Anacrônica
* Por Marcelo Sguassabia
Outro dia um colega de trabalho me mostrou um programinha que ele tinha acabado de baixar da internet: um simulador de barulho de máquina de escrever. Acionado o software, bastava ligar as caixinhas de som e, ao digitar no teclado, saíam ruídos que imitavam o tec-tec da dita cuja. Com o requinte de poder escolher entre vários modelos de máquina. Para cada modelo um som diferente, cópia fiel do original. O mais engraçado é que se ia escrevendo e, ao chegar o fim da linha, tinha aquele barulhão do carro da máquina voltando.
Retornei ao meu lugar e à época em que se datilografava ao invés de digitar. Tinha uns 12 ou 13 anos quando meu pai me matriculou num curso de datilografia da Escola Remington, do Seu Mario Sundfeld. Guardo até hoje o certificado de conclusão – passei com 9. Lembro direitinho do primeiro exercício, só com a mão esquerda: asdf asdf asdf – quatro ou cinco linhas da mesma seqüência, para o aluno memorizar a localização das teclas. Para boa conservação do equipamento, era bom passar o limpa-tipos de vez em quando – uma espécie de borrachinha que, pressionada como um chiclete nos tipos da máquina, ia tirando os resíduos de pó e de tinta que se acumulavam nas letras e tornavam os caracteres ilegíveis.
Quando a gente xxxxxxx errava alguma coisa no xxxx que estava escrevendo, ou resolvia substiutir uma xxxxxxxxxx palavra por outra, o texto ficava cheio de xxxxxxxx. Ou então se usava o corretivo, também chamado de branquinho, utilizado por muitos para fins bem menos nobres. Hoje, o processo de gestação do texto não deixa rastro. Os originais já nascem insípidos e imaculados. Tudo se deleta, se remove, se inverte, sem rabisco e rasura. É o fim do lixo cheio de papel amassado.
Uma máquina de escrever era o que se poderia chamar de “bem durável”, com direito a plaquinha de patrimônio. Objeto de ciúme e estimação, inspirava respeito. Era um monolito encravado na mesa do escritório. Muita gente ganhava uma na formatura do ginásio e ficava com ela até se aposentar. A pessoa, porque a máquina, nem pensar. Quanto mais se batucava mais a bichinha ia amaciando o teclado, ficando mais sensível ao toque e aos caprichos do dono. Tinha valor, atravessava gerações, ficava de herança. Já pensou hoje um computador ser arrolado em inventário? Por mais moderno que seja, daqui a uns meses não valerá mais nada – não suportará a versão 11.2 do Word, os novos recursos do Excel e a interface amigável do próximo Windows. Para que os programas continuem rodando satisfatoriamente, será preciso providenciar mais 4 pentes de memória, um processador mais potente, um hd de 100 gigas e 6 entradas USB. Aí o técnico em informática dirá a você que talvez seja melhor e mais em conta trocar de uma vez a CPU ao invés fazer as atualizações.
Em contrapartida, o que a minha boa e velha Hermes portátil me pede? Quando muito uma fitinha nova a cada dois anos. E olha que maus-tratos é que não faltaram nesse tempo todo em que está comigo. Quanta migalha de bolacha e cinza de cigarro já deixei cair em cima dela. Poderia entornar uma ceia de Natal inteira sobre a coitada, com leitoa e tudo, que ela continuaria firme. Já o teclado do computador, se pingar uma gotinha de refrigerante, pode esquecer. Curto nos circuitos, falha geral de sistema, adeus aos dados não salvos.
Preço não é desculpa pra que você deixe de satisfazer esse excêntrico sonho de consumo. Por 100, 150 reais dá pra comprar uma maquininha bem razoável nas poucas oficinas de manutenção remanescentes. De quarta ou quinta mão, mas em perfeito estado de funcionamento – revisada e garantida. Mesmo que não seja pra usar, mas pra sentir o gostinho (ou o cheirinho) de ter uma. Sim, porque as máquinas de escrever têm um cheiro peculiar, de metal e óleo lubrificante. Todas cheiram assim. Exceto as que estão no ferro-velho.
NOTA: esta crônica foi gerada em ambiente Windows XP, no editor de texto Word 2003, salva em disco rígido, copiada em CD e finalmente passada a limpo numa Hermes Baby cor de abóbora, fabricada em 1979.
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
* Por Marcelo Sguassabia
Outro dia um colega de trabalho me mostrou um programinha que ele tinha acabado de baixar da internet: um simulador de barulho de máquina de escrever. Acionado o software, bastava ligar as caixinhas de som e, ao digitar no teclado, saíam ruídos que imitavam o tec-tec da dita cuja. Com o requinte de poder escolher entre vários modelos de máquina. Para cada modelo um som diferente, cópia fiel do original. O mais engraçado é que se ia escrevendo e, ao chegar o fim da linha, tinha aquele barulhão do carro da máquina voltando.
Retornei ao meu lugar e à época em que se datilografava ao invés de digitar. Tinha uns 12 ou 13 anos quando meu pai me matriculou num curso de datilografia da Escola Remington, do Seu Mario Sundfeld. Guardo até hoje o certificado de conclusão – passei com 9. Lembro direitinho do primeiro exercício, só com a mão esquerda: asdf asdf asdf – quatro ou cinco linhas da mesma seqüência, para o aluno memorizar a localização das teclas. Para boa conservação do equipamento, era bom passar o limpa-tipos de vez em quando – uma espécie de borrachinha que, pressionada como um chiclete nos tipos da máquina, ia tirando os resíduos de pó e de tinta que se acumulavam nas letras e tornavam os caracteres ilegíveis.
Quando a gente xxxxxxx errava alguma coisa no xxxx que estava escrevendo, ou resolvia substiutir uma xxxxxxxxxx palavra por outra, o texto ficava cheio de xxxxxxxx. Ou então se usava o corretivo, também chamado de branquinho, utilizado por muitos para fins bem menos nobres. Hoje, o processo de gestação do texto não deixa rastro. Os originais já nascem insípidos e imaculados. Tudo se deleta, se remove, se inverte, sem rabisco e rasura. É o fim do lixo cheio de papel amassado.
Uma máquina de escrever era o que se poderia chamar de “bem durável”, com direito a plaquinha de patrimônio. Objeto de ciúme e estimação, inspirava respeito. Era um monolito encravado na mesa do escritório. Muita gente ganhava uma na formatura do ginásio e ficava com ela até se aposentar. A pessoa, porque a máquina, nem pensar. Quanto mais se batucava mais a bichinha ia amaciando o teclado, ficando mais sensível ao toque e aos caprichos do dono. Tinha valor, atravessava gerações, ficava de herança. Já pensou hoje um computador ser arrolado em inventário? Por mais moderno que seja, daqui a uns meses não valerá mais nada – não suportará a versão 11.2 do Word, os novos recursos do Excel e a interface amigável do próximo Windows. Para que os programas continuem rodando satisfatoriamente, será preciso providenciar mais 4 pentes de memória, um processador mais potente, um hd de 100 gigas e 6 entradas USB. Aí o técnico em informática dirá a você que talvez seja melhor e mais em conta trocar de uma vez a CPU ao invés fazer as atualizações.
Em contrapartida, o que a minha boa e velha Hermes portátil me pede? Quando muito uma fitinha nova a cada dois anos. E olha que maus-tratos é que não faltaram nesse tempo todo em que está comigo. Quanta migalha de bolacha e cinza de cigarro já deixei cair em cima dela. Poderia entornar uma ceia de Natal inteira sobre a coitada, com leitoa e tudo, que ela continuaria firme. Já o teclado do computador, se pingar uma gotinha de refrigerante, pode esquecer. Curto nos circuitos, falha geral de sistema, adeus aos dados não salvos.
Preço não é desculpa pra que você deixe de satisfazer esse excêntrico sonho de consumo. Por 100, 150 reais dá pra comprar uma maquininha bem razoável nas poucas oficinas de manutenção remanescentes. De quarta ou quinta mão, mas em perfeito estado de funcionamento – revisada e garantida. Mesmo que não seja pra usar, mas pra sentir o gostinho (ou o cheirinho) de ter uma. Sim, porque as máquinas de escrever têm um cheiro peculiar, de metal e óleo lubrificante. Todas cheiram assim. Exceto as que estão no ferro-velho.
NOTA: esta crônica foi gerada em ambiente Windows XP, no editor de texto Word 2003, salva em disco rígido, copiada em CD e finalmente passada a limpo numa Hermes Baby cor de abóbora, fabricada em 1979.
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
A minha máquina, aliás, da minha irmã e todo mundo tirava uma casquinha...que saudades.
ResponderExcluirFicava com os dedos e o rosto cheios de tinta
mas sempre me maravilhava quando via as letrinhas
surgirem...
Ótimo texto
Fez isso para matar a saudade, mesmo sem precisão. Isso é que é saber viver!
ResponderExcluirMinha geração usou, mas nunca usei máquina de escrever, mesmo com meu pai insistindo nisso, já que ele era contador e trabalhava sempre numa delas.