quinta-feira, 23 de dezembro de 2010




Christmas Evening

* Por Marcelo Sguassábia

Ilustração: Thiago Cayres

Certa vez, em tempos aqueles, os dias quase sempre azuis se perfilavam sem noção de que eram a paz da vida acontecendo. Por essa época ela cantava no coral e era comum ver gente com frasqueiras e sobretudos pelo boulevard, vivendo rotinas sem sustos em casas sem adornos, muitos com fones de ouvidos a ilhá-los do universo e cercanias. Já ela ia assobiando a ária que iria cantar na confraternização da associação de bairro.

“Maldito Handel, não pensou em mim”, matutava entre uma e outra colcheia escorregadia, aguda além da conta. Talvez tenha feito de propósito, e ela imaginava um caricato Handel profético, compondo com a intenção de maltratar as frágeis gargantinhas do século 21.

Aguarda o sinal abrir, o pezinho marca o compasso. Uma rajada de vento, ajeita o cachecol no pescoço chupado na véspera. Era um cavalo confinado, o sujeito. Chegou relinchando desejo e desembestou-se por cima rasgando roupa e lençóis, sem maiores cerimônias. Não queria. Não ontem, quando uma fanfarra desafinada cismou de ensaiar o dia todo no fundo da sua cachola.

Dá mais uma volta de cachecol em torno do pescoço. Embora um resfriado agora fosse tudo de bom, desculpa perfeita para faltar ao recital e se meter de vez embaixo das cobertas. Pausa para se pôr nos eixos, degolar mentalmente o cavalo e dar a Handel a merecida banana – a que ninguém ousaria dar ao gênio dos Oratórios. Happy Christmas, mundo. Passe muito bem sem mim.


* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”

Um comentário:

  1. O alheiamento permitido pelo fone de ouvido é mais uma barreira no convívio humano. Como se já não bastasse o mal-fadado celular sem cerimônias ainda maiores do que esse "cavalo confinado". Ele entende de jejuns. E você, Marcelo, de Noite de Natal.

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