As
sereias
*
Por Roberto Beltrão
Uma
tênue névoa fabricada pelos cigarros enchia o bar e sufocava o
amarelo das poucas lâmpadas pendentes do teto. Das mesas cobertas de
copos, garrafas, pratos sujos e guardanapos amassados vinham vozes
abafadas, rindo e tagarelando. Lá no fim do salão, na extremidade
de uma mesa mais longa e com todas as cadeiras ocupadas, Ulisses
quase gritava e puxava o braço do amigo ao lado, tem aquela do corno
que comprou uma geladeira nova, sabem essa?, essa é velha, deixa
Toinho contar a do cachorro pidão, conta Toinho, escuta só: o
vira-lata só vivia na porta do quarto do dono, não, não conta
aquela da manicure, a da manicure ninguém aguenta mais, e Ulisses
levou mais um pouco de cerveja à língua.
Na
frente dele, alguém havia deixado um quibe e meio, o que sobrou de
uma porção de sete. Afastou o prato, odiava aquele cheiro de
fritura, dava para perceber que o cozinheiro usava e reusava
infinitas vezes o mesmo óleo, comer aquilo seria dizer bem vinda
gastrite. Ainda fazendo careta ao mirar os quibes, notou a mesa ficar
muda quando o pessoal percebeu a entrada de Aline e Karla, meninas do
escritório, seriam estagiárias ainda?, minissaia e jeans apertado,
cabelos soltos, batons encarnados, cílios longos, sorrisos,
cochichos aos ouvidos uma da outra, também tinham dado uma esticada
depois do expediente.
Com
alguns camaradas ainda hipnotizados, outros se levantaram para
convidar, ei, sentem aqui, é a turma antiga da firma, tá faltando
lugar, a gente arranja um cantinho. Sim, elas vieram. O garçom
conseguiu cadeiras e as encaixou na ponta da mesa, junto de Ulisses.
Ah sim, as estagiárias. Dedos de unhas longas e esmaltes coloridos
que seguraram os copos de cerveja sem vacilar. Boca com vozes
gostosas, você vêm aqui sempre?, a gente não conhecia esse boteco,
sexta-feira tem que relaxar né não?, estamos adorando o trabalho. E
os cabelos longos, como cheiravam! Alfazema ou jasmim, sabia lá
dessas coisas!
Cheiro
de namorada nova, de beijo de língua, de chupão no pescoço, cheiro
sutiã claro e calcinha rendada, de cama de motel, cheiro de
bocetinha peluda. Ulisses enfiaria o nariz naqueles cabelos como já
fez tantas vezes durante as sessões de cinema no Centro, no banco
traseiro do fusca, no sofá da casa da antiga paquera quando os pais
dela haviam saído, por que a gente não é jovem pra sempre? E se
fosse jovem agora, ofereceria uma carona a Aline, a loirinha, depois
do bar? Sim, a Aline e a Karla, a morena cheia de cachos. Não
custaria a dizer sei de um barzinho ainda mais bacana, topam?
Não
custaria falar no celular olha, vou demorar mais um pouco, Valdemar
tá de porre, vou deixar ele em casa e tal. E Arlete o esperaria até
a madrugada, o Valdemar melhorou, como bebe esse teu amigo!, sabe
como ele é, né?, por isso perdeu a mulher, mais de vinte anos de
casado, vou tomar banho antes de dormir, e esfregaria bem o sabonete
para tirar o cheio de jasmim ou de alfazema, sabia lá.
Do
outro lado da mesa, Valdemar apontava as duas meninas com os olhos e
piscava para Ulisses enquanto levantava a tulipa acima da cabeça, um
brinde pra nossas novas colegas, Aline e Karla, viva! Arlete também
já havia cheirado a Alfazema ou Jasmim, e hoje cheira às vezes a
perfume francês comprado no free shop, às vezes cheia a camisola de
algodão lavada com amaciante. E como eram confortáveis a camisola,
o amaciante e os peitos de Arlete numa noite de quarta-feira, na cama
box, depois do jogo na televisão.
Ulisses
puxou de volta o prato com um quibe e meio. Aproximou do nariz o
pedaço pela metade, sorveu a inhaca do óleo usado até quase sentir
uma ânsia de vômito. O encheu de podre todo o espaço das narinas
onde antes havia Jasmim ou Alfazema. Depois devolveu o quibe mutilado
ao prato e levantou a mão.
-
Amigão, por favor me vê uma parcial da conta? Pra mim já
deu…
*
Jornalista e pesquisador, autor do livro de contos “Recife
assombrado”.
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