segunda-feira, 2 de julho de 2018

As sereias - Roberto Beltrão


As sereias

* Por Roberto Beltrão

Uma tênue névoa fabricada pelos cigarros enchia o bar e sufocava o amarelo das poucas lâmpadas pendentes do teto. Das mesas cobertas de copos, garrafas, pratos sujos e guardanapos amassados vinham vozes abafadas, rindo e tagarelando. Lá no fim do salão, na extremidade de uma mesa mais longa e com todas as cadeiras ocupadas, Ulisses quase gritava e puxava o braço do amigo ao lado, tem aquela do corno que comprou uma geladeira nova, sabem essa?, essa é velha, deixa Toinho contar a do cachorro pidão, conta Toinho, escuta só: o vira-lata só vivia na porta do quarto do dono, não, não conta aquela da manicure, a da manicure ninguém aguenta mais, e Ulisses levou mais um pouco de cerveja à língua.

Na frente dele, alguém havia deixado um quibe e meio, o que sobrou de uma porção de sete. Afastou o prato, odiava aquele cheiro de fritura, dava para perceber que o cozinheiro usava e reusava infinitas vezes o mesmo óleo, comer aquilo seria dizer bem vinda gastrite. Ainda fazendo careta ao mirar os quibes, notou a mesa ficar muda quando o pessoal percebeu a entrada de Aline e Karla, meninas do escritório, seriam estagiárias ainda?, minissaia e jeans apertado, cabelos soltos, batons encarnados, cílios longos, sorrisos, cochichos aos ouvidos uma da outra, também tinham dado uma esticada depois do expediente.

Com alguns camaradas ainda hipnotizados, outros se levantaram para convidar, ei, sentem aqui, é a turma antiga da firma, tá faltando lugar, a gente arranja um cantinho. Sim, elas vieram. O garçom conseguiu cadeiras e as encaixou na ponta da mesa, junto de Ulisses. Ah sim, as estagiárias. Dedos de unhas longas e esmaltes coloridos que seguraram os copos de cerveja sem vacilar. Boca com vozes gostosas, você vêm aqui sempre?, a gente não conhecia esse boteco, sexta-feira tem que relaxar né não?, estamos adorando o trabalho. E os cabelos longos, como cheiravam! Alfazema ou jasmim, sabia lá dessas coisas!

Cheiro de namorada nova, de beijo de língua, de chupão no pescoço, cheiro sutiã claro e calcinha rendada, de cama de motel, cheiro de bocetinha peluda. Ulisses enfiaria o nariz naqueles cabelos como já fez tantas vezes durante as sessões de cinema no Centro, no banco traseiro do fusca, no sofá da casa da antiga paquera quando os pais dela haviam saído, por que a gente não é jovem pra sempre? E se fosse jovem agora, ofereceria uma carona a Aline, a loirinha, depois do bar? Sim, a Aline e a Karla, a morena cheia de cachos. Não custaria a dizer sei de um barzinho ainda mais bacana, topam?

Não custaria falar no celular olha, vou demorar mais um pouco, Valdemar tá de porre, vou deixar ele em casa e tal. E Arlete o esperaria até a madrugada, o Valdemar melhorou, como bebe esse teu amigo!, sabe como ele é, né?, por isso perdeu a mulher, mais de vinte anos de casado, vou tomar banho antes de dormir, e esfregaria bem o sabonete para tirar o cheio de jasmim ou de alfazema, sabia lá.

Do outro lado da mesa, Valdemar apontava as duas meninas com os olhos e piscava para Ulisses enquanto levantava a tulipa acima da cabeça, um brinde pra nossas novas colegas, Aline e Karla, viva! Arlete também já havia cheirado a Alfazema ou Jasmim, e hoje cheira às vezes a perfume francês comprado no free shop, às vezes cheia a camisola de algodão lavada com amaciante. E como eram confortáveis a camisola, o amaciante e os peitos de Arlete numa noite de quarta-feira, na cama box, depois do jogo na televisão.

Ulisses puxou de volta o prato com um quibe e meio. Aproximou do nariz o pedaço pela metade, sorveu a inhaca do óleo usado até quase sentir uma ânsia de vômito. O encheu de podre todo o espaço das narinas onde antes havia Jasmim ou Alfazema. Depois devolveu o quibe mutilado ao prato e levantou a mão.
- Amigão, por favor me vê uma parcial da conta?  Pra mim já deu…


* Jornalista e pesquisador, autor do livro de contos “Recife assombrado”.



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