A geração que desistiu
* Por Fausto Brignol
Palavra que eu acreditei que no século XXI nós teríamos uma geração forte, atuante, culta, inteligente, cobrando os seus direitos, não sendo enganada facilmente por qualquer aventureiro ou aventureira, partindo para a briga, quando necessário, não se acomodando às armadilhas do sistema.
Pelo que aconteceu nos anos 1960 e 1970, e parte dos ’80, tudo indicava que seria assim. Naquela época as pessoas gostavam de ler, sabiam interpretar as situações, desejavam uma opção à máquina opressora que ainda está aí – mascarada, mas inteira – e procuravam alternativas. Reuniam-se, conversavam, panfleteavam, iam para as ruas. Mostravam que estavam vivas.
Havia uma necessidade urgente de se ler todos os livros – porque a literatura era excelente -, de se ouvir todos os discos – porque a música era muito boa – de se ir ao teatro – porque havia teatro de verdade – e de freqüentar o cinema – que era novo e instigante no Brasil e maravilhoso na França e na Itália. E até o cinema dos Estados Unidos tinha um ou outro bang-bang que prestava.
O amor era misterioso e ainda muito romântico, e as pessoas amavam de verdade, não apenas faziam sexo. Era uma época em que tudo estava acontecendo ao mesmo tempo. Tinha até movimento feminista, mas não havia agressividade e competição entre sexos. E os homossexuais de ambos os sexos eram homossexuais de ambos os sexos, sem precisar alardear a sua opção sexual com passeatas. Viam-se pouquíssimos travestis e todas as pessoas de todos os sexos procuravam se ajudar emocionalmente, mesmo porque os nossos pais tinham tido uma educação sexual muito precária. Mas isso era perdoável. Nós seríamos melhores, acreditávamos.
Era época de ditadura militar e de censura prévia, mas muita música boa era feita na nossa MPB. Apareciam novos cantores e cantoras, compositores e compositoras. Alguns gostavam mais de Rita Lee, outros preferiam Baby Consuelo. Caetano e Gil estavam aparecendo e prometiam uma reconstrução musical no que chamavam de Tropicalismo. Roberto Carlos e a Jovem Guarda conservavam o romantismo, um novo romantismo. Os sambistas faziam bons sambas e até a música sertaneja era realmente sertaneja e não country. Mesmo censurado, foi a época em que Chico Buarque mais criou. Época do surpreendente Milton Nascimento. E dos Secos e Molhados.
Até o rock era progressivo e prometia mais. Depois dos Beatles e dos eternos Rolling Stones, pensávamos que a revolução musical, que refletia uma revolução cultural, não seria apenas rock, mas algo diferente.
E foi. Surgiram as óperas-rock –The Who, Queen, Genesis – e o rock que ia além do rock com Led Zepellin, Fran Zappa, Pink Floyd e tantos outros. Épicas continuações da segunda fase dos Beatles, a fase lisérgica e mística. E no cinema “Jesus Cristo Superstar”, “Hair” e “Godspel” abriam novos caminhos.
O mote era “Viver mais um sonho impossível”. Quixotescos, lutávamos pela felicidade de Dulcinéia.
Roupas. Cabelos. Gíria. Hábitos. E principalmente confiança - todos confiavam em todos. E quando estudávamos, era de verdade. Nada nos era dado de presente. Não tínhamos celulares, mas nos comunicávamos facilmente. Para escrever, máquinas de datilografar ou caneta. Para fotografar, máquinas que teríamos que conhecer o seu funcionamento. O mais difícil era o mais interessante.
Durante a ditadura, alguns enveredaram pela luta armada. Foram traídos pelas mentes fracas de alguns supostos companheiros. Foi quase um suicídio. Mas lutaram acreditando que faziam o certo. As Forças Armadas se revelaram como entidade grotesca. Redesenharam-se com o que foi chamado de abertura política. Passaram o poder para as forças desarmadas, que tinham os mesmos objetivos, mas eram mais sorridentes e faziam mais discursos.
Redesenhava-se, também, a juventude, que foi chamada para abraçar líderes desconhecidos e esquecer a sua proposta de alternativa ao Poder.
Forjavam-se os políticos profissionais, que também eram jovens, mas eram somente políticos profissionais. Entreviam grandes possibilidades futuras. Mas precisavam apagar a chama da juventude, no Brasil, para poder usar o seu vigor na política. Preparava-se um novo tipo de mundo, onde não caberia um movimento underground.
O que o Poder mais teme não é a revolução política. Esta pode ser vencida, seus membros podem ser comprados ou, se vencerem, poderão ser encaminhados, aos poucos, para as velhas práticas que combateram.
O que o Poder teme é a revolução cultural, que não pode ser prevista, evitada ou controlada; sacode alicerces, derruba templos e faz as suas próprias regras.
A maneira encontrada foi colocar os jovens em partidos políticos, como se fossem compartimentos estanques. Alguns partidos, como o PT, eram divididos em tendências políticas. Havia lugar para todos. O importante era que cada um se definisse politicamente – para que os dossiês fossem feitos mais facilmente, dentro e fora dos partidos, e as pessoas fossem mais facilmente controladas.
Em troca do sonho da alternativa cultural que pretendia transformar a sociedade, colocava-se a alternativa política que perpetuaria a mesma corrupta sociedade.
Pregava-se um aleatório sonho de liberdade. Mas sempre dentro dos padrões estabelecidos pelo Sistema. Já nos anos ’80, percebia-se que aquela juventude que florescera nos ’70, ansiando por derrubar o deus Baal da mentira pertencia agora à sua religião, mas não sabia. A luta contra o Sistema, contra o Establishment, passara a ser uma luta meramente política, entre sistemas dentro do mesmo Sistema. Elis Regina cantava “eles venceram...” – e todos acreditaram.
Esperava-se que uma nova geração surgisse: os filhos dos que contestaram não só o regime político, mas a cultura da políticacomo única alternativa social.
E quando essa geração surgiu, o Sistema já estava organizado para comprar a sua força juvenil em troca de máquinas virtuais, sexo e drogas.
Principalmente no Brasil, um país sem alma e distanciado em sua subcultura anos luz dos demais países latino-americanos – que tem orgulho de si mesmos, de sua história, de suas lutas e de suas tradições - a nova geração concordou em não raciocinar, em não protestar, em não sonhar. Aceitou assimilar todos os valores que lhe fossem dados, tendo o dinheiro como referência principal e o lucro como objetivo de vida. E a escravidão espiritual.
Aceitaram o medo como um sentimento natural. Seus valores são monetários, seus desejos são físicos. Não ousam ousar: o Sistema é um grande Bicho-Papão que assusta muito esse pessoal. Concordam em tudo que os dominadores da televisão dizem. E terão filhos iguais.
Hoje, quando olhamos em volta, vemos apenas robôs apressados e ansiosos por cumprir a sua programação diária. No entanto, às vezes, um entre milhares nos mostra algum brilho distinto na maneira de olhar.
E ressurge alguma esperança de que alguém dentro dessa geração que desistiu de si mesma... Ou talvez seja o hábito de ter esperança.
• Jornalista e poeta
* Por Fausto Brignol
Palavra que eu acreditei que no século XXI nós teríamos uma geração forte, atuante, culta, inteligente, cobrando os seus direitos, não sendo enganada facilmente por qualquer aventureiro ou aventureira, partindo para a briga, quando necessário, não se acomodando às armadilhas do sistema.
Pelo que aconteceu nos anos 1960 e 1970, e parte dos ’80, tudo indicava que seria assim. Naquela época as pessoas gostavam de ler, sabiam interpretar as situações, desejavam uma opção à máquina opressora que ainda está aí – mascarada, mas inteira – e procuravam alternativas. Reuniam-se, conversavam, panfleteavam, iam para as ruas. Mostravam que estavam vivas.
Havia uma necessidade urgente de se ler todos os livros – porque a literatura era excelente -, de se ouvir todos os discos – porque a música era muito boa – de se ir ao teatro – porque havia teatro de verdade – e de freqüentar o cinema – que era novo e instigante no Brasil e maravilhoso na França e na Itália. E até o cinema dos Estados Unidos tinha um ou outro bang-bang que prestava.
O amor era misterioso e ainda muito romântico, e as pessoas amavam de verdade, não apenas faziam sexo. Era uma época em que tudo estava acontecendo ao mesmo tempo. Tinha até movimento feminista, mas não havia agressividade e competição entre sexos. E os homossexuais de ambos os sexos eram homossexuais de ambos os sexos, sem precisar alardear a sua opção sexual com passeatas. Viam-se pouquíssimos travestis e todas as pessoas de todos os sexos procuravam se ajudar emocionalmente, mesmo porque os nossos pais tinham tido uma educação sexual muito precária. Mas isso era perdoável. Nós seríamos melhores, acreditávamos.
Era época de ditadura militar e de censura prévia, mas muita música boa era feita na nossa MPB. Apareciam novos cantores e cantoras, compositores e compositoras. Alguns gostavam mais de Rita Lee, outros preferiam Baby Consuelo. Caetano e Gil estavam aparecendo e prometiam uma reconstrução musical no que chamavam de Tropicalismo. Roberto Carlos e a Jovem Guarda conservavam o romantismo, um novo romantismo. Os sambistas faziam bons sambas e até a música sertaneja era realmente sertaneja e não country. Mesmo censurado, foi a época em que Chico Buarque mais criou. Época do surpreendente Milton Nascimento. E dos Secos e Molhados.
Até o rock era progressivo e prometia mais. Depois dos Beatles e dos eternos Rolling Stones, pensávamos que a revolução musical, que refletia uma revolução cultural, não seria apenas rock, mas algo diferente.
E foi. Surgiram as óperas-rock –The Who, Queen, Genesis – e o rock que ia além do rock com Led Zepellin, Fran Zappa, Pink Floyd e tantos outros. Épicas continuações da segunda fase dos Beatles, a fase lisérgica e mística. E no cinema “Jesus Cristo Superstar”, “Hair” e “Godspel” abriam novos caminhos.
O mote era “Viver mais um sonho impossível”. Quixotescos, lutávamos pela felicidade de Dulcinéia.
Roupas. Cabelos. Gíria. Hábitos. E principalmente confiança - todos confiavam em todos. E quando estudávamos, era de verdade. Nada nos era dado de presente. Não tínhamos celulares, mas nos comunicávamos facilmente. Para escrever, máquinas de datilografar ou caneta. Para fotografar, máquinas que teríamos que conhecer o seu funcionamento. O mais difícil era o mais interessante.
Durante a ditadura, alguns enveredaram pela luta armada. Foram traídos pelas mentes fracas de alguns supostos companheiros. Foi quase um suicídio. Mas lutaram acreditando que faziam o certo. As Forças Armadas se revelaram como entidade grotesca. Redesenharam-se com o que foi chamado de abertura política. Passaram o poder para as forças desarmadas, que tinham os mesmos objetivos, mas eram mais sorridentes e faziam mais discursos.
Redesenhava-se, também, a juventude, que foi chamada para abraçar líderes desconhecidos e esquecer a sua proposta de alternativa ao Poder.
Forjavam-se os políticos profissionais, que também eram jovens, mas eram somente políticos profissionais. Entreviam grandes possibilidades futuras. Mas precisavam apagar a chama da juventude, no Brasil, para poder usar o seu vigor na política. Preparava-se um novo tipo de mundo, onde não caberia um movimento underground.
O que o Poder mais teme não é a revolução política. Esta pode ser vencida, seus membros podem ser comprados ou, se vencerem, poderão ser encaminhados, aos poucos, para as velhas práticas que combateram.
O que o Poder teme é a revolução cultural, que não pode ser prevista, evitada ou controlada; sacode alicerces, derruba templos e faz as suas próprias regras.
A maneira encontrada foi colocar os jovens em partidos políticos, como se fossem compartimentos estanques. Alguns partidos, como o PT, eram divididos em tendências políticas. Havia lugar para todos. O importante era que cada um se definisse politicamente – para que os dossiês fossem feitos mais facilmente, dentro e fora dos partidos, e as pessoas fossem mais facilmente controladas.
Em troca do sonho da alternativa cultural que pretendia transformar a sociedade, colocava-se a alternativa política que perpetuaria a mesma corrupta sociedade.
Pregava-se um aleatório sonho de liberdade. Mas sempre dentro dos padrões estabelecidos pelo Sistema. Já nos anos ’80, percebia-se que aquela juventude que florescera nos ’70, ansiando por derrubar o deus Baal da mentira pertencia agora à sua religião, mas não sabia. A luta contra o Sistema, contra o Establishment, passara a ser uma luta meramente política, entre sistemas dentro do mesmo Sistema. Elis Regina cantava “eles venceram...” – e todos acreditaram.
Esperava-se que uma nova geração surgisse: os filhos dos que contestaram não só o regime político, mas a cultura da políticacomo única alternativa social.
E quando essa geração surgiu, o Sistema já estava organizado para comprar a sua força juvenil em troca de máquinas virtuais, sexo e drogas.
Principalmente no Brasil, um país sem alma e distanciado em sua subcultura anos luz dos demais países latino-americanos – que tem orgulho de si mesmos, de sua história, de suas lutas e de suas tradições - a nova geração concordou em não raciocinar, em não protestar, em não sonhar. Aceitou assimilar todos os valores que lhe fossem dados, tendo o dinheiro como referência principal e o lucro como objetivo de vida. E a escravidão espiritual.
Aceitaram o medo como um sentimento natural. Seus valores são monetários, seus desejos são físicos. Não ousam ousar: o Sistema é um grande Bicho-Papão que assusta muito esse pessoal. Concordam em tudo que os dominadores da televisão dizem. E terão filhos iguais.
Hoje, quando olhamos em volta, vemos apenas robôs apressados e ansiosos por cumprir a sua programação diária. No entanto, às vezes, um entre milhares nos mostra algum brilho distinto na maneira de olhar.
E ressurge alguma esperança de que alguém dentro dessa geração que desistiu de si mesma... Ou talvez seja o hábito de ter esperança.
• Jornalista e poeta
Que seja Fausto...mas que o brilho
ResponderExcluirum dia se transforme em um foco
de luz e que as névoas se dissipem...
Brilhante texto.
Abraços.
Feliz Natal.