De
quando em vez
*
Por Ivan Cavalcante
De
quando em vez, ele vinha a meu encontro, tirava seu chapéu em sinal
de reverência e me pedia fumo. Apesar de tratar-se de um apedeuta,
foi o maior contador de histórias que o bairro viu. Nesse Catete já
imortalizado pela boemia mesclada entre a Zona Sul e o Centro, ainda
existia esse tipo de gente, sem casa, parecendo que mora na rua, que
é de todos afinal. E ninguém sabe seu nome, o chamavam apenas
Virgulino Lorota.
Apesar
de senhor, possuía um semblante jovial, pele calejada pelo tempo,
sorriso banguelo e riso debochado, botafoguense doente. Nunca ouvi
uma reclamação sair de sua boca, dizia ele: - Problema todo mundo
tem, e os meus problemas não interessam a ninguém. Usava uma camisa
do Brizola e o defendia como se fosse um verdadeiro cientista
político. Nunca vi igual.
Pra
pedir um café pro Antônio do bar era uma história, daquelas boas
de se ouvir. Para pedir carona pro Geraldo, motorista do 474, era
outra história, daquelas que você não sai de onde está se não
ouvir o final, daquelas que nos fazem perder a hora. E o pior é que
apesar de estapafúrdias, são historias cativantes e nunca se
repetem. Às vezes mentirosas e engraçadas, como a vez em que dormiu
em cima da prancha na praia do Flamengo, e acordou tomando um caldo
em Pipeline no Hawaii
A
que eu mais gostei foi a da vez em que ele e mais dois amigos foram
revistados por guardas municipais e no final roubaram as fardas
deles. Trabalhou sete meses incorporando um cidadão: um tal de
Sargento Noronha. Virgulino era uma piada.
Foi
ficando famoso nos bairros adjacentes também. Sua idade, ninguém
sabia, mas estipula-se entre 100 e 170 anos. Não se espante, o cara
é um totem. Nunca leu um livro e fala de poesias, faz até sonetos
improvisados. Diz que tomou cerveja com Machado de Assis e deu dicas
de estílística a Aluísio de Azevedo, e até brincou carnaval com
Madame Satã.
Nunca
foi a escola e conta histórias de um Rio de Janeiro onde a Avenida
Rio Branco ainda era Avenida Central. Sempre trajando as mesmas
vestes, chegava de manhã cedo, e ganhava um café da manhã do
Antônio, dois de pinga e um de limão. Dizia ele que sem um trago,
não começava o dia.
Houve
quem pensasse que vivia embriagado sempre, mas nunca fez mal a uma
mosca. Tinha nele a malandragem e a inocência lúdica do humor
carioca. Eu tomava o café da manhã no bar do seu Antônio também,
mas um café de verdade, e a primeira vez que eu o vi, foi em 1987.
Eu,
no
início de minha juventude me espantei a priori, mas a convivência
me fez quebrar certos preconceitos até então implícitos. E o tempo
não passava pra ele. Continuava sempre com a mesma cara, a mesma voz
e o mesmo cantinho sujo ao lado da Cândido Mendes onde se
aconchegava nas noites de frio.
Comecei
a fumar aos dezesseis anos de idade, e daí em diante, minhas manhãs
eram sempre produtivas. Como de costume, Virgulino iniciava o dia no
boteco do Antônio: tomava seu “café” e me pedia um cigarro. Ele
afirmava, com veemência, que aquele era o único cigarro que fumava
durante o dia, e que só fumava porque era um cigarro meu. Não sei
de onde ele tirou isso, o tempo do cigarro chegar ao filtro era o
tempo em que ele me contava algum “causo”. Cresci ouvindo o
Virgulino e seus devaneios sobre a vida que foi, a vida que é e a
que será. Às vezes até sobre vidas que não existiram, ou que
existiram e ninguém sabe.
Dias
atrás, acordei cedo, acendi um cigarro e não sei porque, havia um
ar de tristeza naquele dia. Desci, atravessei a rua e fui pedir meu
café no bar. Cheguei lá e vi que estavam separados, um copo, uma
Pitú e metade de um limão: - Cadê o lorota, Antônio? –
perguntei por perguntar, mas era como se eu já estivesse esperando
aquela resposta. – O Virgulino não tá mas entre nós não, meu
rapaz. Quando dona Juçara foi levar um cobertor pra ele hoje de
manhã ele já não tava respirando. O rabecão saiu agora a pouco.
Acredita que encontraram a identidade dele? O nome do cara era José.
Mais um José que se vai no mundo. Nunca teve nada, morreu sem nada.
Coitado.
Tomei
meu café, acendi um cigarro e o deixei queimando sozinho. Acendi um
pra mim, traguei e fui-me embora. José, para nós, Virgulino Lorota,
morreu sorrindo, disse dona Juçara, e nos deixou um vazio. Morreu
com honra e méritos, mérito de ter feito um moleque travesso e
brigão se interessar pela vida, se interessar por literatura.
Méritos por ter vivido o pão que o diabo amassou, ter morrido com
um sorriso no rosto e a proeza de, nunca em sua vida, ter repetido
uma história sequer.
Levou-as
consigo. Quem vive a vida na sua síntese, “Vida na vida” como
ele dizia, muito mais tem a oferecer ao próximo do que quem vive uma
vida na sua casa, na sua empresa, no seu boteco. Virgulino viveu. Até
hoje, ninguém desacredita que ele deve estar junto de outros grandes
“Lorotas”, trajando um esporte fino na Academia Brasileira de
Letras no céu, ala dos autodidatas sensorialmente diferenciados.
*
Jornalista
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