terça-feira, 10 de julho de 2018

Exaltação a 1932 - Aritqa Damasceno Pettená


Exaltação a 1932


* Por Arita Damasceno Pettená


Diz Rui Barbosa: “A História não é a nesga da verdade que se espreita pelas fisgas das portas. A História é o fato, o depoimento, o documento!”

E São Paulo, na página mais bonita de sua história, faz também de um 25 de janeiro de 1932 uma de suas datas marcantes, não como a grande aniversariante, mas como resposta, em um célebre comício, à ditadura Vargas, que sufocava a nação, conclamando a todos que era preciso, mais que nunca, a volta à legalidade.

E num magnífico pronunciamento, Ibraim Nobre, um dos maiores oradores da epopeia paulista, empolgava o povo com o vigor de sua voz:

Minha terra, minha pobre terra!
Mães paulistas, ensinai aos vossos filhos
que o sangue nada vale pelo que corre humanamente nas veias,
mas pelo que palpita divinamente no coração.”

E Isabel Paiva ouviu, comovida, o brado do grande tribuno a quem Oliveira Ribeiro Neto chamava “clarim, clarão, clarividência” e, mais do que mãe, se fez poeta:

“ – Mamãe, mas que bandeira é aquela
que de longe tão trêmula se avista?
– Oh! Meu filho, chega-te à janela
e encara-a bem de frente:
Ela é paulista!
Quando a vires, descobre-te, meu filho,
pois que ela é tudo o que o teu lar encerra:
tua mãe, teu pai, é esplendor, é brilho,
é glória, é tradição, é nossa terra”.

E o filho, embalado pela chama de coragem, motivado, sobretudo, pelo amor à terra, parte inflamado para a luta.

No 23 de maio, quatro jovens destemidos, Martins, Miragaia, Drausio e Camargo, tombam na Praça da República, atingidos por balas assassinas. E o poeta, Oliveira Ribeiro Neto, convicto de que cada terra abriga os seus mortos e cada túmulo é uma resposta de brasilidade ao homem que vier depois, exalta o herói desconhecido em versos de magistral beleza:

Hás de voltar, meu filho,
E não voltaste!
Pelo bem do país que tanto amaste,
o teu corpo caiu, morreu teu passo.
Da tua mocidade generosa restou somente a farda gloriosa,
tinta de sangue, e o capacete de aço.
Tua mãe chora sempre a tua falta.
Árvore frágil para ser tão alta
a inclemência de um raio te cortou
as promessas risonhas de fartura,
os desejos de glória e de ventura,
o civismo sem par que te abrasou.
Repousa em paz, no coração materno,
da terra de São Paulo, grande e eterno,
no seu amor à gente idealista!
O nome teu, que importa!
Um nome passa!
Tu és, soldado, o apóstolo da raça,
o herói, o santo, o símbolo paulista!”

E pelas ruas da cidade continuavam desfilando soldados que compunham os batalhões de voluntários e que seguiam para diversas frentes de combate da Revolução Constitucionalista. E surge o hino “O passo do soldado”, “um dos mais inspirados e vibrantes, jamais escritos em uma revolução do continente americano”, segundo Paulistânia, na época órgão oficial do Clube Piratininga, composto por Marcelo Tupinambá e com letra de Guilherme de Almeida:

Marcha, soldado paulista,
Marcha o teu passo na história!
Deixa na terra uma pista:
Deixa um rastilho de glória!”

E a Revolução, ora em crescendo, ora em instantes de paz aparente, ecoa por todos os cantos fazendo, sob o rufar dos tambores, o clarim que apregoa alvoradas, o batuque de pés marchando em busca de atalhos seguros. Instantes rápidos, decisivos, corpos que caem, terra lavada de sangue, de sangue do filho paulista.

E surge a campanha do ouro, transformando a moeda em um dos mais belos poemas do soldado-poeta de 32, Guilherme de Almeida:

Moeda paulista, feita só de alianças,
feita do anel com que nosso Senhor
uniu na terra duas esperanças:
Feita de tudo o que restou do amor!
Quanto vale essa moeda? – Vale tudo!
Seu ouro eternizava um grande ideal.
E ela traduz o sacrifício mudo
daquela eternidade de metal.
Ela, que vem da mão dos que se amaram,
vale esse instante, que não teve fim,
em que dois sonhos juntos se ajoelharam
quando a felicidade disse sim.
Vale o que vale a união de duas vidas,
que riram e choraram a uma voz,
e, simbolicamente desunidas,
vão rolar desgraçadamente sós.
Vale a grande renúncia derradeira
das mãos que acariciaram, maternais,
o menino que vai para a trincheira,
e que talvez … talvez não volte mais …
Vale mais do que o ouro maciço:
Vale a glória de amar, sorrir, chorar,
lutar, vencer, morrer… Vale tudo isso
que moeda alguma poderá comprar!”

É que São Paulo é do verbo dar, como nos diz Guilherme – “e que tudo nos deu – por isso o próprio amor que lhe temos, o que a São Paulo se der, seja quem for e porque, ou onde e quando e quanto e como, será tudo e será sempre e será só restituição”.

E o poeta alardeia ainda com toda a convicção:

Creio em São Paulo todo-poderoso,
criador, para mim, de um céu na terra,
e num Ideal Paulista, um só, glorioso,
Nosso senhor na paz como na guerra,
o qual foi concebido nas “bandeiras”,
nasceu da virgem alma das trincheiras,
padeceu sob o jugo de invasores;
crucificado, morto, sepultado,
desceu ao vil inferno dos traidores,
mas para, um dia, ressurgir dos mortos,
subir ao nosso céu e estar sentado
à direita do Apóstolo-Soldado,
julgando a todos nós, vivos ou mortos.
Creio no pavilhão das treze listas,
na santa união de todos os Paulistas,
na comunhão da Terra adolescente,
na remissão da nossa pobre gente,
numa ressurreição do nosso bem
na vida eterna de São Paulo, Amém.”

Em mais este aniversário repetimos, diante da bandeira paulista, com Guilherme de Almeida: “Bandeira das treze listas”:

Bandeira de minha terra,
bandeira das treze listas!
São treze lanças de guerra,
cercando o chão dos Paulistas!
Prece alternada, responso,
entre a cor branca e a cor preta:
velas de Martin Afonso,
Sotaina do Padre Anchieta
Bandeira dos Bandeirantes,
branca e rota de tal sorte,
que, entre os rasgões tremulantes,
mostrou as sombras da morte.
Riscos negros sobre a prata
são como o rastro sombrio,
que na água deixava a chata
das Monções subindo o rio.
Página branca, pautada,
por Deus numa hora suprema,
para que, um dia, uma espada
sobre ela escrevesse um poema:
o poema que é nosso orgulho,
– e eu vibro quando me lembro!
– que vai do Nove de Julho
ao Vinte e Oito de Setembro!…
Mapa de pátria guerreira,
traçado pela Vitória:
cada lista é uma trincheira,
cada trincheira, uma glória!
Tiras retas, firmes: quando
o inimigo surge à frente,
são barras de aço guardando
nossa terra, nossa gente.
São os dois rápidos brilhos
do trem de ferro que passa:
faixa negra dos seus trilhos,
faixa branca da fumaça.
Fuligem das oficinas;
cal que as cidades empoa;
fumo negro das usinas
estirado na garoa!
Linhas que avançam; há nelas,
correndo num mesmo fito,
o impulso das paralelas
que procuram o infinito.
É desfile de operários,
é o cafezal alinhado,
são filas de voluntários,
são sulcos do nosso arado!
Bandeira que é o nosso espelho!
Bandeira que é a nossa pista!
Que traz, no topo vermelho,
o coração do Paulista”.

Repetimos, ainda, com Guilherme, em “A santificada”:

com sete faixas de luto,
seis faixas brancas de paz,
voltas ao nosso reduto
que é preciso que se prove
que houve um 9 de julho de 32”.

Mas, nesse instante, como se estivéssemos diante do mausoléu, onde repousam os nossos heróis, repetimos mais uma vez com Guilherme o seu poema épico: “Oração ante a última trincheira”.

Agora, é o silêncio.
E é silêncio que faz a última chamada.
E é o silêncio que responde: ‘Presente!’
Depois, será a grande asa tutelar de São Paulo – asa que é dia e noite
e sangue e estrela e mapa –
descendo, petrificada, sobre um sono que é vigília.
E aqui ficareis, Heróis-Mártires, plantados, firmes, para sempre,
neste santificado torrão de chão paulista.
Para receber-vos, feriu-se ele da máxima de entre as únicas feridas,
na terra, que nunca se cicatrizam,
porque delas uma imensa coisa emerge e impõe-se, que as eterniza.
Só para o alicerce, a lavra, a sepultura e a trincheira se tem o direito de ferir a terra.
E, mais legítima que a ferida do alicerce, que se eterniza na casa,
a dar teto para o amor, a família, a honra, a paz;
mais legítima que a ferida da lavra, que se eterniza na árvore,
a dar lenho para o leito, a mesa, o cabo da enxada, a coronha do fuzil;
mais legítima que a ferida da sepultura, que se eterniza no mármore,
a dar imagem para a saudade, o consolo, a bênção, a inspiração,
mais legítima que essas feridas é a ferida da trincheira que se eterniza na Pátria,
a dar toda a pura razão-de-ser da casa, da árvore e do mármore.
Este cavado trapo de terra – corpo místico de São Paulo, em que ora existis, consubstanciados –
mais que corte de alicerce, sulco de lavra, cova de sepultura, é rasgão de trincheira.
E esta, perene, que povoais é a nossa última trincheira.
Esta é a trincheira que não se rendeu,
a que deu à terra o seu suor,
a que deu à terra a sua lágrima,
a que deu à terra o seu sangue!
Esta é a trincheira que não se rendeu
a que é nossa bandeira gravada no chão
pelo branco do nosso Ideal,
pelo negro do nosso Luto,
pelo vermelho do nosso Coração!
A que, atenta, nos vigia,
a que, invicta, nos defende,
a que, eterna, nos glorifica!
Esta é a trincheira que não se rendeu,
a que não transigiu, a que não esqueceu, a que não perdoou!
Esta é a trincheira que não se rendeu,
a que a vossa presença, que é relíquia,
transfigura e consagra num altar
para o voo até Deus da nossa Fé!
E, pois, antes este altar, de joelhos,
a vós rogamos:
Soldados santos de 32,
sem armas em vossos ombros,
sem balas na cartucheira,
sem pão em vosso bornal,
sem água em vosso cantil,
sem galões de ouro no braço,
sem medalhas sobre o caqui,
sem mancha no pensamento,
sem medo no coração,
sem sangue já pelas veias,
sem lágrimas ainda nos olhos,
sem sopro mais entre os lábios,
sem nada a não ser vós mesmos,
sem nada senão São Paulo, velai por nós!”


Publicado na Revista do IHGGC. Nº1. Campinas: Komedi, 2008, pp.71-78.



* Arita Damasceno Pettená é professora, escritora e membro da Academia Campinense de Letras, além de membro honorária e fundadora do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas (IHGGC).

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