A luneta
* Por Marcelo Sguassabia
Na embalagem havia um enorme splash, onde se lia: “Montagem fácil e rápida”. Bom, dois dias e duas noites não é tanto tempo assim. O suficiente para encaixar nos lugares certos as lentes, roldanas, parafusos, porcas e cilindros de diferentes calibres e tamanhos.
Custou mas valeu, telescópio e tripé montados. Agora, ao desfrute. Ao merecido desfrute – porque que de ferro, só a luneta. Marca Superrvision, zoom de 1600 vezes, nitidez absoluta.
Primeira parada. Uma enfermeira dando comida na boca de uma velhinha em uma cadeira de rodas. Ai, que estréia mais sem glamour. E a enfermeira era mais velha que a velhinha.
No apê ao lado, uma bruta discussão. O engraçado era ver apenas as bocas se mexendo, os braços gesticulando, os socos na mesa, os rompantes coléricos e não ouvir absolutamente nada. Pastelão de cinema mudo, só faltou torta na cara.
Vamos lá, meu povo, cadê a sem-vergonhice? Duas horas e quinze e nenhuma mulher sem sutiã passando do banheiro para o quarto. Nem uminha. Tá louco, era o caso de devolver pro fabricante. Telescópio que se preze não faz um papel assim.
Três andares acima, um cara solitário no sofá, o nó da gravata meio afrouxado, à frente de uma TV de plasma. A lente é poderosa, dá pra ver a programação que o sujeito está assistindo. A sala escura, ele zapeia. A luz do aparelho refletida em seu rosto se altera a cada mudança de canal. Enfia um dedo no nariz. Que nojo, não volto mais na sua casa, seu sem-educação. Isso são modos?
No quinto andar havia uma loira de tirar o fôlego, há tempos já a observava a olho nu. A vadia não saía do quarto, dando mole pro primeiro telescópio que se habilitasse. Mais que depressa, zoom máximo na dita cuja. Era loira mesmo, e seria perfeita se não fosse um pôster. Duplo azar: além da mulher ser de papel, o quarto com certeza era de macho. Castigo pouco é bobagem.
Na noite seguinte, a caçada continua. Ao mirar no décimo-sexto andar do Edifício Itapuã, sua luneta dá de cara com uma outra luneta apontando exatamente para ele. Sim, tinha certeza que era pra ele. O voyeur do voyeur, a perversão das perversões.
Assim que os olhares telescópicos se cruzaram, tentaram até fingir que não se viram. Uma luneta virou pra esquerda, outra pra direita, como se assobiassem, disfarçando.
Depois de umas dez janelas sem nada de interessante à vista, ele finalmente achou algo com que se entreter. Após um prolongado “Nooooooooooosssa!”, ali parou e ficou. Puxou até uma cadeira pra se acomodar melhor.
- Vai, vai, vai...
Uma voz feminina e muito familiar responde ao seu ouvido:
- Vai o que, Claudinho?
Era a esposa. Ô mulher pé de pluma. Quando deu pela presença, já estava no cangote. Mão na cintura, cobrando esclarecimento.
- Vai? Ah, sim. Vai logo, planeta, aparece logo, planeta...
- Planeta? Até onde eu saiba não tem planeta nenhum desse lado do céu. E mesmo se houvesse, esse prédio enorme aí em frente não ia deixar você ver nada.
- Nossa, é mesmo. Nem tinha reparado.
- Mãos ao alto, seu safado. Não mexe um milímetro nessa porcaria. Deixa eu ver o que você está vendo. Sai daí, sai daí!
Se aquilo era um planeta, só poderia ser Vênus. Um raro espécime do belo sexo, dessa vez de carne e osso, em trajes e poses que, digamos, acusavam claramente não tratar-se de uma freira.
- Sabe como é, testando o foco, querida...
E foi assim que, naquela noite, ele acabou vendo estrelas.
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
* Por Marcelo Sguassabia
Na embalagem havia um enorme splash, onde se lia: “Montagem fácil e rápida”. Bom, dois dias e duas noites não é tanto tempo assim. O suficiente para encaixar nos lugares certos as lentes, roldanas, parafusos, porcas e cilindros de diferentes calibres e tamanhos.
Custou mas valeu, telescópio e tripé montados. Agora, ao desfrute. Ao merecido desfrute – porque que de ferro, só a luneta. Marca Superrvision, zoom de 1600 vezes, nitidez absoluta.
Primeira parada. Uma enfermeira dando comida na boca de uma velhinha em uma cadeira de rodas. Ai, que estréia mais sem glamour. E a enfermeira era mais velha que a velhinha.
No apê ao lado, uma bruta discussão. O engraçado era ver apenas as bocas se mexendo, os braços gesticulando, os socos na mesa, os rompantes coléricos e não ouvir absolutamente nada. Pastelão de cinema mudo, só faltou torta na cara.
Vamos lá, meu povo, cadê a sem-vergonhice? Duas horas e quinze e nenhuma mulher sem sutiã passando do banheiro para o quarto. Nem uminha. Tá louco, era o caso de devolver pro fabricante. Telescópio que se preze não faz um papel assim.
Três andares acima, um cara solitário no sofá, o nó da gravata meio afrouxado, à frente de uma TV de plasma. A lente é poderosa, dá pra ver a programação que o sujeito está assistindo. A sala escura, ele zapeia. A luz do aparelho refletida em seu rosto se altera a cada mudança de canal. Enfia um dedo no nariz. Que nojo, não volto mais na sua casa, seu sem-educação. Isso são modos?
No quinto andar havia uma loira de tirar o fôlego, há tempos já a observava a olho nu. A vadia não saía do quarto, dando mole pro primeiro telescópio que se habilitasse. Mais que depressa, zoom máximo na dita cuja. Era loira mesmo, e seria perfeita se não fosse um pôster. Duplo azar: além da mulher ser de papel, o quarto com certeza era de macho. Castigo pouco é bobagem.
Na noite seguinte, a caçada continua. Ao mirar no décimo-sexto andar do Edifício Itapuã, sua luneta dá de cara com uma outra luneta apontando exatamente para ele. Sim, tinha certeza que era pra ele. O voyeur do voyeur, a perversão das perversões.
Assim que os olhares telescópicos se cruzaram, tentaram até fingir que não se viram. Uma luneta virou pra esquerda, outra pra direita, como se assobiassem, disfarçando.
Depois de umas dez janelas sem nada de interessante à vista, ele finalmente achou algo com que se entreter. Após um prolongado “Nooooooooooosssa!”, ali parou e ficou. Puxou até uma cadeira pra se acomodar melhor.
- Vai, vai, vai...
Uma voz feminina e muito familiar responde ao seu ouvido:
- Vai o que, Claudinho?
Era a esposa. Ô mulher pé de pluma. Quando deu pela presença, já estava no cangote. Mão na cintura, cobrando esclarecimento.
- Vai? Ah, sim. Vai logo, planeta, aparece logo, planeta...
- Planeta? Até onde eu saiba não tem planeta nenhum desse lado do céu. E mesmo se houvesse, esse prédio enorme aí em frente não ia deixar você ver nada.
- Nossa, é mesmo. Nem tinha reparado.
- Mãos ao alto, seu safado. Não mexe um milímetro nessa porcaria. Deixa eu ver o que você está vendo. Sai daí, sai daí!
Se aquilo era um planeta, só poderia ser Vênus. Um raro espécime do belo sexo, dessa vez de carne e osso, em trajes e poses que, digamos, acusavam claramente não tratar-se de uma freira.
- Sabe como é, testando o foco, querida...
E foi assim que, naquela noite, ele acabou vendo estrelas.
* Redator publicitário há quase 30 anos, cronista de várias revistas eletrônicas, entre as quais a “Paradoxo”
O feriado prolongado faz a internet ficar vazia, e os internautas perderem uma pérola dessas: risadas do começo ao fim. Lembrei-me da minha luneta, dos meus verdes anos.
ResponderExcluirDestaco: " Vamos lá, meu povo, cadê a sem-vergonhice?" Palmas para "meu povo", e quem não vê planetas, vê estrelas.