Perfumes traem sentimentos
* Por Eduardo Murta
Fazia cinco missas que os olhares se cruzavam em dissimulada casualidade. Ela ao segundo banco, o véu de viúva pendendo à face. Ele ao quinto, em diagonal que pudesse divisá-la em todo seu encanto. Já haviam se notado, se estudado. E foi dele a iniciativa. Apresentou-lhe os mais sinceros sentimentos, fazendo gesto de concha, a que pousasse entre suas mãos as dela. Eram leves e num morno instigante.
Sugeriu um chá, e no armarinho de Dona Constança voltariam a se encontrar. Mesinha com vasos de flores, havia pensado estrategicamente o lugar. Queria dobrar-lhe o coração assim de forma luminosa. Atalhou imprevistos, porque planejava era impressionar. Cedo começara a mastigar os dentinhos de cravo, a que romantizassem-lhe o hálito, afastando o mais brando odor de álcool barato.
Não perdoaria candidata como aquela escapando-lhe por entre os dedos. Se em viuvez, certamente com pensão. Se perfumada e alinhada em cortes tão elegantes, tinha posses. Contaria a ela a mesma versão com que se apresentava a todas: que o exercício do Direito já o pusera enfarado, tamanhas injustiças; que as desigualdades eram um escárnio à sociedade e que, no fundo, paisagens como ela é que davam sentido à existência.
Ela retribuiria, sacando o leque da bolsa, suspendendo ligeiramente o véu, deixando revelarem-se olhos que remetiam a deusas gregas. Conferiu anel de doutor, relógio com símbolo de importado, chapéu panamá. Seria homem de conta bancária saudável, sim, seria. Abanou brisa rápida junto ao rosto, queixou-se das noites frias daquele junho. Amaldiçoou a solidão. Fez com que as órbitas marejassem, em aparente ar de abandono. Era tática que não falhava nunca.
Num instante, os ombros dela arranchariam aos dele, amparados. Desnecessário dizer palavra. A distância entre as bocas foi se estreitando, numa aproximação vagarosa que lembrava painas se desprendendo ao vento. Beijariam longo, que chegou a parecer sincero. Ela deslizando despistado o braço junto ao terno folgado, até subtrair-lhe um dos cartões de crédito. Ele discreto, remexendo junto aos papéis dela, extraindo duas folhas de cheque.
Suspiraram. Confirmariam com um sorriso malicioso que fora bom. Os dois sabendo que interromper as carícias por ali era arma infalível no teatro das seduções. "Já pensou em se casar de novo?", provocou ele. "A vida ainda não foi tão generosa comigo", encenou ela, num franzindo que exaltava-lhe as rugas breves. Ele pediu licença ao véu, mirou-a firme, e contracenou: "É que seu esplendor faz pose de ostra, disfarçando a pérola que carrega".
Aquilo foi senha para que tornassem a se ver. O mesmo lugar, os mesmos chás, as mesmas conversas. Mas uma certa atmosfera de desconfiança mútua tomando forma. Ele resolveu segui-la, aninhando-se à silhueta dos postes. Gargalhou quando viu. Ônibus de periferia. Casinha simples. Achou ângulo numa fresta da vidraça, e consumou-se o desastre: flagrou enchimento para os peitos e, eca!!!, peruca.
Voltariam a se encontrar. Mesmo chá. Ele constrangido – na verdade, se afeiçoara –, ela duvidando de suas histórias. Decidiu vigiá-lo na partida. Meteu-se na linha do metrô que levava para o cafundó e o rastreou rumando ao conjunto de cortiços. Vislumbrou brecha junto às tábuas. Cenário nojento: a cinta agora revelando o volume desclassificante da barriga e, credo!!!, o par de dentaduras mergulhando na jarra d`água.
Se veriam pela última vez na semana seguinte. Ela embaraçada, dizendo que se ausentaria por uns tempos, para retomar a direção das fazendas no Norte. Ele, coincidência, migrando a negócios para a China. Cedeu-lhe o chapéu panamá como lembrança e embarcou com o véu negro entre as mãos. E aquele aroma que, mesmo nascido em lojinhas de R$ 1,99, lhe impregnaria de uma saudade européia. Ainda que não conhecesse um grão de terra sequer da Europa. Mas que era charmoso relembrar assim aquele encontro, lá isso era.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
* Por Eduardo Murta
Fazia cinco missas que os olhares se cruzavam em dissimulada casualidade. Ela ao segundo banco, o véu de viúva pendendo à face. Ele ao quinto, em diagonal que pudesse divisá-la em todo seu encanto. Já haviam se notado, se estudado. E foi dele a iniciativa. Apresentou-lhe os mais sinceros sentimentos, fazendo gesto de concha, a que pousasse entre suas mãos as dela. Eram leves e num morno instigante.
Sugeriu um chá, e no armarinho de Dona Constança voltariam a se encontrar. Mesinha com vasos de flores, havia pensado estrategicamente o lugar. Queria dobrar-lhe o coração assim de forma luminosa. Atalhou imprevistos, porque planejava era impressionar. Cedo começara a mastigar os dentinhos de cravo, a que romantizassem-lhe o hálito, afastando o mais brando odor de álcool barato.
Não perdoaria candidata como aquela escapando-lhe por entre os dedos. Se em viuvez, certamente com pensão. Se perfumada e alinhada em cortes tão elegantes, tinha posses. Contaria a ela a mesma versão com que se apresentava a todas: que o exercício do Direito já o pusera enfarado, tamanhas injustiças; que as desigualdades eram um escárnio à sociedade e que, no fundo, paisagens como ela é que davam sentido à existência.
Ela retribuiria, sacando o leque da bolsa, suspendendo ligeiramente o véu, deixando revelarem-se olhos que remetiam a deusas gregas. Conferiu anel de doutor, relógio com símbolo de importado, chapéu panamá. Seria homem de conta bancária saudável, sim, seria. Abanou brisa rápida junto ao rosto, queixou-se das noites frias daquele junho. Amaldiçoou a solidão. Fez com que as órbitas marejassem, em aparente ar de abandono. Era tática que não falhava nunca.
Num instante, os ombros dela arranchariam aos dele, amparados. Desnecessário dizer palavra. A distância entre as bocas foi se estreitando, numa aproximação vagarosa que lembrava painas se desprendendo ao vento. Beijariam longo, que chegou a parecer sincero. Ela deslizando despistado o braço junto ao terno folgado, até subtrair-lhe um dos cartões de crédito. Ele discreto, remexendo junto aos papéis dela, extraindo duas folhas de cheque.
Suspiraram. Confirmariam com um sorriso malicioso que fora bom. Os dois sabendo que interromper as carícias por ali era arma infalível no teatro das seduções. "Já pensou em se casar de novo?", provocou ele. "A vida ainda não foi tão generosa comigo", encenou ela, num franzindo que exaltava-lhe as rugas breves. Ele pediu licença ao véu, mirou-a firme, e contracenou: "É que seu esplendor faz pose de ostra, disfarçando a pérola que carrega".
Aquilo foi senha para que tornassem a se ver. O mesmo lugar, os mesmos chás, as mesmas conversas. Mas uma certa atmosfera de desconfiança mútua tomando forma. Ele resolveu segui-la, aninhando-se à silhueta dos postes. Gargalhou quando viu. Ônibus de periferia. Casinha simples. Achou ângulo numa fresta da vidraça, e consumou-se o desastre: flagrou enchimento para os peitos e, eca!!!, peruca.
Voltariam a se encontrar. Mesmo chá. Ele constrangido – na verdade, se afeiçoara –, ela duvidando de suas histórias. Decidiu vigiá-lo na partida. Meteu-se na linha do metrô que levava para o cafundó e o rastreou rumando ao conjunto de cortiços. Vislumbrou brecha junto às tábuas. Cenário nojento: a cinta agora revelando o volume desclassificante da barriga e, credo!!!, o par de dentaduras mergulhando na jarra d`água.
Se veriam pela última vez na semana seguinte. Ela embaraçada, dizendo que se ausentaria por uns tempos, para retomar a direção das fazendas no Norte. Ele, coincidência, migrando a negócios para a China. Cedeu-lhe o chapéu panamá como lembrança e embarcou com o véu negro entre as mãos. E aquele aroma que, mesmo nascido em lojinhas de R$ 1,99, lhe impregnaria de uma saudade européia. Ainda que não conhecesse um grão de terra sequer da Europa. Mas que era charmoso relembrar assim aquele encontro, lá isso era.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Ainda há quem se apaixone pelo aroma
ResponderExcluirsem nem mesmo ter vislumbrado um olhar..
Adorei o texto Murta.
Abraços e Feliz Natal.
Golpistas imaginam o alvo do seu golpe sempre acima do que são, e uma permanente possibilidade. Terminaram empatados na decepção, no constrangimento, nas revelações. Só não empatou tempo o leitor. Eduardo, você fechou muito bem a história.
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