quarta-feira, 22 de dezembro de 2010




Ainda os sebastianistas

****Por Marco Albertim

As cerimônias de casamento no Reino da Pedra Bonita terminavam com preces, cânticos e rezas. Todos deviam se retirar, com exceção da noiva, cuja virgindade seria removida pelo líder da comunidade, autoproclamado Rei. Na Pedra dos Sacrifícios, João Ferreira dos Santos presidia o sacrifício de homens, crianças e cães. O sangue, segundo o próprio, serviria para regar as pedras e os campos próximos. O propósito maior, porém, seria o resgate da alma de D. Sebastião, bem como a ressurreição de moços e o embranquecimento dos negros, tornando-os ricos, imortais e poderosos. Vê-se, aqui, a conotação racista de braços dados com aspirações de ascensão social.
Outro líder, João Antônio dos Santos, usava uma coroa de cipós de japecanga, fazia predições e exigindo que seus pés fossem beijados. Dizia ele que os cães imolados retornariam como dragões protetores da comunidade; já os sebastianistas sacrificados, ressuscitariam jovens, belos e ricos. O crescimento da comunidade assusta fazendeiros e autoridades. Os informes dando conta dos sacrifícios chegam ao município de Serra Talhada. O padre Francisco Correia, missionário idoso, de muito prestígio, é enviado ao local; consegue, então, demover João Antônio de seus propósitos messiânicos. Mas João Ferreira, cunhado de João Antônio dos Santos, retoma o apostolado, tomando para si sete mulheres, vez que a poligamia era consentida.
Do alto do Trono ou Púlpito, diz que D. Sebastião lhe aparecera, mostrando-se descontente com a fraqueza e incredulidade dos fiéis. Intensifica a pregação de sacrifícios humanos e de cães. Conforme a historiadora Maria Isaura Pereira de Queiroz – O messianismo no Brasil e no mundo -, grupos se deslocavam diariamente, “arrebanhando homens, mulheres, meninos e cães para o acampamento.” Estimulados pela bebida à base de jurema, exaltados, esperavam “o grande acontecimento.” Só os que gozavam da extrema confiança do rei, tinham permissão para esmolar nas fazendas, trazendo o sustento dos acampados.
Pregando a necessidade de aplacar a cólera de D. Sebastião, João Ferreira dirige, em 14 de maio de 1838, o mais conhecido dos sacrifícios. “Calcula-se que foram sacrificados 12 homens, 30 crianças e onze mulheres, inclusive Isabel, uma das mulheres de João Ferreira.”* A matança durou três dias. Três dias depois, Pedro Antônio dos Santos, irmão do fundador da Pedra Bonita, sobe ao Púlpito e anuncia que D. Sebastião se mostrara a ele na noite anterior, reclamando a presença do rei, única vítima que faltava para ocorrer o desencantamento. João Ferreira protesta, inda que arrastado e sacrificado. Pedro Antônio dos Santos considerava-se o verdadeiro herdeiro do Reino, e tivera duas irmãs sacrificadas na matança.
A notícia chega ao conhecimento de Manoel Pereira da Silva, dono da fazenda Belém e comissário de polícia em Serra Talhada. Da varanda de sua casa, ouve o relato apavorado do vaqueiro José Gomes Vieira. Diz primeiro que fora iludido pelo seu tio, José Joaquim Vieira, ao conduzi-lo para a Serra Formosa “para ver muitas coisas bonitas e ajudá-lo na defesa dos tesouros e do Reino descoberto...”** Acrescenta que, depois de beber muito vizinha, dissera que “El-Rei Dom Sebastião estava muito desgostoso e triste com seu povo.” Arrematando: “Porque são incrédulos! Porque são fracos! Porque são falsos! (...) E finalmente porque o perseguem, não regando o Campo Encantado e não lavando as duas torres da catedral de seu Reino com o sangue necessário para quebrar de uma vez este cruel Encantamento!” **
Àquela altura, o comissário já recebera missiva de Manoel Ledo de Lima, rico fazendeiro da região, informando-o da ocorrência. Era o temor de que a matança atingisse seus domínios.
Conduzido por José Gomes Vieira, sebastianista arrependido, o comissário põe-se à frente de um grupo armado. No dia 18 do mesmo mês, deparam-se com Pedro Antônio dos Santos. O Rei está acompanhado por um séquito de mulheres, meninos e homens armados de facas, facões e cacetes. “Não os tememos! Acudam-nos as tropas do nosso Reino! Viva El-Rei Dom Sebastião”***, grita Pedro Antônio, agitando a sua coroa e atirando-se furioso ao grupo invasor. Outros sebastianistas são dizimados por homens chefiados por Simplício Pereira da Silva, fazendeiro e um dos nove irmãos do comissário. Os sebastianistas que não morrem são levados para a cadeia do município de Flores. As mulheres são soltas, as crianças entregues a famílias dispostas a criá-las.
João Antônio dos Santos, fundador da comunidade e primeiro Rei, é localizado em Minas Novas do Suruá, Minas Gerais. Vivia com a família. Na viagem para Serra Talhada, é morto. Suas orelhas são arrancadas como prova de sua morte. Para a tranquilidade dos proprietários.

*Rubim Santos Leal de Aquino, Francisco Roberval Mendes e André Dutra Boucinhas – Pernambuco em chamas – revoltas e revoluções em Pernambuco
**Antonio Attico de Sousa Leite – Memória sobre a Pedra Bonita ou Reino Encantado, na comarca de Vila Bela, província de Pernambuco
***Ariano Suassuna – Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai e volta

****Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

2 comentários:

  1. Os movimentos messiânicos trazem a tona
    a crença exacerbada, o fanatismo levado
    até as últimas consequências...
    Sem fanatismo mas, curiosíssima continuo na leitura.
    Abração Marco.
    Feliz Natal!

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  2. Adoro conhecer essas histórias, Marco. As da Pedra Bonita sempre exerceram enorme fascínio sobre mim.Muito grata, e um Feliz Natal!

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