Clube da festa ininterrupta
* Por Cecília Giannetti
Deus me livre da crônica saudosista que romantiza qualquer bebum associando a figura tombada no boteco à Era Dourada da Crônica – e do Rio de Janeiro –, quando havia bossa nova pra escutar. E a bossa, de fato, era nova.
Acho que, se conseguíssemos fazer um sobrevivente da época ficar sóbrio por cinco minutos, ele confessaria que as coisas nem eram tão bacanas como sugerem a história e as histórias. Ou que simplesmente inventou todas as suas memórias.
Tanta indignaçãozinha vem, por um lado, do revival desse tipo de crônica – nostálgica, dor-de-cotovelo, cheia de areia da praia dentro do calção – assinado por gente que não era nem zigoto quando aconteceu esse tal passado que procura emular em prosa cândida, feita de suspiros, analogias com brisa e barquinhos e – é claro – as indefectíveis conversas de bar.
["Postcard", Stela Marrs www.stellamarrs.com]
Por outro lado, vem de uma certa implicância contra quem sofre de Síndrome de Orquestra do Titanic: vêem que a coisa degringolou e continuam aporrinhando com a sua musiquinha.
Nosso caso ainda não é de navio irremediavelmente emborcado. Mas o clima de Bailão do Fim do Mundo já rola há décadas.
SALVE, SIMPATIA BOVINA
Pois me mudei para uma rua movimentada, repleta de bares e de gente que não dorme. E o paraíso artificial de boa parte da vizinhança é a temporada no inferno para quem tenta ler, escrever ou assistir a um filme dentro de casa, mesmo com a TV no volume máximo.
Se chegam cedo ao bar – em torno das dez da manhã – por volta das cinco da tarde estão indo; depois de colóquios desconexos, árias exaltadas e angústias de casais desafinados que já não entendem mais quem começou qual baixaria e se acusam das coisas mais boçais. Nesse ponto eu já sonho em fazer aquilo que me transformaria em tudo que, quando adolescentes, jamais imaginamos que um dia desejaremos ser: a pessoa que joga da janela um balde d´água nos bêbados da rua.
E eles mesmos não são adolescentes. Dizem até que ali no meio da baderna está sempre uma Professora Universitária, anunciada assim com as capitulares maiúsculas gritadas sob minha janela. Quero crer que não; as conversas berradas são como um talk show ambientado sobre um pau de galinheiro. Porém, olhamos em volta e vemos que há carros bons. Há algum dinheiro. Há uma cidade imensa cheia de melhores bares e lugares.
MOMENTO REAÇA (oh just bite me): Então por que, Senhor, essa gente não pega esses carros, esse dinheiro e essa disposição toda e não vai à praia roer queijo coalho no palito? Por que jamais variam a programação?
["Someone´s supermarket" www.picturesofwalls.com/gallery01/003.html ]
Só falo neles porque constituem uma esfinge para os antropólogos.
Por que não vão almoçar em Santa Teresa em vez de subsistir de uma dieta restrita a ovo rosa e lingüiça frita servida no prato de plástico? Um shoppingzinho? Um cineminha? Uma Livraria da Travessa, já que há entre eles – dizem, dizem... – uma Professora Universitária?
O povinho vive ferrado, numa cidade jogada às moscas, bebendo o que tem no bolso pra aplacar o calor e outras mazelas. Isso não me inspira crônica de sol-céu-sal. Poesia, numa hora dessas? (E ainda por cima com mote tão desgastado)? Nah. Por mim, a Orquestra do Titanic desce pelo ralo.
Menos anestesia, e mais cobrança.
Mais cobrança em cima de quem tem por dever dar à cidade condições de viver não só de nostalgia.
Ajusto meus horários de trabalho para acomodar melhor as oscilações na rotina de farras dos vizinhos. Se cantam, brigam e vão pra casa às primeiras horas da madrugada, isso significa que não estarão no bar pela manhã. Aí calculo que posso dormir mais ou menos durante quatro ou cinco horas e então começar a trabalhar. Mas só até meio-dia, quando retornarão, descansados e esquecidos de tudo que disseram e fizeram na noite anterior, síntese do povo alegre-batuque-cerveja-nonstop – se levarmos em conta a maioria dos cronistas que adoram ressuscitar esse estereótipo. Salve, simpatia bovina. Mais cobrança, menos cachaça. Menos nostalgia.
* Escritora e jornalista carioca, tem contos publicados em revistas e em antologias das editoras Record, Ediouro e Casa da Palavra. Seu primeiro romance será lançado em 2006 pela Agir. Edita a revista eletrônica Bala [www.revistabala.com.br] e faz stand-up comedy todos os dias no www.escrevescreve.blogger.com.br
* Por Cecília Giannetti
Deus me livre da crônica saudosista que romantiza qualquer bebum associando a figura tombada no boteco à Era Dourada da Crônica – e do Rio de Janeiro –, quando havia bossa nova pra escutar. E a bossa, de fato, era nova.
Acho que, se conseguíssemos fazer um sobrevivente da época ficar sóbrio por cinco minutos, ele confessaria que as coisas nem eram tão bacanas como sugerem a história e as histórias. Ou que simplesmente inventou todas as suas memórias.
Tanta indignaçãozinha vem, por um lado, do revival desse tipo de crônica – nostálgica, dor-de-cotovelo, cheia de areia da praia dentro do calção – assinado por gente que não era nem zigoto quando aconteceu esse tal passado que procura emular em prosa cândida, feita de suspiros, analogias com brisa e barquinhos e – é claro – as indefectíveis conversas de bar.
["Postcard", Stela Marrs www.stellamarrs.com]
Por outro lado, vem de uma certa implicância contra quem sofre de Síndrome de Orquestra do Titanic: vêem que a coisa degringolou e continuam aporrinhando com a sua musiquinha.
Nosso caso ainda não é de navio irremediavelmente emborcado. Mas o clima de Bailão do Fim do Mundo já rola há décadas.
SALVE, SIMPATIA BOVINA
Pois me mudei para uma rua movimentada, repleta de bares e de gente que não dorme. E o paraíso artificial de boa parte da vizinhança é a temporada no inferno para quem tenta ler, escrever ou assistir a um filme dentro de casa, mesmo com a TV no volume máximo.
Se chegam cedo ao bar – em torno das dez da manhã – por volta das cinco da tarde estão indo; depois de colóquios desconexos, árias exaltadas e angústias de casais desafinados que já não entendem mais quem começou qual baixaria e se acusam das coisas mais boçais. Nesse ponto eu já sonho em fazer aquilo que me transformaria em tudo que, quando adolescentes, jamais imaginamos que um dia desejaremos ser: a pessoa que joga da janela um balde d´água nos bêbados da rua.
E eles mesmos não são adolescentes. Dizem até que ali no meio da baderna está sempre uma Professora Universitária, anunciada assim com as capitulares maiúsculas gritadas sob minha janela. Quero crer que não; as conversas berradas são como um talk show ambientado sobre um pau de galinheiro. Porém, olhamos em volta e vemos que há carros bons. Há algum dinheiro. Há uma cidade imensa cheia de melhores bares e lugares.
MOMENTO REAÇA (oh just bite me): Então por que, Senhor, essa gente não pega esses carros, esse dinheiro e essa disposição toda e não vai à praia roer queijo coalho no palito? Por que jamais variam a programação?
["Someone´s supermarket" www.picturesofwalls.com/gallery01/003.html ]
Só falo neles porque constituem uma esfinge para os antropólogos.
Por que não vão almoçar em Santa Teresa em vez de subsistir de uma dieta restrita a ovo rosa e lingüiça frita servida no prato de plástico? Um shoppingzinho? Um cineminha? Uma Livraria da Travessa, já que há entre eles – dizem, dizem... – uma Professora Universitária?
O povinho vive ferrado, numa cidade jogada às moscas, bebendo o que tem no bolso pra aplacar o calor e outras mazelas. Isso não me inspira crônica de sol-céu-sal. Poesia, numa hora dessas? (E ainda por cima com mote tão desgastado)? Nah. Por mim, a Orquestra do Titanic desce pelo ralo.
Menos anestesia, e mais cobrança.
Mais cobrança em cima de quem tem por dever dar à cidade condições de viver não só de nostalgia.
Ajusto meus horários de trabalho para acomodar melhor as oscilações na rotina de farras dos vizinhos. Se cantam, brigam e vão pra casa às primeiras horas da madrugada, isso significa que não estarão no bar pela manhã. Aí calculo que posso dormir mais ou menos durante quatro ou cinco horas e então começar a trabalhar. Mas só até meio-dia, quando retornarão, descansados e esquecidos de tudo que disseram e fizeram na noite anterior, síntese do povo alegre-batuque-cerveja-nonstop – se levarmos em conta a maioria dos cronistas que adoram ressuscitar esse estereótipo. Salve, simpatia bovina. Mais cobrança, menos cachaça. Menos nostalgia.
* Escritora e jornalista carioca, tem contos publicados em revistas e em antologias das editoras Record, Ediouro e Casa da Palavra. Seu primeiro romance será lançado em 2006 pela Agir. Edita a revista eletrônica Bala [www.revistabala.com.br] e faz stand-up comedy todos os dias no www.escrevescreve.blogger.com.br
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