sexta-feira, 24 de dezembro de 2010




A cidade

* Por Urariano Mota


O velho Recife, que atrás do arruado moderno ficou, deslocou-se do bairro do Recife. Ali, que há muito o povo batizou com o nome de A Rio Branco, agora é bairro revitalizado: pintaram os velhos casarões com cores mais frescas, mudaram em fantasmas as antigas prostitutas, fundaram bares para a gente mais cara, cidadã, que conhece e reclama o código de defesa do consumidor. Ali, Ascenso não mais acharia o velho Recife . Não mais casas fechadas e mal-assombradas, com as caras tisnadas que o incêndio queimou, como no poema Noturno:

“Sozinho
nas ruas desertas
do velho Recife
que atrás do arruado
moderno ficou...
criança de novo
eu sinto que sou:

— Que diabo tu vieste fazer aqui, Ascenso?

O rio soturno,
tremendo de frio,
com os dentes batendo
nas pedras do cais,
tomado de susto
sem poder falar..
o rio tem coisas
para me dontar:

— Corrre senão o Pai-do-Poço te pega, condenado!

Das casas fechadas
e mal-assombradas
com as caras tisnadas
que o incêndio queimou
pelas janelas esburacadas
eu sinto, tremendo,
que um olho de fogo
medonho me olho:

– Olha que o Papa-Figo te agarra, desgraçado!

Dos brutos guindastes
de vultos enormes
ainda maiores
nessa escuridão...
os braços de ferro,
pesados e longos,
parece quererem
suster-me no chão!

Ai! Eu tenho medo dos guindastes,
Por causa daquele bicão!

Sozinho, de noite,
nas ruas desertas
do velho Recife
que atrás do arruado
moderno ficou...
criança de novo
eu sinto que sou:

— Larga de ser vagabundo, Ascenso!”


Se permitem a quebra do encanto desse poema, quero dizer na prosa mais prosaica:

Ainda que sem o sentido original do seu nome, de bairro mais idoso que ao redor do porto fez nascer a cidade, o velho Recife arrastou-se, deixou a Bom Jesus e vizinhança, subiu e desceu a ponte Maurício de Nassau, espraiou-se em busca do abrigo de São José e Santo Antônio. É como se o natural da cidade fugisse das invenções de um novo Pelourinho, de Salvador. É como se, de bairro, o velho Recife passasse a ser a cidade em pontos a salvo do marketing. Do porto para outras artérias, como o traçado íntimo do M que se estende em linhas para os dedos da mão.

O velho no Recife é o novo que ele foi, que se guardou, na sua idade. E para que diabo queremos uma cidade nova? As cidades são tão boas quanto a sua idade, e serão bem melhores quanto mais velhas forem, se o seu marco for um ponto de continuidade entre o que veio dalém-mar e o que se construiu na mistura das gentes até hoje. Na Rua do Rangel 99, primeiro andar, tem uma tabuleta, um quadro, que resume o que estas mal traçadas estão procurando dizer. É como se fosse um poema de Bajado, que poderia ter sido um artista do Recife se assinasse os versos que se penduram no prédio azul e branco da Rangel. Aqui, a concordância é um detalhe plástico:

Aluga-se quartos para casal
Entrada e saída para casal
Aluga-se quartos para rapaz
Hospedaria Santo Antonio
Amor só para nós dois ao vivo
Deus proteja esta casa

Precisa dizer mais? Ali se anuncia que tem guarida um amor só para dois, ao vivo. E por ser assim, que Deus proteja esta casa. É um pedido, uma confissão, e um cínico acordo entre Deus e os prazeres da carne.

O espaço vai terminar e o essencial não foi dito. Mas como seria bom se a gente pudesse escrever o que tem vontade. Ficaria dito por exemplo e afinal que amar uma cidade é dela guardar nossas mais longínquas lembranças, desde o tempo em que ela era o nosso mais íntimo ninho. Desde o tempo em que eras, Recife, a própria noiva da revolução.

• Escritor e jornalista

2 comentários:

  1. Que amor bonito Urariano! A sua cidade ficou humanizada ao extremo quando a chamou de "nosso mais íntimo ninho".

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