quinta-feira, 30 de dezembro de 2010




Somente agora

* Por Gustavo do Carmo

Toca o telefone.

— Alô?!

— Selton?

— Sim. Quem fala?

— Aqui é o Leôncio.

— Diga. Selton usa um tom seco.

— Estou te ligando para desejar um Feliz Ano Novo e pedir desculpas pelo que eu fiz com você no início do ano.

Selton fica calado. Leôncio continua.

— Somente agora, perto do ano novo, caiu a ficha e eu decidi te pedir perdão por ter te proibido de divulgar o meu filme no seu blog. E também por ter colocado vírus na sua página de internet e ainda ter feito a sua caveira em um convite que iam te fazer para ser colunista de um jornal. Sabe como é, amigo! Eu tenho muita influência no meio.

— Eu já estava desconfiado destas duas coisas.

— Agora eu entendi o recado daquela sua crônica sutil contra mim. Mas você também pisou na bola, né, companheiro? Eu senti logo de cara que você andou me chamando de velho para os outros naquela mensagem que você mandou por engano no bate-papo. E nem me pediu desculpas.

— Eu não te pedi desculpas para não ficar bancando o inocente arrependido. Um professor meu uma vez me disse que ficar pedindo desculpas toda a hora é hipocrisia, pois a pessoa nunca vai se redimir dos seus pecados. Mas saiba o quanto fiquei envergonhado do que eu fiz. E entendi porque você mudou o seu tratamento comigo e parou de me telefonar todos os dias.

— Pois é. Agora quem te pede desculpas sou eu. Em que eu posso ajudar para corrigir o meu erro? Vou te indicar para escrever naquela revista famosa, onde trabalha um amigo meu. Ela paga muito bem. Vai gostar dos seus contos. E vou te chamar para você ser assistente de direção do meu próximo filme. E desta vez é pra valer. Não vou te barrar como da outra ocasião.

— Não precisa fazer nada, não. Deixa pra lá, eu te perdôo.

— Deixa de ser orgulhoso, rapaz! Eu sei muito bem que você está precisando de emprego. Agora deixa eu ir lá que os meus netos estão chegando para passar o ano novo comigo. Um Feliz Ano Novo pra você.

Leôncio desliga o telefone. Logo o seu celular toca.

— Selton, é a Keylane.

— Até que enfim você me ligou, hein? Ironiza Selton, que continua: — Você sempre falou comigo pelo bate-papo. Mas eu não te bloqueei não, viu?

— Eu sei. Eu ainda te vejo online. Mas preferi te ligar para dizer que você estava certo ao me chamar de insensível. Somente agora eu me toquei que você queria apenas desabafar os seus problemas e brincar comigo. Eu te julguei e ainda me achei no direito de me sentir ofendida com as suas brincadeiras. E ainda te chamei de egoísta. Isto você ainda é, mas entenda essa afirmação como algo positivo. A única coisa que eu ainda fico chateada é pela sua desconfiança ao conferir se eu fiz o depósito para comprar o seu livro. Mas eu também entendo a sua ansiedade.

— Pois é. Tudo que eu falava pra você eu estava errado.

— Ah, mas amigo não é obrigado a concordar sempre com o outro. Precisa censurar de vez em quando.

— Tudo bem, você está certa. Mas você não concordava com NADA do que eu falava. Pra você eu estava SEMPRE errado. Eu já estava com medo e vergonha de desabafar os meus problemas com você. Eu estava sempre errado, né? Por isso que eu me afastei.

— Está bem, Você está certo. Pode desabafar o que quiser comigo que eu concordo.

— Pode deixar que agora eu já tenho a minha psicanalista.

— Pois é. Você também falou dos meus problemas para a sua analista. Fiquei magoada com isso também. Tinha perdido a confiança em você. Mas agora eu te entendo. Me desculpa? Vamos voltar a ser amigos? Vamos conversar pelo bate-papo como sempre fazíamos?

— Pode ser.

— Então tá. Um Feliz Ano Novo pra você. Agora vou desligar porque a minha mãe está me chamando para ajudá-la. Tudo de bom pra você. Muita paz, muita alegria e quero voltar a ser sua amiga.

— O mesmo pra você, tchau.

Mal acabou de desligar, o celular de Selton toca de novo.

— Oi, Selton. Aqui é a Taviane. Estou te ligando para te desejar um feliz ano novo e dizer que eu esqueci todas aquelas coisas horríveis que você me disse há alguns anos. Somente agora eu entendo o momento pelo qual você estava passando naquela época. Agora estou ligando em missão de paz.

—Você não sabe o quanto fiquei arrependido de ter feito o que fiz. Você se tornou um fantasma na minha vida nesses anos todos.

— Eu sei. Quero voltar a ser sua amiga. Você aceita?

— Não.

— Tudo bem. Eu compreendo a sua resistência. Agora me deixa desligar que eu estou saindo para encontrar o meu namorado para a gente passar o réveillon juntos.

Selton já tinha desligado antes. Ele recebe mais um telefonema. Era o seu maior amigo e companheiro da faculdade.

— Selton, sou eu Renan. Estou te ligando para te avisar que somente agora eu percebi o grande sentimento de amizade que você tinha por mim. Amizade não. Fraternidade. Eu estou arrependido de evitar conversar com você e de te tratar com frieza quando você me procurava pelo bate-papo. Agora deixa eu ir que meus filhos estão me chamando para brincar com eles. Feliz Ano Novo!

Mais duas mulheres ligaram para Selton. Ambas desejando feliz ano novo e pedindo desculpas. Uma jornalista do interior pelo bolo que dera ao ter agendado uma entrevista e não comparecido. A outra, uma ex-colega de faculdade pela grosseria com a qual respondeu a um e-mail. Ela estava estressada com o trabalho e terminando com o namorado depois de dez anos de relacionamento. Esclareceu que o rapaz havia lido a mensagem e ficado com ciúme doentio. Nervosa respondeu daquela forma. Mas deixou claro não ter gostado da crítica com uma colega da turma que não tinha nada a ver.

Quando esta última encerrou a ligação, Selton foi abrir a caixa de e-mails. Quase todos os colegas da pós-graduação desejaram boas festas. O antigo coordenador mandou um convite pessoal para a exposição de arte da sua esposa. Uma outra mensagem se destacava. Era de uma outra jornalista, esta da capital:

Caro Selton,

Por acaso comprei um livro de contos que você publicou. Acabei achando aquele seu conto que o seu amigo virtual me recomendou. Somente agora eu revi os meus conceitos e mudei de opinião. Percebi o quanto as suas histórias são primorosas, apesar de alguns errinhos de gramática. Não são infantis como eu havia achado no início. Reli aquele outro e entendi o enredo da história e a sua intenção, que foi colocar sarcasmo em uma história realmente infantil.

Feliz Ano Novo!!
Mareliz Dantas

Um editor com o qual Selton havia feito contato pedindo uma oportunidade também mandou e-mail desejando boas festas e pedindo desculpas por ter achado todos os seus textos inverossímeis.

Propôs editar um novo livro com um segundo volume de contos que Selton havia enviado. Desde que fizesse uma boa revisão que o rapaz iria ajudar. Por coincidência uma ex-professora de oficina literária se ofereceu para revisar os textos e diminuir as inverossimilhanças e incoerências que achou.

Animado com tantas mensagens de ano novo, pedidos de desculpa e propostas que recebeu por telefone ou por e-mail, Selton criou coragem. Ligou para a irmã mais nova para pedir desculpas por um grande erro que cometeu com a família.

— Liliane, sou eu, Selton. Feliz Ano Novo! Somente agora eu... A moça já tinha desligado quando ouviu que era o irmão. As outras três irmãs mais velhas fizeram o mesmo.


* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores

Um comentário:

  1. Mesmo com os pedidos de desculpas, Selton me pareceu um criador de casos e de problemas. Nem mesmo o réveillon foi capaz de consertar seus conflitos.

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