segunda-feira, 27 de dezembro de 2010




Viagem sem troco, passageiro sem volta

* Por Eduardo Murta


A voz aportou embargada, e o pedido, pouco crível. O motorista, então, a pediu que repetisse. Dessa vez soou claro: 'Me leve até aonde eu possa parar de chorar'. Foram alguns segundos a que fechasse a porta, tentando se refazer do estranhamento. Virou-se uma vez mais e, percebendo que não teria resposta pronta, engatou a primeira e partiu.
Subiu a Avenida Afonso Pena, seguindo com um olho nos sinais, outro no retrovisor interno. Enquadrava com perfeição o rosto da mulher. Tristeza que lembrava peixes em exposição nas bancas de mercado. Ela com o indicador direito atalhando o caminho do choro, desfigurando a maquiagem. O taxista pigarreou, ensaiando uma pergunta, mas desistiu.

E tocou à frente, aéreo, que rompeu um dos cruzamentos em sinal vermelho. Ouviu a freada brusca e, súbito, aqueles faróis se agigantando na direção do carro. O corpo formigou-lhe, num misto de vulcão e geleiras. Gritou. Clamou por misericórdia a tudo em que acreditava. E viu o caminhão resfolegando, ar de dinossauro, até que parasse a uma espessura em que coubesse tão somente a esperança de suicidas.
Estava salvo. Estavam salvos. Se voltou ao banco traseiro, buscando a cumplicidade da passageira para aquela celebração mórbida. A encontrou como a deixara. Ainda marejando os olhos. Mas impassível diante da morte iminente. Sequer se movera. Levou a mão à bolsa, tirou de lá uma carteira metalizada, prata. Exibiu os cigarros e inquiriu se ele se importaria.

Se importava, sim. Mas relevaria, mesmo alérgico à quintessência. Rinite crônica. Ela acionou o isqueiro, destes de desarmar. Duas tentativas. Com a chama viva, foi possível vislumbrar: ela fazendo atmosfera de Rita Hayworth. Olhar lânguido. O batom besuntando toda a circunferência do filtro. Cremoso, num rosa bem-comportado.
Pediu que seguisse adiante. E observou: sem alteração de rota. Mas que diabo de rota era aquela, que terminaria aonde ela pudesse parar de chorar? Deteve-se ao perfil: não teria mais que 45 anos, vestia-se bem, não dava sinais de que fosse dependente de álcool ou de droga. E louca era um papel que não lhe cabia. Foi elencando alternativas, rumo à região da Savassi, precavido, sem desgrudar a atenção dos sinais.

Àquela altura, início de madrugada, pouco restava. Igrejas e templos religiosos não faziam plantão. Forró do Mangabinha passava longe de combinar com a pretendente. Restava a quietude dos cemitérios e seus velórios, mas achou para lá de ortodoxia. O pronto-socorro, a que visse tragédias maiores que as dela e se restaurasse... Não, não... Daí que visitou-lhe a inspiração quase divina, salvadora.

Tomou a segunda à direita e partiu em direção ao Santa Efigênia. Dobrou duas, três, cinco ruelas e lá estavam, já se aproximando do galpão. Ela pressentiu o apelo vulcânico vindo do interior. Entregou nota cheia, desdenhou o troco e agradeceu. Importava pouco, nesse instante, por que havia se desidratado em choro até então. A face foi se recompondo, entre surpresa e aliviada. Agora maravilhada. O som do Bartucada, no manejo para o Carnaval, varou-lhe a alma, feito amálgama de contentamento. Mãos esculpindo tons e sentidos. Tamborim tocando docemente a pele do coração.


* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

2 comentários:

  1. A rota do desespero, do sofrimento...só é uma
    incógnita para quem apenas enxerga o óbvio.
    Ótimo texto Murta.
    Feliz 2011.

    ResponderExcluir
  2. Assim como o trabalho, o carnaval pode ser um anestésico e tanto. O taxicista entou ser gentil e ainda ganhou um troco. O final foi feliz, quando esperávamos algo trágico.

    ResponderExcluir