domingo, 8 de julho de 2018

Sujeito Zero (20) - Sergio Vilas Boas


Sujeito Zero (20)


* Por Sergio Vilas Boas


O índio Quanaduck – recepcionista do Whaler’s – anuncia a chegada do tofu com legumes que ela havia pedido. Alma autoriza a entrega da comida. Surpreende-a a contente fisionomia de um chinês idoso. Desculpe o atraso, ele deve ter dito. A caixinha de tofu com legumes chega em 45 minutos, não em trinta. Está bem, não tem problema, senhor. A fome geralmente encobre rigores e detalhes.

O velho chinês (coreano, vietnamita, malásio ou indonésio?) veste uma jaqueta impermeável, calça xadrez de flanela, botas de couro cru, um grotesco gorro de pele artificial com proteção para os ouvidos e óculos como os de John Lenon. Entrega com evidente alegria as duas caixinhas com comida (a de arroz integral estava incluída no preço). Alma está tão faminta e aérea que paga cinco dólares além da conta. O chinês devolve, ela recusa. Obter comida naquelas circunstâncias parecia uma bênção.

Redondamente agradecido, o chinês guarda os cinco dólares em um bolso da jaqueta, o restante no outro. Abotoa as abas flácidas do gorro e se despede. Alma vai à janela. O céu está limpo. O chão, branco e espesso. Ela acompanha os movimentos do chinês lá embaixo. Ele empurra sua bicicleta com dificuldade. Alma sorri pela primeira vez desde que partiu de Boston com as pernas trêmulas e o batom borrado.

O chinês afunda os aros da bicicleta na neve fofa, perde o equilíbrio, desce, carrega a bicicleta nas costas, salta um obstáculo; monta de novo, cambaleia, atola; e pedala outra vez, procura as trilhas escavadas pelos caminhões da prefeitura, sobre as quais se espalharam toneladas de sal grosso. É assim até desaparecer dentro da onipresença de vinte graus Celsius negativos. Se isto não é entusiasmo, o que é?

Zapeando diante da tevê ligada, Alma começa a mastigar avidamente, contrariando a natureza de seu processo digestivo. Alguns noticiários ainda se ocupavam da terrível nevasca. As autoridades dos condados afetados haviam decretado estado de emergência. Auto-estradas obstruídas, longos congestionamentos, aeroportos fechados, estações de trem abarrotadas, familiares aconselhados a não enfrentar o caminho de volta.

Alma interrompeu a sanha das mandíbulas ao se deparar com imagens ao vivo na CNN de chamas em Washington D.C., onde um Oldsmobile-bomba havia explodido próximo à Casa Branca. Como um prisma hipnótico, a tevê paralisou-a. Por pouco ela desfalecia, pois tinha parcela considerável de culpa – tanto quanto a maldita nevasca – na construção daquela notícia totalmente fora de hora. Militantes imprestáveis, aqueles. Detonaram tudo, menos Little George.


* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de Os Estrangeiros do Trem N (1997), Biografias & Biógrafos (2002) e Perfis (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.





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