital'" é
um documento inestimável para se constatar a relevância da forma e
da vida social de uma leitura. Ele reúne depoimentos dos “corações
veteranos” de uma das primeiras experiências de auto-organização
para ler Karl Marx em
grupo.
A
crônica é conhecida: José Arthur Giannotti voltou da França em
1958 e chamou seus amigos para ler O
capital,
segundo as rédeas da leitura estrutural do texto; colocando suas
competências disciplinares e linguísticas a serviço de causa digna
– havia historiador, sociólogo, filósofo, crítico literário,
economista; alguns iam apenas com a vontade de ler, outros levavam
também seu alemão, seu francês, seu inglês, seu espanhol e seu
humor. Alguns foram e não voltaram – “duro demais”. E poderia
ser diferente?
O
feito ficou conhecido como Seminários Marx. A troca de ideias,
sentimentos e favores configurou um grupo –
no sentido pleno do termo. O intercâmbio contínuo
de ideias entre os seminaristas e o exercício constante
da prática de
leitura deram frutos: foram importados para os doutorados e,
gradativamente, para as disciplinas acadêmicas em que atuavam. Tal
difusão variou segundo a lógica interna de cada uma –
permeabilidade lógica ao marxismo (o grupo leu outros livros, além
d’O
capital,
basta conferir o repertório de conceitos compartilhado por eles);
temáticas de investigação; ritmo de profissionalização;
dominação dos catedráticos; negociações léxicas,
bibliográficas.
Os
efeitos de médio prazo desse trabalho de organização da leitura
são evidentes para qualquer observador da cultura acadêmica
brasileira. Ao longo das seis décadas que nos distanciam do início
de tal atividade, as reviravoltas da vida política (ditadura
militar, tortura, exílios e presidências) e as reconfigurações
dos espaços sociais implicados (universidade, luta armada, revistas,
partidos) foram embaralhando filiações e tomadas de posição. Além
disso, a rotinização da prática obnubilou o cerne da inovação
dos Seminários Marx, isto é, a
forma social da leitura coletiva.
Os depoimentos reunidos nesse livro podem restituir essa
dimensão aos que os lerem com inteligência e delicadeza.
*
Doutora
em História Social e pós-doutoranda em Sociologia.
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