quinta-feira, 5 de julho de 2018

Editorial - Parceria desconhecida


Parceria desconhecida


O papel do revisor, para que determinada obra literária consiga se impor pela qualidade, sem que haja cochilos de nenhuma espécie no texto, ou seja, sem que escapem, principalmente, erros ortográficos (que são uma tragédia!) e gramaticais (bastante comuns) é dos maiores e nem sempre é devidamente reconhecido. Raros são os que têm seus nomes registrados nos livros que revisam.

A necessidade dessa figura, frise-se, não significa que o escritor não tenha domínio sobre os cânones que regem seu idioma. Ocorre que o autor de um determinado texto, por mais atento que seja, não consegue detectar todos os erros que comete (quando os comete), geralmente por causa da pressa de dar uma obra por concluída. Daí o bom-senso recomendar que ele recorra aos préstimos de um revisor.

Pergunto: é possível alguém, que não seja lá grande conhecedor de gramática, ser bom escritor? Minha resposta é: “sim”. Claro que o ideal é que quem se aventura nesse perigoso campo das ideias domine com perfeição as regras do seu idioma. Nem todos dominam. E ainda assim... alguns se destacam tanto pelo estilo, quanto pela criatividade. Dizem que Mário de Andrade tinha dificuldades terríveis com algumas regras gramaticais. Poderia citar uma dezena de outros escritores no mesmo caso. E a maioria se consagrou. Vocês não acreditam? Pois vejam este exemplo.

Acabei de ler notícia, divulgada pela Agência France Press, dando conta que a escritora inglesa Jane Austen “conhecia tão mal a gramática e a ortografia que suas obras precisaram ser reescritas por um revisor”. Fiquei pasmo! Conheço essa autora, de quem já li o livro “Orgulho e preconceito”, e seus textos sempre me pareceram perfeitos e a salvo de quaisquer reparos. Quem fez, no entanto, a descoberta de que ela não dominava adequadamente as regras do seu idioma foi a professora da Universidade de Oxford, Kathryn Sutherland.

A meu ver, isto não desmerece em nada a magnífica obra de Jane Austen. Ademais, tendo ciência de suas dificuldades, ela foi humilde o suficiente para recorrer aos préstimos do editor e revisor William Gilford. E este fez direitinho o seu trabalho. Tanto que leitores e críticos literários sempre consideraram que a criativa escritora tinha um “estilo perfeito”. Seu irmão Henry chegou até a dizer, em uma entrevista, dada em 1818: “Tudo sai perfeito da sua pena”. É possível, contudo, que não soubesse das dificuldades gramaticais da irmã. Ou, quem sabe, foi movido pela saudade, já que fez essa constatação um ano após a morte da escritora, que ocorreu em 1817.

E como a professora Sutherland chegou à conclusão das dificuldades de Austen para escrever? Óbvio, lendo os originais não revisados (e não publicados) do que ela escreveu. E não foi pouca essa leitura. A mestra leu 1.100 páginas, o que é mais do que suficiente para se concluir como determinada pessoa escreve. Ao cabo dessa leitura, ela disse à Agência France Press, ao divulgar suas conclusões: “Os manuscritos não publicados de Jane Austen acabam com a reputação de perfeição da escritora de várias formas: há manchas, rasuras, desordem. Pode-se ver a criação se formar neles e, no caso de Jane Austen, descobre-se uma maneira antigramatical de escrever, que contrasta com o estilo polido de suas obras publicadas”.

Fica, pois, assente que antes de você publicar um livro, é prudente que o entregue aos cuidados de um revisor. Esse sujeito, todavia, tem que ser muito bom. Já fui chefe de revisão de um jornal de grande circulação, no meu início de carreira, e conheci muitos que eram uma tragédia. Fazia-se necessária uma revisão da sua revisão, tão desatentos que eram.

Anos depois, tive um incidente desagradável com determinado revisor que se julgava autossuficiente e que cometeu uma gafe sem tamanho, que quiseram me imputar (mas não conseguiram). Foi num período em que fui editor de noticiário internacional. Corria o ano de 1990, e Saddam Hussein ainda era o todo-poderoso do Iraque. No norte desse país, os curdos faziam nova rebelião em sua milenar luta pela independência. Mas as tropas do governo iraquiano sufocaram, a ferro e fogo, esse levante, deixando alguns milhares de mortos.

Ao noticiar esse ataque, destaquei, como manchete da página: “Tropas de Saddam atacam curdos com armas químicas”. Qual não foi o meu dissabor, todavia, quando, no dia seguinte, ao abrir o jornal, leio esta “abobrinha”, esta atrocidade: “Tropas de Saddam atacam surdos com armas químicas”!!! Fiquei furioso, como seria de se esperar, porquanto nem se estivesse bêbado escreveria tamanha barbaridade. E sabem o que aconteceu? O imbecil do revisor achou que eu havia enlouquecido (ou era de uma ignorância extrema, o que pioraria a situação) e havia grafado a palavra “surdos” com “c”, em vez de “s”. Não passou pela cabeça do indigitado sujeitinho que eu me referia à etnia que habita o Norte do Iraque e Sul da Turquia e não às pessoas que têm deficiências auditivas.

Mesmo não sendo o autor da patacoada, tive que ouvir gozações a propósito por muito tempo. Jornalistas e escritores têm dezenas, centenas, milhares de histórias como a minha, envolvendo revisores. Afinal, nem todos são competentes como William Gilford, que garantiu o sucesso de Jane Austen e a fama que ela sempre gozou (e provavelmente continuará gozando) de escritora perfeita, de estilo e grafia a salvo de equívocos e tropeções.


Boa leitura!

O Editor.

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Um comentário:

  1. Naquele tempo não havia o horroroso corretor de textos, que destrói qualquer conversa, e muito mais um escrito elaborado.

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