domingo, 26 de dezembro de 2010




O leite luminoso das estrelas

* Por Daniel Santos

Numa dessas madrugadas de desassossego, fui até à janela para fumar e, quem sabe, trazer de volta o sono que minha consciência vetara: nada ia bem do Oiapoque ao Chuí; muito menos, de Beirute a Tel-Aviv.

Nesse cenário encardido, meus olhos procuraram algum assunto, algo que cintilasse na treva, mas minha atenção voltou-se para um vulto turvo, em andrajos, que logo se escondeu atrás de uma árvore da praça.

Era, provavelmente, um homem, uma criatura da noite, um desses que as estatísticas não contabilizam. Talvez nem dentes tivesse, mas tinha-os eu, e mordiscava o lábio inferior enquanto me intrigava a cena toda.

O silêncio vigorava naquela atmosfera de certa densidade em que partículas em suspensão começavam a baixar sobre superfícies umedecidas por um sereno só bênçãos que a tudo harmonizavam, ou assim parecia.

Quanto a mim, cada vez mais irrequieto e atento, atirei longe a guimba com um piparote que, embora não percebesse, era pura arrogância – um gesto herdado, na certa, de meu pai ou de qualquer outro homem.

Finquei de vez os cotovelos no parapeito e vi mais: o vulto, o zé-ninguém, dava saltos pela praça, por trás dos arbustos, como se dançasse uma valsa macabra e solitária. A seu jeito, talvez, ele fosse feliz.

Eu, não. Mas percebia semelhanças entre nós. Estávamos sozinhos, por exemplo. E, cada qual a seu modo, experimentávamos o mal-estar de viver num mundo que desconhecia compaixão, grandeza de espírito...

Além do mais, tínhamos quase a mesma estatura, pés ligeiramente voltados para dentro e aquela expressão de quem procura e procura e procura e nada encontra, exceto novas perguntas sem respostas.

Em dado momento, um susto. O sujeito olhava fixo por entre as ramas do ficus como se me reconhecesse ou quisesse me conhecer, sei lá! Recuei, então, para dentro do quarto, mas continuei observando tudo.

Ele caminhou até uma clareira e ergueu a cabeça ao céu. Também eu me elevei. E bebemos juntos o leite luminoso das estrelas. Só depois urramos – o som mais melodioso de que um bicho da noite é capaz.

* Jornalista carioca, 56 anos. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

2 comentários:

  1. Daniel, desaparecido há tempos. Queria seu endereço de e-mail.
    Destaco: "procura e nada encontra, exceto novas perguntas sem respostas".
    Filosofias de vida semelhantes entre narrador e personagem.

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  2. O desligamento do Daniel do Literário foi um golpe para mim. Foi uma perda imensa e até hoje desconheço o motivo. Gostaria de tê-lo de volta, mas perdi contato com ele por completo. Ainda tenho esperança que, no nosso quinto aniversário, em 27 de março de 2011, terei o privilégio e a hopnra de contar com sua presença semanal, aqui no Literário, como colunista. E a esperança é a última que morre, como bem diz conhecido clichê.

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