Ana de Hollanda
* Por Risomar Fasanaro
Um encontro inesperado como aquele só poderia ser obra do destino. Esfreguei os olhos para acreditar em tamanha coincidência, mas era ela sim, a nossa querida Ana de Hollanda diante dos meus olhos. Estava na exposição do Sílvio Tendler para gravar poemas do Gullar. E digo nossa, porque depois que ela foi secretária de Cultura de Osasco, tornou-se também um pedaço de nós, um pedaço da cultura dessa cidade onde resido e participo do movimento cultural há mais de trinta anos.
Em um almoço recente do pessoal que faz arte aqui em Osasco, falamos muito sobre Ana, e todos a ela se referiam com muito carinho, com muita admiração, com muita saudade. Relembramos o tempo feliz que aqui vivemos enquanto ela foi secretária.
Quando a reencontrei na exposição, me veio a lembrança a primeira vez que a vi: era 1986, o prefeito era Humberto Parro e naquela manhã acordei cedo para ir à posse da nova secretária.
O auditório do salão nobre da prefeitura de Osasco estava lotado. Todos queriam ver a nova secretária de Cultura da cidade. Dezenas de pessoas mais altas do que eu me impediam de vê-la. Vivíamos os últimos anos de ditadura, era recente a legalização do PCB, mas mesmo assim não havia liberdade total, por isso senti um arrepio dos pés à cabeça quando ouvi aquela voz feminina, firme, corajosa, que ali já traduzia a que viera: “eu, mulher, comunista, quero dizer a vocês que....”
Não me lembro exatamente do que disse, mas senti que ali não havia uma burocrata, mas sim alguém que vivia e respirava cultura. Alguém que também trabalhava com arte, e por isso sabia o que sentíamos, sabia o que queríamos, intuía o que sonhávamos.
Consegui chegar mais perto e vê-la. Era (é) uma moça muito bonita, com olhos grandes e expressivos. Vendo-a e ouvindo-a senti a coragem e a sinceridade daquela mulher.
Pela primeira vez teríamos uma secretária que falava nossa linguagem. Uma artista. Sabia o que é a difícil arte de levar seus trabalhos ao povo. Pela primeira vez tínhamos uma secretária que não temia “o cheiro do povo”, como o presidente que estava terminando seu mandato.
Assim que tomou posse, Ana convidou os produtores culturais para uma reunião. Queria nos ouvir. E me lembro de que foi uma sessão de lavagem de roupa suja. Todos estavam magoados com a situação da Cultura na cidade. Ana nos ouviu pacientemente, e muitas vezes aquelas reuniões voltaram a acontecer.
Começamos a conhecê-la e a admirá-la cada vez mais. Não sabíamos qual era o milagre, mas ela “tirava leite das pedras”, e conseguia que todos levassem seus trabalhos ao povo. Conseguia concretizar todos os projetos.
Rapidamente percebeu que não só os artistas, mas o povo também sentia fome e sede de arte, de cultura. Que isso não é privilégio apenas dos ricos, nem dos intelectuais.
E ela conseguiu realizar aquela proeza: promoveu atividades que além de remunerarem os artistas e demais produtores culturais, conseguia levar àquelas atividades do centro aos bairros. Dos bairros ao centro.
Foi assim que Cezar Nascimento realizou festas do folclore na periferia de Osasco. Foi assim que promoveu festivais que iam da música sertaneja ao rock.
Ela não se colocava em um pedestal, diferentemente dos secretários que a antecederam, estava sempre conosco, compartilhava todos os nossos sonhos, todos nossos desejos, toda nossa alegria, e embora a verba fosse mínima, conseguia que realizássemos o máximo.
Eu não trabalhava na prefeitura, e havia apresentado um projeto de embelezamento urbano que envolvia artistas plásticos e poetas mas que nunca saíra do papel.
Assim que soube, Ana nomeou uma artista plástica para coordenar o projeto. Fazíamos isso aos sábados e domingos, e aqueles finais de semana eram uma verdadeira festa para todos nós.
Lembro-me de ver Ana sentadinha em uma calçada, com um boné na cabeça pra proteger-se do sol, comendo um sanduíche com um refrigerante, enquanto pintávamos e colocávamos nossos poemas nos muros.
João Subires, Fiori, Rui de Souza, Edson Soares e outros que trabalhavam na secretaria fundaram cineclubes espalhados pela cidade. Realizamos algumas exibições de filmes censurados pela ditadura, e para evitar que a polícia ou algum agente do Dops, nos arrancasse o projetor, como era costume na época, formávamos um cordão de isolamento cercando-o.
Ana incentivava cada um em sua área, e todos estavam felizes. Os grupos de teatro puderam apresentar seus trabalhos, e até um concurso de artes plásticas cujo prêmio foi uma viagem ao Japão com passagens e estada sem despesas para o artista, milagrosamente ela conseguiu. Foi assim que Hoffman Merli levou seus quadros para expor naquele país.
Um dia, conversando com minha amiga Cristinha Leite, artista plástica, comentamos: a cidade que era cinza, de repente ficou repleta de cores. É a imagem que melhor traduz a passagem de Ana por Osasco.
Algum tempo após sua saída, Cris e eu voltamos a nos encontrar e o comentário foi outro: as vozes se calaram, os instrumentos desafinaram, e a cidade voltou a ser cinza. De 2005 a 2007 a secretaria ficou dois anos sob a direção do PT e a Cultura estava novamente florescendo. Mas foram só dois anos.
Hoje a cidade está mais cinza do que nunca. E se não fosse a instalação do SESC Osasco, diríamos que não há nada de novo sob o sol.
Dar unidade à diversidade contentando todos os setores eis o que ela conseguiu no meio cultural de Osasco.
É...o movimento cultural da nossa cidade nunca foi tão feliz como quando Ana de Hollanda foi nossa secretária de Cultura...
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
* Por Risomar Fasanaro
Um encontro inesperado como aquele só poderia ser obra do destino. Esfreguei os olhos para acreditar em tamanha coincidência, mas era ela sim, a nossa querida Ana de Hollanda diante dos meus olhos. Estava na exposição do Sílvio Tendler para gravar poemas do Gullar. E digo nossa, porque depois que ela foi secretária de Cultura de Osasco, tornou-se também um pedaço de nós, um pedaço da cultura dessa cidade onde resido e participo do movimento cultural há mais de trinta anos.
Em um almoço recente do pessoal que faz arte aqui em Osasco, falamos muito sobre Ana, e todos a ela se referiam com muito carinho, com muita admiração, com muita saudade. Relembramos o tempo feliz que aqui vivemos enquanto ela foi secretária.
Quando a reencontrei na exposição, me veio a lembrança a primeira vez que a vi: era 1986, o prefeito era Humberto Parro e naquela manhã acordei cedo para ir à posse da nova secretária.
O auditório do salão nobre da prefeitura de Osasco estava lotado. Todos queriam ver a nova secretária de Cultura da cidade. Dezenas de pessoas mais altas do que eu me impediam de vê-la. Vivíamos os últimos anos de ditadura, era recente a legalização do PCB, mas mesmo assim não havia liberdade total, por isso senti um arrepio dos pés à cabeça quando ouvi aquela voz feminina, firme, corajosa, que ali já traduzia a que viera: “eu, mulher, comunista, quero dizer a vocês que....”
Não me lembro exatamente do que disse, mas senti que ali não havia uma burocrata, mas sim alguém que vivia e respirava cultura. Alguém que também trabalhava com arte, e por isso sabia o que sentíamos, sabia o que queríamos, intuía o que sonhávamos.
Consegui chegar mais perto e vê-la. Era (é) uma moça muito bonita, com olhos grandes e expressivos. Vendo-a e ouvindo-a senti a coragem e a sinceridade daquela mulher.
Pela primeira vez teríamos uma secretária que falava nossa linguagem. Uma artista. Sabia o que é a difícil arte de levar seus trabalhos ao povo. Pela primeira vez tínhamos uma secretária que não temia “o cheiro do povo”, como o presidente que estava terminando seu mandato.
Assim que tomou posse, Ana convidou os produtores culturais para uma reunião. Queria nos ouvir. E me lembro de que foi uma sessão de lavagem de roupa suja. Todos estavam magoados com a situação da Cultura na cidade. Ana nos ouviu pacientemente, e muitas vezes aquelas reuniões voltaram a acontecer.
Começamos a conhecê-la e a admirá-la cada vez mais. Não sabíamos qual era o milagre, mas ela “tirava leite das pedras”, e conseguia que todos levassem seus trabalhos ao povo. Conseguia concretizar todos os projetos.
Rapidamente percebeu que não só os artistas, mas o povo também sentia fome e sede de arte, de cultura. Que isso não é privilégio apenas dos ricos, nem dos intelectuais.
E ela conseguiu realizar aquela proeza: promoveu atividades que além de remunerarem os artistas e demais produtores culturais, conseguia levar àquelas atividades do centro aos bairros. Dos bairros ao centro.
Foi assim que Cezar Nascimento realizou festas do folclore na periferia de Osasco. Foi assim que promoveu festivais que iam da música sertaneja ao rock.
Ela não se colocava em um pedestal, diferentemente dos secretários que a antecederam, estava sempre conosco, compartilhava todos os nossos sonhos, todos nossos desejos, toda nossa alegria, e embora a verba fosse mínima, conseguia que realizássemos o máximo.
Eu não trabalhava na prefeitura, e havia apresentado um projeto de embelezamento urbano que envolvia artistas plásticos e poetas mas que nunca saíra do papel.
Assim que soube, Ana nomeou uma artista plástica para coordenar o projeto. Fazíamos isso aos sábados e domingos, e aqueles finais de semana eram uma verdadeira festa para todos nós.
Lembro-me de ver Ana sentadinha em uma calçada, com um boné na cabeça pra proteger-se do sol, comendo um sanduíche com um refrigerante, enquanto pintávamos e colocávamos nossos poemas nos muros.
João Subires, Fiori, Rui de Souza, Edson Soares e outros que trabalhavam na secretaria fundaram cineclubes espalhados pela cidade. Realizamos algumas exibições de filmes censurados pela ditadura, e para evitar que a polícia ou algum agente do Dops, nos arrancasse o projetor, como era costume na época, formávamos um cordão de isolamento cercando-o.
Ana incentivava cada um em sua área, e todos estavam felizes. Os grupos de teatro puderam apresentar seus trabalhos, e até um concurso de artes plásticas cujo prêmio foi uma viagem ao Japão com passagens e estada sem despesas para o artista, milagrosamente ela conseguiu. Foi assim que Hoffman Merli levou seus quadros para expor naquele país.
Um dia, conversando com minha amiga Cristinha Leite, artista plástica, comentamos: a cidade que era cinza, de repente ficou repleta de cores. É a imagem que melhor traduz a passagem de Ana por Osasco.
Algum tempo após sua saída, Cris e eu voltamos a nos encontrar e o comentário foi outro: as vozes se calaram, os instrumentos desafinaram, e a cidade voltou a ser cinza. De 2005 a 2007 a secretaria ficou dois anos sob a direção do PT e a Cultura estava novamente florescendo. Mas foram só dois anos.
Hoje a cidade está mais cinza do que nunca. E se não fosse a instalação do SESC Osasco, diríamos que não há nada de novo sob o sol.
Dar unidade à diversidade contentando todos os setores eis o que ela conseguiu no meio cultural de Osasco.
É...o movimento cultural da nossa cidade nunca foi tão feliz como quando Ana de Hollanda foi nossa secretária de Cultura...
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Riso, é lindo constatar que o povo
ResponderExcluiralém de querer saciadas as suas necessidades básicas
também se abrem para as artes.
Beijos
Risomar, as tuas linhas sobre Ana de Hollanda deixam na gente uma vontade imensa de conhecê-la. E vendo, na tua memória, aquela moça comunista a comer sanduíche enquanto os artistas pintavam, outras curiosidades acendem:
ResponderExcluirquantos namorados ela teve em Osaco? a quantos corações perturbou?
Quando puder, faça essas inconfidências de pernambucana.
Amigos queridos
ResponderExcluirAdorei os comentários. Eram inúmeros os apaixonados por Ana, mas para desespero deles,ela estava casada na época.
Este sorriso lindo que os olhos acompanham é uma constante. Ana teve câncer, mas mesmo quando esteve doente, nunca deixou de sorrir.Talvez esta alegria de viver seja o segredo que a levou a vencer a doença. É uma doce guerreira. Mas é firme e sabe o que quer.Abraços
Risomar, isso é o que se chama iluminação. O interessante que nem todos veem essa luz. Bom para uns e nem tanto para outros. Acredito no que diz. Não privilegiar um interesse, mas ser porta-voz e atender a vários, é o que define um líder.
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