domingo, 26 de dezembro de 2010


Sátira ganha espaço

A União Soviética acabou, oficialmente, no Natal de 1991, com suas 15 Repúblicas semi-autônomas conquistando a autonomia total, ou seja, a independência e seguindo vida própria, como era antes de 1917. Todavia, apenas agora, chegam às mãos dos leitores brasileiros, posto que ainda timidamente, alguns livros de autores soviéticos que, em decorrência da estúpida e estupidificante guerra fria, contavam com o anátema dos lépidos detratores do comunismo. Daquele vasto império só nos chegavam obras de dissidentes do regime, endeusados (por razões óbvias), mesmo que literariamente seus escritos fossem de qualidade inferior. Certas pessoas não entenderam (e muitas ainda não entendem), que arte, literatura no meio, e política, notadamente a ideologia, são como óleo e água: não se misturam. Ou, pelo menos, não deveriam se misturar.
Um dos principais lançamentos de 2010, no mercado editorial brasileiro, é um romance do escritor soviético (na verdade, ucraniano, pois nasceu em Kiev, em fins do século XIX), Mikhail Bulgakov, intitulado “O mestre e a Margarida”. Trata-se de bem-sucedida “ousadia” da Editora Objetiva, um “banquete” de boa literatura aos que apreciam textos inteligentes, estimulantes, polêmicos e bem-escritos.
Esse livro, por si só, tem uma história interessante. Teve quatro versões e nunca foi terminado pelo autor. Começou a ser escrito em 1928, mas Bulgakov queimou esse primeiro manuscrito em 1930, em represália ao que as autoridades comunistas haviam feito com outra obra sua, de conteúdo cabalístico, vetada pela implacável censura do regime stalinista. A União Soviética vivia, então, um de seus momentos mais dramáticos, que foram os tais “julgamentos de Moscou”, verdadeira caça às bruxas empreendida por Josep Stalin, para se livrar de quem achava que poderia ameaçar sua permanência no poder. Bem, mas não é o que nos interessa nestas reflexões.
Mesmo havendo destruído essa primeira versão do romance, Bulgakov resolveu retomar os trabalhos em 1931 e insistir na mesma história, valendo-se da sátira para driblar a feroz censura. Terminou essa segunda versão apenas em 1936. Pode-se dizer que, no que diz respeito ao enredo, é a que foi lançada agora no Brasil. Mas o autor não estava satisfeito com a redação, na qual detectou defeitos que só ele viu. Iniciou, pois, uma terceira versão, praticamente reescrevendo o romance todo, mas sem mexer no conteúdo, posto que alterando a forma. Concluiu esse manuscrito em 1937. Ainda não estava satisfeito. Caramba, nada satisfazia esse sujeito!
Continuou mexendo, e mexendo e mexendo no texto. Só parou de trabalhar nessa quarta versão quatro semanas antes da morte, ocorrida em 10 de março de 1940, em Moscou. Consequência: o livro ficou inconcluso. Não fosse sua terceira esposa, Yelena Chilovskaia (inspiradora, inclusive, da personagem Margarida, figura central do enredo), o romance jamais seria publicado nem na URSS, nem na Rússia e nem em lugar algum. Foi ela que fez os derradeiros arremates e aparou as derradeiras arestas. Mas Bulgakov era (posto que discretamente, por questão de estratégia) adversário do regime, ao qual jamais apoiou. Claro que as autoridades soviéticas não permitiriam a publicação da obra, não, pelo menos, na íntegra.
Uma versão censurada, com cortes de 12% do conteúdo, foi publicada em 1967. O romance inteiro só teve publicação por meio de cópias mimeografadas, distribuídas clandestinamente pela oposição, nos chamados “samizdat”. Em livro, a história escrita por Bulgakov e concluída por sua mulher só foi publicado em 1973, e fora da União Soviéti9ca, ou seja, em Frankfurt, na então Alemanha Ocidental.
Fica claro que o “Fausto”, do genial alemão Johann Wolfgang Göethe, foi a fonte de inspiração do escritor soviético e ele nunca escondeu isso. Lógico que não vou reproduzir o enredo, nem mesmo resumidamente, para não tirar seu prazer de leitura. Observarei, somente, que a história se passa na Moscou de 1929, que recebe a visita de Mefistófeles, ou Diabo como queiram. Para camuflar sua identidade, ele se apresenta como Woland. E não visita a capital do império soviético sozinho. Leva, em seu séquito, alguns personagens sinistros, como Koroviev, ou Fagote; como o enorme gato negro Bieguemot, além de Azazello, Abadonna e a bruxa Hella.
Mais não direi nem sob tortura. Fanáticos religiosos russos queimaram, em manifestação relativamente recente, em 2006, vários exemplares do romance de Bulgakov, sob a alegação de que eram alegoria do satanismo. Tremenda bobagem! Gente burra é que nem formiga: existe em profusão e em todos os lugares.
Houve outras publicações do livro em português, antes desta, da Objetiva, todas da Editora Ars Poética, com tradução direta do idioma russo feita por Konstantin Asryantz. Hoje, apesar de ainda ter muitos opositores e detratores, principalmente fanáticos religiosos, Bulgakov tem, principalmente em Moscou, uma legião de fiéis admiradores e até seguidores. Seu apartamento na cidade, por exemplo, onde se passa boa parte da trama do romance, foi transformado em local de culto. No final dos anos 90 – coincidindo co0m o colapso e extinção da URSS – foi transformado em um museu. Vocês não acham que a forma como esse romance nasceu daria, por si só, um interessantíssimo livro? Eu acho!!!

Boa leitura.

O Editor.

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