segunda-feira, 9 de julho de 2018

De quando em vez - Ivan Cavalcante


De quando em vez

* Por Ivan Cavalcante

De quando em vez, ele vinha a meu encontro, tirava seu chapéu em sinal de reverência e me pedia fumo. Apesar de tratar-se de um apedeuta, foi o maior contador de histórias que o bairro viu. Nesse Catete já imortalizado pela boemia mesclada entre a Zona Sul e o Centro, ainda existia esse tipo de gente, sem casa, parecendo que mora na rua, que é de todos afinal. E ninguém sabe seu nome, o chamavam apenas Virgulino Lorota.
Apesar de senhor, possuía um semblante jovial, pele calejada pelo tempo, sorriso banguelo e riso debochado, botafoguense doente. Nunca ouvi uma reclamação sair de sua boca, dizia ele: - Problema todo mundo tem, e os meus problemas não interessam a ninguém. Usava uma camisa do Brizola e o defendia como se fosse um verdadeiro cientista político. Nunca vi igual.
Pra pedir um café pro Antônio do bar era uma história, daquelas boas de se ouvir. Para pedir carona pro Geraldo, motorista do 474, era outra história, daquelas que você não sai de onde está se não ouvir o final, daquelas que nos fazem perder a hora. E o pior é que apesar de estapafúrdias, são historias cativantes e nunca se repetem. Às vezes mentirosas e engraçadas, como a vez em que dormiu em cima da prancha na praia do Flamengo, e acordou tomando um caldo em Pipeline no Hawaii
A que eu mais gostei foi a da vez em que ele e mais dois amigos foram revistados por guardas municipais e no final roubaram as fardas deles. Trabalhou sete meses incorporando um cidadão: um tal de Sargento Noronha. Virgulino era uma piada.
Foi ficando famoso nos bairros adjacentes também. Sua idade, ninguém sabia, mas estipula-se entre 100 e 170 anos. Não se espante, o cara é um totem. Nunca leu um livro e fala de poesias, faz até sonetos improvisados. Diz que tomou cerveja com Machado de Assis e deu dicas de estílística a Aluísio de Azevedo, e até brincou carnaval com Madame Satã.
Nunca foi a escola e conta histórias de um Rio de Janeiro onde a Avenida Rio Branco ainda era Avenida Central. Sempre trajando as mesmas vestes, chegava de manhã cedo, e ganhava um café da manhã do Antônio, dois de pinga e um de limão. Dizia ele que sem um trago, não começava o dia.
Houve quem pensasse que vivia embriagado sempre, mas nunca fez mal a uma mosca. Tinha nele a malandragem e a inocência lúdica do humor carioca. Eu tomava o café da manhã no bar do seu Antônio também, mas um café de verdade, e a primeira vez que eu o vi, foi em 1987. Eu, no início de minha juventude me espantei a priori, mas a convivência me fez quebrar certos preconceitos até então implícitos. E o tempo não passava pra ele. Continuava sempre com a mesma cara, a mesma voz e o mesmo cantinho sujo ao lado da Cândido Mendes onde se aconchegava nas noites de frio.
Comecei a fumar aos dezesseis anos de idade, e daí em diante, minhas manhãs eram sempre produtivas. Como de costume, Virgulino iniciava o dia no boteco do Antônio: tomava seu “café” e me pedia um cigarro. Ele afirmava, com veemência, que aquele era o único cigarro que fumava durante o dia, e que só fumava porque era um cigarro meu. Não sei de onde ele tirou isso, o tempo do cigarro chegar ao filtro era o tempo em que ele me contava algum “causo”. Cresci ouvindo o Virgulino e seus devaneios sobre a vida que foi, a vida que é e a que será. Às vezes até sobre vidas que não existiram, ou que existiram e ninguém sabe.
Dias atrás, acordei cedo, acendi um cigarro e não sei porque, havia um ar de tristeza naquele dia. Desci, atravessei a rua e fui pedir meu café no bar. Cheguei lá e vi que estavam separados, um copo, uma Pitú e metade de um limão: - Cadê o lorota, Antônio? – perguntei por perguntar, mas era como se eu já estivesse esperando aquela resposta. – O Virgulino não tá mas entre nós não, meu rapaz. Quando dona Juçara foi levar um cobertor pra ele hoje de manhã ele já não tava respirando. O rabecão saiu agora a pouco. Acredita que encontraram a identidade dele? O nome do cara era José. Mais um José que se vai no mundo. Nunca teve nada, morreu sem nada. Coitado.
Tomei meu café, acendi um cigarro e o deixei queimando sozinho. Acendi um pra mim, traguei e fui-me embora. José, para nós, Virgulino Lorota, morreu sorrindo, disse dona Juçara, e nos deixou um vazio. Morreu com honra e méritos, mérito de ter feito um moleque travesso e brigão se interessar pela vida, se interessar por literatura. Méritos por ter vivido o pão que o diabo amassou, ter morrido com um sorriso no rosto e a proeza de, nunca em sua vida, ter repetido uma história sequer.
Levou-as consigo. Quem vive a vida na sua síntese, “Vida na vida” como ele dizia, muito mais tem a oferecer ao próximo do que quem vive uma vida na sua casa, na sua empresa, no seu boteco. Virgulino viveu. Até hoje, ninguém desacredita que ele deve estar junto de outros grandes “Lorotas”, trajando um esporte fino na Academia Brasileira de Letras no céu, ala dos autodidatas sensorialmente diferenciados.


* Jornalista

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