Escasso repertório
* Por Mara Narciso
Vi o mar da Dinamarca tinto de sangue, assim como o gelo do Pólo Norte que também estava assim. No Canadá, começou a caça liberada das focas. O mundo ficou em choque, ao ver os bebês-focas sendo trucidados por caçadores autorizados pelo Governo. Aquela carinha angelical implorando pela vida atormentou o internauta anos atrás. A imagem de um homem armado com um pau batendo diversas vezes sobre a cabeça do animal, de vários indivíduos focas, esmagando-as, me veio à mente ontem.
A quantidade de crimes e a violência espantosa, em todos os lugares, estão gerando, além de pânico, outro efeito colateral: escassez de repertório. As palavras minguaram diante de tanta irracionalidade. Não encontro vocabulário adequado para expressar o que senti, além dos engulhos, ao ver a martirização do torcedor do Cruzeiro, filmada por câmeras de segurança, na frente de uma Casa de Shows na Savassi, em Belo Horizonte. Os médicos deveriam proibir assistir ao noticiário durante as refeições, porque está mais do que indigesto, está intragável.
A vítima já estava no chão, depois de alguns golpes. Uma chusma de insanos da torcida organizada rival vê que está desmaiado, mas vem com a sola do sapato e pula em cima da cabeça dele, um rapaz de 19 anos. Outro chega com um porrete de metal, da marcação do trânsito e bate, não uma vez, mas muitas, incontáveis vezes, despejando toda a sua frustração de perdedor, em cima do rapaz no chão. Mas a tortura ainda está por terminar. Outro chega com parte de uma placa, também do trânsito, e enfurecido, ataca, não uma vez, mais muitas vezes o corpo inerte, principalmente a cabeça, já esfacelada.
Um rapaz sai do grupo e bate uma lâmpada fluorescente no rosto de um transeunte na Avenida Paulista. O ataque pega a vítima de surpresa, na principal via de São Paulo. A intenção é aleijar, deformar o rosto com cortes profundos. O agressor repete o golpe. As câmeras de segurança dos prédios não desmotivam as feras de cometer atrocidades. É preciso que os seguranças apareçam para impedir a morte do rapaz. Onde estamos?
Turmas são cheias de valentias. Em grupo, cada um toma a coragem que nunca teve e cresce em força e fúria. Sentem-se grandes e capazes de proezas jamais imaginadas. O sentimento de fracasso, de insignificância, desaparece momentaneamente, para dar lugar à brutalidade sem precedentes. A ira, guardada por toda a existência, vem a furo e transborda em cenas aterradoras.
O que dizem as mães desses monstros? Procuram entregar os filhos, perigosos para a sociedade, ou os protegem? Até que ponto alguém fora desse grupo tem culpa de alguma coisa? Omissão da família? Falta de limites, normas e regras? Sociedade em que tudo pode? Desrespeito a si, a tudo e a todos? Impunidade? Exemplo dos superiores nesse vale tudo?
Não estudei o comportamento humano, sou leiga e meu julgamento é apenas pessoal, mas vi, e sei o que sinto. Quando ainda pensava nesses casos, com náuseas e repulsa, vejo que um aluno de educação física não gostou da nota baixa. No dia seguinte a má notícia, levou para o Instituto Metodista Isabela Hendrix, em Belo Horizonte, uma faca, e desferindo golpes no professor, de 39 anos, cujo pai foi morto, também a facadas no começo do ano, o matou nos corredores da escola. Era horário de aulas. Houve choro e revolta.
A sociedade está podre, desumanizada e totalmente bruta. Avançamos no tempo, na tecnologia e regredimos em civilidade. Chamar essa malta de selvagens e bárbaros é desprestigiar os selvagens originais e os bárbaros de outrora. A falta de repertório é tão clamorosa, que não há frase de efeito para terminar o texto. O jeito é chamar os comerciais.
* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
* Por Mara Narciso
Vi o mar da Dinamarca tinto de sangue, assim como o gelo do Pólo Norte que também estava assim. No Canadá, começou a caça liberada das focas. O mundo ficou em choque, ao ver os bebês-focas sendo trucidados por caçadores autorizados pelo Governo. Aquela carinha angelical implorando pela vida atormentou o internauta anos atrás. A imagem de um homem armado com um pau batendo diversas vezes sobre a cabeça do animal, de vários indivíduos focas, esmagando-as, me veio à mente ontem.
A quantidade de crimes e a violência espantosa, em todos os lugares, estão gerando, além de pânico, outro efeito colateral: escassez de repertório. As palavras minguaram diante de tanta irracionalidade. Não encontro vocabulário adequado para expressar o que senti, além dos engulhos, ao ver a martirização do torcedor do Cruzeiro, filmada por câmeras de segurança, na frente de uma Casa de Shows na Savassi, em Belo Horizonte. Os médicos deveriam proibir assistir ao noticiário durante as refeições, porque está mais do que indigesto, está intragável.
A vítima já estava no chão, depois de alguns golpes. Uma chusma de insanos da torcida organizada rival vê que está desmaiado, mas vem com a sola do sapato e pula em cima da cabeça dele, um rapaz de 19 anos. Outro chega com um porrete de metal, da marcação do trânsito e bate, não uma vez, mas muitas, incontáveis vezes, despejando toda a sua frustração de perdedor, em cima do rapaz no chão. Mas a tortura ainda está por terminar. Outro chega com parte de uma placa, também do trânsito, e enfurecido, ataca, não uma vez, mais muitas vezes o corpo inerte, principalmente a cabeça, já esfacelada.
Um rapaz sai do grupo e bate uma lâmpada fluorescente no rosto de um transeunte na Avenida Paulista. O ataque pega a vítima de surpresa, na principal via de São Paulo. A intenção é aleijar, deformar o rosto com cortes profundos. O agressor repete o golpe. As câmeras de segurança dos prédios não desmotivam as feras de cometer atrocidades. É preciso que os seguranças apareçam para impedir a morte do rapaz. Onde estamos?
Turmas são cheias de valentias. Em grupo, cada um toma a coragem que nunca teve e cresce em força e fúria. Sentem-se grandes e capazes de proezas jamais imaginadas. O sentimento de fracasso, de insignificância, desaparece momentaneamente, para dar lugar à brutalidade sem precedentes. A ira, guardada por toda a existência, vem a furo e transborda em cenas aterradoras.
O que dizem as mães desses monstros? Procuram entregar os filhos, perigosos para a sociedade, ou os protegem? Até que ponto alguém fora desse grupo tem culpa de alguma coisa? Omissão da família? Falta de limites, normas e regras? Sociedade em que tudo pode? Desrespeito a si, a tudo e a todos? Impunidade? Exemplo dos superiores nesse vale tudo?
Não estudei o comportamento humano, sou leiga e meu julgamento é apenas pessoal, mas vi, e sei o que sinto. Quando ainda pensava nesses casos, com náuseas e repulsa, vejo que um aluno de educação física não gostou da nota baixa. No dia seguinte a má notícia, levou para o Instituto Metodista Isabela Hendrix, em Belo Horizonte, uma faca, e desferindo golpes no professor, de 39 anos, cujo pai foi morto, também a facadas no começo do ano, o matou nos corredores da escola. Era horário de aulas. Houve choro e revolta.
A sociedade está podre, desumanizada e totalmente bruta. Avançamos no tempo, na tecnologia e regredimos em civilidade. Chamar essa malta de selvagens e bárbaros é desprestigiar os selvagens originais e os bárbaros de outrora. A falta de repertório é tão clamorosa, que não há frase de efeito para terminar o texto. O jeito é chamar os comerciais.
* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
Nosso repertório realmente encolhe diante de tanta barbaridade, Mara. Graças a Deus ainda sentimos náuseas diante da truculência. A agressividade existe em maior ou menor grau em todos nós, há que os que a controlam ou canalizam em algo bom e, infelizmente, os que agem dessa forma. É terrível, amiga, mas acho que se olharmos para trás chegaremos a conclusão de que já foi pior. Parabéns pelo texto sensível sobre um tema tão forte. Beijos
ResponderExcluirRevoltante, aviltante...pura barbárie.
ResponderExcluirMas o que me deixa mas indignada é que
os pais mascaram seus monstrinhos...
passam a mão em suas cabeças, como se pudessem
justificar seus atos.
Talvez quando as "cobras" os picarem, eles
possam rever seus posicionamentos...
Abraços
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQue tema ótimo para ser discutido, Mara! A violência tem estrapolado todos os limites, é assustador ver tantas atrocidades, a vida tão desvalorizada.
ResponderExcluirAcho necessário fazer uma pausa para pensarmos a respeito desse nosso modo de viver: acelerado, pouco reflexivo e um tanto superficial. Os valores estão invertidos, as feras estão soltas. Pior é controlarmos a própria ira. O momento pede cautela...
Parabéns! Abraço!
Agora há pouco um casal composto de filha e genro apareceu como suspeito da morte dos pais dela por causa de um milhão de reais de um seguro em favor da filha. Foram mortos a facadas e o rastro de sangue desaguou na casa do casal. Não tenho mais palavras para explicar tais catástrofes. Metade das pessoas, segundo o IBGE não dão queixa das volências sofridas. Gente, agradeço a leitura e os comentários.
ResponderExcluirErrata: violências
ResponderExcluirA banalização da vida é tamanha que às vezes a gente resume a indignação num balançar negativo de cabeça. Faltam palavras mesmo!
ResponderExcluirAbraços!
Também fiquei sem palavras. Só sobrou uma: parabéns.
ResponderExcluirMara: a violência ficou tão banal que a gente se vê jantando enquanto ela "desfila" pela Tv e a gente já nem reage. E parece não ter solução. Parabéns pelo texto.
ResponderExcluirBeijos